Radar Filosófico - A dimensão comunitária da crítica da razão na fenomenologia: ciência, mundo da vida e história

Eder Soares Santos

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UEL

Yuri José Victor Madalosso

Doutorando em Filosofia (UEL)

20/10/2023 • Coluna ANPOF

O presente artigo têm como objetivo principal elucidar a “crítica da razão” enquanto tarefa ampla na fenomenologia, que se realiza histórica e comunitariamente. Busca-se, especificamente, explicar os pressupostos epistemológicos e a própria noção de fenomenologia implicada na crítica histórica do mundo comum em que, como sujeitos, agimos (e sofremos) para dar sentido e finalidade à vida. Iremos também mostrar a relação entre “justificação” e “autorresponsabilidade” na crítica fenomenológica. Por fim, mostraremos que a crítica fenomenológica é fruto de um desenvolvimento dinâmico, mas desigual, que se inicia na primeira filosofia husserliana.

Nossa hipótese de interpretação é: se Husserl pensa a fenomenologia como tarefa infinita e crítica às tradições, culturas e da vida cotidiana, ela o é no sentido de uma crítica global à razão a partir de um conceito amplo de “ciência”.

Na fenomenologia, o conceito de “crítica da razão” não é unicamente a análise teórica do conhecimento, mas uma atitude radical que compromete e direciona o filósofo ao mundo humano, a fim de motivar uma renovação constante: em suma, uma “revolução” nas condutas, metas, normas e valores que uma comunidade considera como “válidos” e “dignos”: o bem, a verdade, a felicidade, a beleza etc. Com efeito, a “crítica da razão” possui inícios modestos e pouco “interessantes” para a práxis social, à primeira vista: trata-se do tema da luta contra o psicologismo lógico e epistemológico, e, em paralelo, se a lógica é ciência teórica, normativa ou técnica, como apresentados em 1900 e 1901 em suas Investigações Lógicas.

A “crítica do conhecimento”, no seu início em Husserl, já evidencia que as tarefas teóricas não são as únicas ou mais importantes na filosofia e ciência. Elas devem estar bem delimitadas e claras, para que o progresso científico seja fecundo. Isso significa que o filósofo não constrói teorias, mas tematiza e questiona como cientistas, enquanto sujeitos, justificam racionalmente sua atuação, tornando intuitivos os pressupostos implícitos e não assumidos de seus processos subjetivos de validade e significado.

Consequentemente, as noções de “justificação” e “clarificação”, tal como foram sendo desenvolvidas a partir da “virada” husserliana da fenomenologia como “filosofia transcendental”, não pretendem substituir as tarefas científicas particulares ou, ainda, a própria prática científica concreta, mas ampliam a noção de “ciência” implícita na unilateralidade do que as ciências exatas e naturais chamam de “objetividade”, “evidência” e “verdade”.

Neste sentido, a fenomenologia transcendental é a explicitação do sentido e validade científicos, e de sua dinâmica intencional, que perpassa toda a vida individual e coletiva. É a afirmação de que a “objetividade” da ciência (como a física, por exemplo), ainda que mais indiferente ao “subjetivo”, nunca poderá excluí-lo de suas origens. No fundamento da fenomenologia, a justificação é ação responsável vital do cientista enquanto pessoa vivendo em comunidade.

Todo esse desenvolvimento variado e desigual faz Husserl colocar a fenomenologia como práxis ética e social, baseada em um imperativo de autorresponsabilidade “perfectível”: as culturas e os seres humanos individuais podem, por meio da atitude crítica, se melhorarem através da constituição de intenções e satisfação do sentido de suas vidas, tanto na esfera teórica quanto prática. Nesta perspectiva, a humanidade é um conceito ideal, em si mesmo, infinito, renovável e aberto para toda cultura possível. Esse ideal de humanidade colocado como “tarefa infinita” pela fenomenologia, com efeito, é a regulação dialética da vida filosófica sobre si mesma para impedir a totalização de uma razão indiferente à existência humana.

No que se refere a esse conceito ideal de “humanidade”, devemos mostrar uma limitação da “crítica da razão” fenomenológica husserliana, um pressuposto não tematizado nos escritos tardios (em especial, a partir de 1921 até 1936), e que, volta e meia, é “relativizado”, por assim dizer, por vários intérpretes: por que somente a humanidade europeia é capaz de uma renovação autorresponsável? É notável como Husserl coloca o mundo da vida europeu, assim como o instituir filosófico na Grécia Antiga, enquanto momento originário das tarefas infinitas do ser humano. Além disso, nega explicitamente que as humanidades não-europeias tenham tido um tal momento histórico e ideal de rompimento crítico com o dogmatismo das tradições.

Para concluir, nós, filósofos (as) e estudantes de fenomenologia, devemos questionar em que medida a crítica husserliana perde sua potência com esse pressuposto (ou fundamento?) eurocêntrico, e se ela perde, por isso, sua relevância e sentido para nós atualmente, marcada pela alteridade e resistência de humanidades diversas. Provisoriamente, convidamos todes a não desviar o olhar do Husserl eurocêntrico, como se fosse algo “aberrante” na obra desse filósofo: é preciso confrontar a fenomenologia tanto com as filosofias não europeias quanto com seus conceitos principais. Afinal, em filosofia, nada e ninguém é intocável, e aqui está a virtude da fenomenologia como crítica.

Artigo publicado na Revista Húmus, v. 12, n. 37, 2022 | Acesse aqui


Eder Soares Santos possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (1997), mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2001), doutorado sanduíche em Filosofia - Universitat Freiburg (Albert- Ludwigs) (2005), doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas/SP (2006) e pós-doutorado na Bergische Universität Wuppertal (2015). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da psicanálise, fenomenologia existencial, teoria dos paradigmas em Kuhn, teoria do amadurecimento pessoal.

Yuri José Victor Madalosso possui graduação (Habilitação: licenciatura) em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (2013) e é Pós-Graduado (mestrado acadêmico) pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) na UEL-PR desde maio de 2016. O mestrado foi na linha de pesquisa de epistemologia, tendo como objeto de pesquisa a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), em suas Investigações Lógicas (1900-1901). De 2018 a 2022, atuou no Ensino Básico privado como docente de filosofia. Atualmente é doutorando em Filosofia, na linha de pesquisa "Conhecimento e Subjetividade" pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) na UEL-PR, com ênfase na primeira filosofia husserliana e seus desdobramentos lógicos, semânticos e epistemológicos.