Razão ou fé? - Uma breve tentativa de entender a crescente violência de nossos dias
Fernando Mattos
UFABC
13/10/2016 • Coluna ANPOF
Está em nosso DNA cultural: guerras religiosas, como aquelas que marcaram o nosso passado, são uma brutalidade que não podemos aceitar. A razão iluminista apareceu justamente como o antídoto definitivo para evitar esse mal. Daí termos tanta dificuldade para compreender a cabeça dos terroristas islâmicos, que, em nome da religião, cometem atentados cujo objetivo mais imediato é matar a maior quantidade possível de "infiéis". Daí não compreendermos também outros conflitos cujo elemento de motivação é manifestamente irracional, como as brigas - muitas vezes mortais - entre torcidas de futebol. A rigor, só concebemos e toleramos o conflito entre seres humanos quando ele se dá no interior de certos limites, estipulados segundo os cânones da razão: disputas verbais, por exemplo, pautadas no critério do melhor argumento possível.
É assim que, supostamente, temos procurado viver nos últimos dois ou três séculos: em sociedades organizadas segundo códigos legais devidamente publicizados, que garantem certo espaço de autonomia para cada indivíduo, procuramos respeitar o próximo até o ponto em que ele próprio deixe de respeitar-nos. Neste último caso, instala-se um conflito, e ao Estado de direito caberá dirimi-lo, conforme a boa tradição jurídica. Mas há também os conflitos que dizem respeito a como deve ser constituída a sociedade, a quais as regras que devem norteá-la. Já não se trata, aqui, de conflitos entre membros da sociedade na afirmação de seus respectivos interesses pessoais. Trata-se de uma disputa pelo tipo de sociedade em que deveríamos ou gostaríamos de viver, e então já não basta recorrer ao Estado para dirimir a disputa, pois é ele próprio, ou sua constituição, que está em jogo.
Por outro lado, vivemos em sociedades desiguais: isso é também um fato histórico. As sociedades ocidentais modernas incorporam e regulam esse fato por meio do direito de propriedade (retomando, assim, elementos de escolas jurídicas do passado, como o direito romano). Mas há quem se pergunte - e qualquer pergunta é lícita, segundo aqueles mesmos cânones da razão que deveriam livrar-nos da superstição - se a desigualdade é "justa". E há quem responda que não; e há quem responda que sim. Dentre estes, há quem diga que sim, irrestritamente: a natureza que siga seu curso; há quem diga que sim, sob certas condições - seria preciso, por exemplo, garantir igualdade de oportunidades, para que a disputa entre os indivíduos seja a mais justa possível. Ou seja: diferentes opiniões sobre como gerir e distribuir as riquezas de nossas sociedades entre seus membros.
Pois bem: aqui deveria dar-se a tal disputa verbal argumentativa entre indivíduos racionais, uns dizendo que a competição é saudável para o ser humano, porque estimula a superação de limites e a progressiva melhora dos indivíduos; outros dizendo que a competição só é saudável quando realizada em condições minimamente equitativas, sem as quais seria uma competição ilusória entre gigantes e anões; e outros ainda dizendo que a competição é negativa porque joga os seres humanos uns contra os outros, tornando insalubre a convivência social. Em que pese a ampla gama de matizes a nuançar essas diferenças entre as opiniões, bem como a alta complexidade das sociedades a serem regidas segundo os princípios aí contidos, o que se tem é a disputa em torno de um único tema: o que é uma sociedade justa?
Quando John Rawls publicou Uma teoria da justiça, em 1971, ele fez questão de usar o artigo indefinido no título para marcar que se tratava tão somente de uma teoria possível, entre outras, e seu intuito era argumentar racionalmente, na obra, para convencer seus leitores de sua preferibilidade ante as demais. Boa parte da discussão posterior, dos anos 1970 aos anos 2000, teria em Rawls uma importante referência por ele recolocar a discussão sobre a justiça em primeiro plano, retomando a tradição do contratualismo moderno em nova chave - já atento, por exemplo, à necessidade de tratar a desigualdade como um dado constitutivo das sociedades ocidentais modernas. É como se, em Rawls, a tradição liberal se encontrasse com a tradição social-democrata para formar uma base conceitual comum, inspiradora de políticas de redução das desigualdades em muitos países (a começar pelos próprios Estados Unidos).
De lá para cá, porém, tivemos o refluxo neoliberal dos anos 1980-90, a tão celebrada queda do Muro de Berlim, a marcar o fim da experiência comunista soviética, e o enfraquecimento progressivo dos antes sólidos Estados de bem-estar social na Europa Ocidental. Embora o fim da União Soviética tenha talvez servido, num primeiro momento, para enfraquecer as esquerdas e suscitar um certo consenso quanto à irrevogabilidade da democracia representativa, o passar dos anos parece ter gerado um descrédito nunca antes testemunhado em relação a esse modelo de sociedade - seja por falhas pontuais e derivadas, como a corrupção, o excesso de burocracia etc, seja por problemas mais estruturais, relativos à própria adesão da sociedade civil a ele (sem a qual a política parece converter-se num seriado televisivo, em geral de mau gosto). Nesse quadro, o debate que se estabelecera sobre uma base minimamente comum entre os anos 1970 e 2000 parece não mais funcionar: desfez-se qualquer consenso quanto ao modo de articular liberdade e igualdade (os dois princípios fundamentais da democracia ocidental, como bem mostrara Rawls), e nos vemos de volta aos termos da discussão que vigia nos anos 1960, auge da Guerra Fria - ou liberdade, ou igualdade.
Em que pese a simplicidade do diagnóstico, esta me parece ser uma explicação possível para a luta fratricida a que temos assistido entre nós, no Brasil e no mundo: de um lado os defensores da liberdade, de outro os defensores da igualdade; de um lado os defensores da competição, de outro os defensores da cooperação; de um lado os "coxinhas", de outro os "mortadelas"; sem que haja qualquer diálogo minimamente racional entre eles. É como se a comunicação estivesse inteiramente inviabilizada pelo fato de serem diversas - e antagônicas - as convicções de fundo, as crenças que animam a tomada de posição de um lado e do outro. Ainda que ambos digam querer "um mundo melhor", um "futuro melhor para o Brasil" ou algo do tipo, a vagueza da formulação torna indiscerníveis os verdadeiros motivos da oposição. O melhor de um não é o melhor do outro: as convicções são diversas, os sonhos para o futuro são, no limite, também antagônicos.
Qual a diferença de fundo? Aceitar tranquilamente a desigualdade presente, e acreditar que a luta para combatê-la deve dar-se no médio prazo, ou revoltar-se com ela e acreditar que a luta para combatê-la deve dar-se o quanto antes. Os primeiros poderão argumentar, valendo-se de muita lógica e empiria (ah, a ciência!), que essa luta será em vão se travada à revelia do mercado (ah, o mercado!). E os últimos poderão rebater, não sem boa dose da mesma razão "técnica", que nenhum indício empírico leva a crer que a luta terá maior sucesso se travada com base nas tais leis do mercado. Com relação ao futuro, portanto, nenhuma certeza e somente apostas. Para aquém da futurologia, no entanto, temos dois "tipos psicológicos" (para falar em termos nietzschianos) claramente discerníveis: o "senhor", que afirma o seu querer sem preocupar-se com as consequências de suas ações; e o "escravo", que reage à ordem estabelecida pelo senhor por considerá-la injusta, buscando combatê-la.
O próprio Nietzsche, é certo, diria que o "escravo" incorre num erro de saída: ele inventa a noção de "justiça" para servir-lhe de arma na luta contra a ordem do "senhor" - que o incomodaria, na verdade, simplesmente porque lhe é prejudicial. E seremos forçados a concordar com Nietzsche se ficarmos na tríade lógica-empiria-mercado: o que é "justiça", deste ponto de vista, senão um valor "inventado" pelo ser humano? A menos que desloquemos o nosso olhar para "fora" do âmbito empírico, isto é, a menos que interpretemos a realidade (esta mesma em que vivemos, e não alguma outra!) como algo mais do que o recorte operado no mundo pela intuição sensível, não poderemos discordar de Nietzsche e teremos de reconhecer, com Trasímaco, que a única "justiça" do mundo é a lei do mais forte. Viva a vontade de poder!
Mas será que não temos mesmo outra alternativa? Como já apontava o velho Kant, a moral, se existir, não estará fundada nem na lógica, nem na empiria, muito menos no mercado: sua sede seria a razão, enquanto um domínio necessariamente diverso do empírico; e a razão, não podendo demonstrar-se ao cético como uma forma de saber (Wissen), terminaria por demandar - que me perdoem os kantianos materialistas! - um certo tipo de fé ou crença (Glauben). Seria preciso, conforme a célebre formulação do segundo prefácio, suprimir o saber para dar lugar à fé, de modo a manter viva a esperança na humanidade: nosso ideal de justiça, o ideal igualitário "inventado" pelo escravo (que talvez sejamos todos, no fim das contas), poderá sobreviver ao ceticismo moderno se acreditarmos que a vida humana não se reduz ao estritamente observável.
O problema é que o domínio do não-observável - o oceano do supra-sensível, para usar uma conhecida imagem kantiana - está longe de ser um domínio de fácil acesso ou de águas tranquilas. Embora estejamos todos mergulhados nele, o que dele falamos, quando tentamos trazê-lo à palavra, é sempre obscuro e altamente impreciso: dificilmente nos entendemos. Mas é ele - esse emaranhado de pulsões, sentimentos e vivências ocultas da alma (aqui voltamos a Nietzsche!) - quem de fato preside nossas tomadas de posição a respeito, por exemplo, do que nos parece ser uma sociedade justa. E é ele, em última instância, quem preside também as alianças que fazemos, baseadas mais em gestos, olhares e empatias do que em argumentos e razões: sabemos quem está do nosso lado, e construímos um discurso comum, conjuntamente, a partir dessa base firme de uma crença partilhada. Mas quem está do outro lado faz o mesmo, e os dois lados não conseguem comunicar-se.
Ora! Como explicar a absoluta falta de diálogo a que assistimos hoje senão com base nessa dissonância de fundo, mais ligada à "fé" do que à razão? Como em outros momentos da história humana (momentos em geral sombrios, e de consequências catastróficas), a humanidade parece ter-se dividido em duas facções contrárias, cada qual se enxergando como o bem absoluto, e nada se mostra capaz de atenuar a tensão (porque nada nos convence de que não estamos do lado certo!). Pelo contrário: a tensão é crescente, e prenuncia um conflito de grandes proporções. Como a guerra convencional parece descartada, ao menos em larga escala (uma nova guerra mundial, por exemplo), somos levados a imaginar outras formas de vazão do impulso bélico, algumas delas já insinuadas: terrorismo, "pequenas" guerras periféricas, morte em massa de imigrantes, escravidão e fome em países periféricos, extermínio ou encarceramento em massa de parcelas substanciais da população (tão comum no Brasil e nos Estados Unidos), conflitos cada vez mais ostensivos entre policiais e civis e muitas outras formas de "microviolência" - inclusive essa brutal violência simbólica que temos presenciado no mundo virtual (redes sociais, listas de e-mails etc).
Em meio a esse cenário de caos e barbárie, somente uma certeza pode consolar-nos: estar do lado certo da história. Qual o lado certo? Eu acredito saber, mas meu leitor poderá discordar de mim - por razões que estão muito além do meu poder de persuasão. Lutemos então!
13 de Outubro de 2016.