RAHEL JAEGGI E A RECONSTRUÇÃO PRÁTICO-MATERIALISTA DA TEORIA CRÍTICA

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

07/07/2020 • Coluna ANPOF

José Crisóstomo de Souza,

Professor do Departamento de Filosofia da UFBA e membro do GT Poética
Pragmática, de pesquisa, discussão e elaboração em filosofia.

 

Retomo o que comecei a dizer em coluna anterior 1 a propósito da Teoria Crítica, alemã e de Jaeggi em particular, agora assinalando o que considero interessante em sua proposta deweyano-hegeliano-marxiana para um desenvolvimento filosófico materialista e prático. Farei isso em confronto com posições marxianas, de quem acho dá para aproveitar para isso um lado inexplorado: seu materialismo prático-material, não dialético-negativo. Se se trata de tornar a TC não só mais pragmatista, mas também mais materialista, como Jaeggi nos diz que gostaria, não é sem cabimento envolver Marx na discussão; ele é a matriz originária da TC, matriz à qual essa permanece atrelada de várias maneiras.

A ideia é que o envolvimento da teoria crítica com o pragmatismo, que culmina em Jaeggi, pode apontar para um ponto de vista prático-crítico mais transformador e politicamente. A um só tempo com mais do pragmatismo e mais de Marx e Hegel do que encontramos em Jaeggi, por certo mais do que encontramos em Habermas, reconstrutor de Marx, que começou essa conversão pragmatista, democrática, destranscendentalizante, pós-metafísica, da TC e da filosofia continental contemporânea. Também como passo para fora do negativismo, tanto da TC original como da vizinha francesa, desconstrucionista, mais linguocêntrica.

Para resumir, pretendo sugerir que a nova TC vá mais além de um intersubjetivismo normativo, mesmo que nem sempre apenas linguístico, via um entendimento mais encorpado da prática, como material, sinnliche, tanto quanto produtiva, poiésis. Também, pretendo que seu pragmatismo, de Peirce e Dewey mas além deles, torne-se mais histórico, menos epistemológico e adaptativo. Desenvolvimentos que cobrariam uma reconstrução, melhor que a habermasiana, do materialismo marxiano como paradigma da produção, no rumo de um materialismo prático mais socializado e interacionista, mais experimentalista, ontologicamente dessubstancializado e normativamente desessencializado. Isso tudo apontado aqui muito abreviadamente.

A teoria jaeggiana quer tratar de criticar e contribuir para transformar nossas “formas de vida”. 2 Mas o que é mesmo uma FV para ela? É aquilo que se oferece a uma crítica imanente, não eticamente abstinente, como concebida pela teoria emancipatória que Jaeggi propõe. No fim de contas, e isso é o que ela e quem comenta sua teoria acabam dizendo, FV é ou constitui o real social, é um modo de conceber até o próprio capitalismo. Jaeggi oferece uma definição curta e direta para FV: são agregados complexos de práticas sociais, com certo grau de inércia mas transformáveis, comprometidos com propósitos e com normas de auto-justificação.

Aparentemente a noção jaeggiana pode referir-se tanto a agregados menores de práticas, valores e orientações, quanto a conjuntos abrangentes, compósitos, como uma sociedade nacional ou um tipo de economia particulares. A eles se poderia aplicar uma avaliação crítica em termos de realização ou não de uma vida boa, não apenas nos termos, neutros, do que é procedimentalmente correto ou justo, neutros com relação a valores substantivos, deixados à escolha do indivíduo. No fim de contas, a noção parece acabar sendo usada de modo semelhante às de real social ou de formação sociocultural, mais encorpado do que o modo linguístico, de Wittgenstein. Semelhante, do lado de Marx, a noções como forma social determinada, modo de vida (Lebensweise), modo de produção (Produktionsweise) e formação social, esta como conjunto mais concreto,internamente diferenciado. Sem semelhante alcance poderia ficar difícil falar em mudança social a propósito de FV, em especial de modo mais materialista.

Uma FV é aparentemente, então, não uma totalidade fechada, mas um agregado congruente, de práticas sociais, valores e orientações, com jeito de organismo e estrutura, que pode ser criticada pelo não cumprimento da função de resolver problemas que ela se atribua. Bem como pelo não atendimento a suas normas e valores, tácitos ou expressos, que, porém, também podem ser criticados, pois a “crítica imanente” jaeggiana quer ser mais que uma conservadora crítica interna. Uma FV é, assim, um complexo que pode revelar problemas e contradições, cumprir ou não seus propósitos ou funções, entrar em crise, até colapso; que pode ser avaliado por sua capacidade para solucionar problemas e aprender com a experiência.

Entre outras vantagens, a noção jaeggiana, mais holista, não se compromete com o dualismo marxista que divide a sociedade em infraestrutura (material, determinante) esuperestrutura (espiritual, determinada). Cultura, valores, intencionalidade, interpretação, junto com materialidade e objetualidade, permeariam o conjunto de uma FV, que é sempre e em todas suas partes prático-ativa, espiritual-material. Tal noção permitiria conceber a realidade social como um conjunto mais ou menos da mesma natureza, ao mesmo tempo compósito, formado de subconjuntos, que teriam alguma autonomia uns em relação aos outros.

As práticas e formas de vida menos abrangentes seriam congruentes com o conjunto maior, que não constituiriam a encarnação de um princípio único de funcionamento, que tudo presidiria, o que excluiria também um reducionismo estrutural, determinista, monocausal. Como entendo, desse modo o conjunto poderia permitir, junto com a crítica, um reformismo revolucionário, por partes, para além da velha oposição entre reforma e revolução, em que ele seria mudado todo de uma vez, por cataclisma dialético, como na representação séc. XIX de Revolução, de Marx.

O que eu gostaria de destacar, porém, é que nisso tudo Jaeggi compreende o real social inteiro como prática(s). Como Marx também compreende, e do que tira algumas consequências interessantes (Teses ad Feuerbach) - e mais outras deveria tirar, antidualistas e contextualistas. Em primeiro lugar, para Marx (aqui antipositivista não-linguístico), trata-se de não aprender o real social apenas como objeto ou intuição (sensível), mas, como prática, atividade - como prática material, sinnliche. Tomar o real como prática é também posição de Dewey (ver seu “O real tem uma natureza prática?”), de Peirce (a noção do objeto é a de seus efeitos práticos), e de Jaeggi. Acho que se não formos até aí perderemos o melhor de pragmatismo e materialismo.

Marx se preocupa-se, ademais, em definir também a nós (no capítulo da Ideologia Alemã sobre Feuerbach) como essa mesma atividade prática material: genericamente trabalho, produção, poiesis (não dominantemente linguagem). Isso como por um deweyano ponto-de-vista do agente; em Marx, de uma agência expressamente material e produtiva. O que nos parece melhor do que tomar nossa dimensão material apenas pelo lado do objeto e das circunstâncias, como determinação do “espírito” por condições materiais, à la materialismo séc. XVIII, do qual Marx nunca se libertou inteiramente.

Na mesma linha de uma “ontologia” e “antropologia” prático-materialistas, hegelianamente inspiradas mas não dialético-negativas, Marx refere-se à Fenomenologia do Espírito de Hegel como história da autocriação dos humanos por sua própria experiência e atividade de criação do mundo, i.e. por suas práticas de posição, apropriação, exteriorização, objetivação - de novo, poiésis. É a respeito dessa atividade, sempre material-espiritual, que Marx acrescenta, contra o subjetivismo “criacionista” da autoconsciência hegeliana, que Hegel vê que por sua atividade os homens põem objetos, mas não vê ao mesmo tempo, como Marx gostaria, que o fazem porque (nota bene) são postos por objetos (Manuscritos de 44).

Dizer práticas, em todo caso, deveria significar dizer relações - sociais. O que poderia sugerir uma dialética, interessante para a dinâmica social, mais determinada por criação e interação, do que apenas por negação e necessidade, uma dialética entre práticas, objetos e relações para além da moldura dialética-negativa de Marx. Jaeggi, de seu lado, fala muito em práticas como forma elementar do real social, mas não especialmente enquanto dotadas de dimensão material, sinnliche. Menos ainda fala em relações sociais e suas assimetrias, e quase nada no papel dos objetos na dinâmica de seu desenvolvimento e mudança. O próprio Marx reduz a dialética, entre práticas, objetos e relações, a um tipo particular de objetos, os grandes meios de produção, e no nível apenas da “infraestrutura”. Ademais prefere, na briga contra a autoconsciência de Hegel, para quem o ato de pôr/criar se afirmaria unilateralmente, resvalar, espinosamente, com aquele porque, para um substancialismo necessitarista-determinista, do ser humano como passividade, leidend-sein, para escapar da ideia de agência humana como indeterminada e aberta.

Por fim, para concluir suas considerações ontológicas materialistas, o pan-praticismo sinnlich de Marx, depois de assumir que práticas humanas são tudo, vai lamentavelmente (vide Teses) separar as práticas, para efeitos normativos, em dois tipos contrapostos, de modo nada pragmatista ou materialista. De um lado, a prática social em sua forma supostamente superficial, fixada, que Marx qualifica de judaica-suja, que entretanto é a dos seres humanos em geral; de outro, a prática virtuosa, crítica, revolucionária, de alguns poucos. A primeira é material, alienada, não livre, egoísta; a segunda é espiritual, genuinamente humana, negativa.

Aqui topamos com os famosos problemas normativos, nada pragmatistas, da TC originária, de Marx, que podem ainda estar na base da TC posterior, em qualquer de suas versões. Aqui as coisas se complicam, como Habermas percebeu, jogando fora, porém, seu lado prático-material junto com seu lado ruim, de “filosofia da consciência” e “do sujeito”. Uma TC pragmatista e materialista renovada não poderia passar batido por esse ponto. Tal discussão, entretanto, fica para outra coluna. 

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1 “Rahel Jaeggi e a Reconstrução Pragmatista da Teoria Crítica”, Anpof, 21/05/20.

2 Jaeggi, Kritik von Lebensformen, ou Towards an Immanent Critique of Forms of Life, Raisons Politiques, 2015/1.

DO MESMO AUTOR

Giannotti, 'a USP' e a filosofia brasileira (A propósito dos 40 anos da Anpof)

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

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