Radar Filosófico - O ensino de Filosofia na periferia da civilização: desafios para uma crítica contracolonial
Gustavo Fontes
Doutor em Filosofia (UFPR) e professor do Instituto Federal de Sergipe (IFS)
06/05/2025 • Coluna ANPOF
Neste trabalho abordamos alguns dos desafios pedagógicos e epistemológicos relacionados ao ensino de Filosofia em países que geograficamente se encontram na periferia daquilo que é considerado como ‘berço da filosofia’ e centro da civilização mundial, ou seja, a Europa. O que estes países, por sua vez tão diversos entre si, têm em comum é a marca histórica da colonização europeia, constituída sobretudo a partir do ciclo das chamadas ‘grandes navegações’, que foram nos anos seguintes, os canais de disseminação do ideário da modernidade europeia para o resto do planeta. O primeiro grande desafio que se apresenta neste horizonte investigativo é o de buscar problematizar e discernir o legado específico e intrinsecamente filosófico dessa tradição, e o que nele é apenas reprodução epistêmica de uma correlação de forças coloniais que historicamente buscou privilegiar a autoreferencialidade europeia, propondo-a enquanto um valor filosófico em si.
Alguns paradoxos surgem naturalmente desta seara investigativa, dentre os quais daremos particular atenção à relação entre o ideário iluminista de liberdade, dignidade e fraternidade humana, e as teorias filosóficas e pseudo-científicas que buscaram legitimar a eugenia, o racismo e a escravidão em países latino-americanos. Neste sentido, entendemos que a apropriação do discurso filosófico e da prática do filosofar, por parte de professores e alunos, tanto da educação básica quanto do ensino superior, se não for precedida por uma leitura decolonial e/ou contracolonial desta tradição, tende a reproduzir uma ideologia implícita e amplamente arraigada no discurso filosófico, conhecida como ‘eurocentrismo’. Entendemos, por fim, que o ensino de Filosofia em países como o Brasil tem esse desafio adicional de não apenas se apropriar do rico legado da história da Filosofia Ocidental, mas tem também como tarefa adicional realizar a crítica decolonial ou contra-colonial deste mesmo legado, de forma a posicionar os sujeitos no centro de suas próprias articulações e indagações filosóficas em convergência com seus contextos históricos e regionais.
Neste sentido, o desafio contracolonial que se nos apresenta está ligado à tarefa de nos apropriarmos dessa tradição, já que nenhum estudante (de ensino médio ou graduação), professor ou pesquisador sério de filosofia pode se furtar à tarefa de estudar atentamente ao menos os princípios fundamentais das obras de Aristóteles, Hobbes, Hume ou Kant. Mas o fato é que, ao nos situarmos no que estamos chamando aqui de periferia da civilização, temos a obrigação de lê-los em chave crítica, buscando discernir nas suas obras os elementos epistemologicamente condicionados pelo seu posicionamento privilegiado nas relações geopolíticas estabelecidas, sobretudo, a partir da hegemonia global exercida pela Europa nos últimos quinhentos anos, cujo resultado tem sido o escamoteamento, negação ou rebaixamento de toda a produção intelectual produzida fora deste eixo.
Nos cabe, portanto, enquanto estudantes, pesquisadores e/ou reprodutores de teorias filosóficas, duas tarefas adicionais, que acreditamos sejam complementares à leitura atenta e rigorosa dos pensadores que têm constituído o cânone da história da filosofia ocidental: 1) primeiramente trata-se da tarefa de realizar a leitura desta tradição em chave crítica decolonial (ou contracolonial), como o fazem pensadores como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Charles Mills, Henrique Dussel, Ailton Krenak, dentre outros; e 2) uma segunda tarefa adicional que está ligada necessidade de buscar recuperar a relevância propriamente filosófica da produção destes pensadores periféricos, como os citados, já que este legado tem sido historicamente relegado a um status menor de pensamento ou sabedoria, no sentido de algo que talvez até mereça alguma atenção, pela sua diversidade e diferença, mas sempre em chave de folclore ou exotismo.
Acreditamos que se quisermos ter sucesso neste alargamento dos parâmetros do que deve ser considerado pensamento filosófico, precisamos realizar a leitura e divulgação da obra destes pensadores, aqui tidos como decoloniais ou contracoloniais, em um formato pedagogicamente interessante e palatável para todos os estudantes de Filosofia. Tais leitura e divulgação, em si, não deveriam ser tarefas muito difíceis, já que são pensamentos e formulações filosóficas que contemplam as conjunturas históricas e políticas nas quais se encontram inseridos os professores e alunos, o que de partida, teria o potencial de facilitar o aprendizado através da identificação que todos os atores envolvidos teriam com as temáticas apresentadas. Afinal, todos somos capazes de, em alguma medida, identificar em nossos cotidianos os efeitos da colonização e do racismo nas nossas vidas e na vida das pessoas que estão ao nosso redor, e estes são temas com um potencial altíssimo para despertar debates e questionamentos filosóficos da maior profundidade e relevância.