Radar Filosófico - Da visão sacrificial até a literatura: pensando o sofrimento do animal não humano
Bruno Araujo Alencar
Professor Substituto do Departamento de Filosofia da UFPI; Doutorando em Filosofia na UFPI
04/09/2024 • Coluna ANPOF
A história torna evidente que, nós, animais humanos, em algumas ocasiões, nos vemos tentando sair da condição de espécime superior sobre outras espécies animais. Essas percepções são observadas através de narrativas que criamos e que muitas vezes ocorrem por um sentimento de culpa, por causarmos sofrimento intenso a animais não humanos. Observamos na historiografia, através de alguns escritos, como livros sagrados e até mesmo científicos, atos de violência de magnitude sacrificial, no caso do primeiro, ou de cunho para suporte da evolução da ciência, no que diz respeito ao segundo. Assim, teríamos a impressão de que poderíamos cometer violentamente atos que desencadeariam dor ou morte em inúmeros animais não humanos.
Peter Singer, filósofo australiano, permite-nos observar, em sua obra Libertação Animal, como alguns textos, como os sagrados, reforçam o status de servidão do animal não humano para algumas situações, como o de ser permitido matá-lo para a “salvar a alma humana”. Já para a visão do “progresso” científico, o cartesianismo afirmava que os seres desprovidos de linguagem e racionalidade eram vistos como meros autômatos, desprovidos de capacidade de sentir dor ou desfrutar de prazer, uma vez que os “ruídos” externalizados por eles, ao serem cortados para a realização de diversos experimentos, não representavam dor. Singer condena essa visão cartesiana por desqualificar o sofrimento animal.
A ascensão da modernidade e da ciência durante o Renascimento reforçou veementemente a centralidade do ser humano, ignorando questões éticas sobre o bem-estar animal. Apesar desse embate, filósofos começaram a reconhecer a capacidade dos animais de sentir emoções e dor. David Hume, por exemplo, reconheceu a capacidade dos animais de demonstrar afeto e compaixão, contrastando com a visão cartesiana.
Esse antropocentrismo, que coloca a ascensão da ciência em contrapartida ao direito dos animais, é alvo central de algumas coalizões éticas e morais. A literatura, nesse caso, se coloca em uma discussão rodeada de reflexões instigantes e que permitem à cultura em geral projetar-se de forma inusitada acerca da importância de pensarmos o animal não humano como um ser vivo que carece de consideração moral.
A sensibilidade é algo que o animal humano carece de construir em sentido lato. Não precisamos ser solidários apenas com a nossa própria espécie animal, mas com várias. Enquanto os Direitos Humanos emergiram mediante a um holocausto contra a nossa própria espécie promovido pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, nos calamos diante da utilização desenfreada dos animais não humanos em diversos laboratórios mundo afora. Isso também não poderia ser comparado a um holocausto? Mas como podemos criar uma cultura solidária que se preocupe com as atrocidades que acontecem nos laboratórios de experimentação, por exemplo?
Neste artigo, pretendemos construir a ideia de que a literatura oferece suporte para descobrirmos a importância de outros seres vivos, que não somente os humanos, que são obscurecidos em nome de um rígido paradigma científico. Personagens da ficção literária, como a cadela Baleia, criada por Graciliano Ramos no livro Vidas Secas, permitem-nos observar o sofrimento animal através da imagem raquítica de uma cadela, que sonha em ter sua fome saciada e acaba sendo sacrificada a tiros pelo seu tutor por não querer continuar vendo sua cadela sofrer pela fome. Afinal, seria esta a solução para extinguir o sofrimento da cadela?
Atualmente, observa-se o desencadeamento de decisões que representam retrocessos para a aquisição dos direitos dos animais, como o aniquilamento em massa de cães, realizados como um processo linguístico suavizado da morte com a utilização do nome “eutanásia para os que não forem adotados após serem castrados”. Podemos dormir tranquilos enquanto inúmeras atrocidades acontecem?
Uma solução para essa perplexidade moral é alicerçar a criação de uma cultura filosófica-literária, uma em que seja permissível pensar os dilemas morais, problematizando-os nos cantos mais inusitados através do diálogo proposto, como em uma roda de conversa onde possamos discutir a dor a que inúmeros animais não humanos são acometidos em abatedouros ou em práticas de eutanásia que só vislumbram o bem-estar da saúde humana. E onde fica o bem-estar e a saúde dos não humanos? Parece ficar em segundo plano, na maioria das vezes.
Hoje, a capacidade dos animais de sentir dor e prazer é um argumento central para a defesa de seus direitos. A ideia de senciência, que se ocupa com a possibilidade de qualquer ser vivo ser acometido por dor ou desfrutar de prazer, por possuir um sistema nervoso central, desafia correntes de pensamento que negam direitos aos animais por não possuírem percepção da morte ou capacidade de assumir deveres. Essa evolução no pensamento filosófico e científico leva a um reconhecimento da dignidade dos animais não humanos e da necessidade que nós, animais humanos temos de protegê-los. A literatura é uma possibilidade para levarmos o debate moral a qualquer esfera de discussão pública para revertermos esse modo de pensar essencialmente antropocêntrico.