Radar Filosófico - Corpos-Fronteira e o Conto Maria: Um Diálogo Entre Mbembe e Conceição Evaristo
Adriano Negris
Doutor em Filosofia pela UERJ; Professor Adjunto do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da UERJ
Pâmela Bueno Costa
Doutoranda em Filosofia na UFRJ
05/12/2024 • Coluna ANPOF
O presente ensaio propõe uma leitura do conto Maria, que faz parte do livro Olhos D’água, de Conceição Evaristo, à luz das reflexões trazidas pelo filósofo Achille Mbembe, especialmente em suas obras Políticas da Inimizade e Brutalismo. Por meio da personagem Maria, analisamos as relações de inimizade, a construção do corpo-fronteira e o extermínio do outro.
Em Maria, Conceição Evaristo trata da violência e da vulnerabilidade das mulheres negras em uma sociedade da inimizade, movida pela pulsão de separação e aniquilamento; uma sociedade na qual o outro é recorrentemente alvo da construção de fronteiras e da violência.
A história narra a jornada de retorno de Maria para casa após o término do trabalho. Exausta e carregando uma pesada sacola com as sobras da festa de seus patrões, ela espera o ônibus. No ônibus, ela encontra o pai de um de seus filhos, um homem que ainda ocupa um lugar em seu coração. Contudo, o reencontro é interrompido devido a um assalto à mão armada. Em uma cruel reviravolta do destino, Maria se torna alvo de violência. Embora não esteja envolvida no assalto, ela é confundida com uma cúmplice e é atacada pelos outros passageiros.
A história de Maria revela como as fronteiras transcendem a dimensão do físico, manifestando-se também nos campos social e simbólico. A fronteira é usada não somente para delimitar os espaços, mas, precipuamente, para restringir a circulação dos corpos indesejados.
Os corpos indesejados são aqueles equiparados a rejeitos humanos, formando uma espécie de corpo virulento que pode causar “doença” e afetar a boa saúde do corpo social – o que Mbembe chama de “corpo-fronteira”. Esses corpos constituem uma massa excedente a qual não se enxerga função alguma e não se pode dela extrair energia alguma. Segundo Mbembe, as pessoas em “demasia” de hoje são aquelas que não dispõem nem das habilidades adequadas para promover sua empregabilidade nem dos ativos, títulos ou bens necessários para garantir sua solvência.
No conto de Conceição, podemos dizer que corpo-Maria é um corpo-fronteira, marcado pela experiência do corte, do desejo de aniquilamento e pulsão de ódio dos passageiros do ônibus. O corpo da personagem será visto como o inimigo a ser combatido.
A cena descrita por Conceição abre a possibilidade de refletirmos sobre um fenômeno de brutalização do cotidiano. É interessante notar que Maria (ou, ainda, um corpo-Maria) deve ser imobilizada, pois ela é um corpo que representa a impossibilidade de livre locomoção em todos os espaços da cidade. Como uma carne que carrega em si o espectro do inimigo, Maria é um corpo a ser controlado ou até mesmo eliminado. Todavia, podemos ir além e dizer que Maria também é um corpo indefensável, pois, caso esses corpos tentem se proteger, acabam fazendo com que o gesto defensivo se volte contra si mesmo em forma de violência.
No conto de Conceição, Maria tenta se defender da acusação de roubo sofrida pelos demais passageiros do coletivo. A personagem tenta explicar, mas não sabe dizer o motivo pelo qual não foi assaltada. Somente um dos passageiros tenta argumentar a favor de Maria, contudo, o esforço é inútil. Todas as defesas a favor de Maria estão fadadas ao insucesso, pois é um corpo que não tem o direito de se defender. A mera suspeita já impõe a mobilização desse corpo, seja por meio do uso da força policial ou, como no caso de Maria, o uso da violência por outros indivíduos que supostamente são legitimados para abater aquele corpo. A personagem possui um corpo condenado à imobilidade, e no enredo do conto, é impedida de circular, de chegar em casa para cuidar e dar as frutas aos seus filhos, pois seu corpo é espancado até a sua aniquilação.
Maria é um corpo-fronteira, seu corpo é cortado, a “faca-fronteira” delimita, em cortes, sua livre circulação. A fronteira passa a ser uma marca na carne, um corte na pele, uma espécie de escritura que reduz determinados corpos a serem objetificados. Uma vez que, corpo-fronteira marca uma espécie de racialização dos corpos, indicando quais corpos podem circular ou não, pois a violência racial está amplamente codificada na linguagem da fronteira e da segurança.
Em espaço de perdas e luto, que vida são mais enlutáveis? A filosofia de Mbembe pode ser um fio condutor para uma possível leitura do conto de Conceição. De um lado, Mbembe considera que a utopia se faz necessária para continuarmos passantes pelo mundo, e assim a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo para a imaginação estética. De outro lado, Conceição nos ajuda a seguir como passantes e chegantes diante do mundo, buscando inserir no mundo novas histórias, não como mera abstração, mas para a existência, para o mundo-vida.