Refugiados palestinos, os subviventes

William Costa

Professor de Filosofia da UECE

10/11/2023 • Coluna ANPOF

O refugiado caminha pelos escombros
(Maria Zambrano)

 

Quando a guerra acabar e nenhuma estrutura política, econômica, social e cultural etc. existir estavelmente, restará uma massa de mortos e subviventes nos escombros das antigas construções. O destino dos cadáveres será o apodrecimento a céu aberto e o sepultamento em jazigos de pedra, improvisados no terreno arenoso porque nem mesmo os cemitérios foram poupados dos bombardeamentos. Aos subviventes, haverá um porvir no qual a própria vida tenderá a ser arenosa demais para se localizar sobre alguma terra fixa. Quando a guerra acabar, não acabará a guerra, porque a questão não se esgota no cessar fogo categórico da posição de amigos-inimigos enquanto permanecer a perplexidade fundante e restante da ótica colonial. O conflito entre Israel e Palestina, outrora difundido como emergência do choque de religiões, é, na verdade, o produto histórico do processo de colonização em sua fase mais bem-acabada, tanto no sentido da destruição das estruturas físicas quanto com relação ao aperfeiçoamento do projeto de barbárie de negação de vidas humanas. O aprimoramento das técnicas coloniais não poderia desembocar em uma realidade mais ideal do que esta de nosso tempo. A construção de Estados de exceção permanentes como práticas governamentais (sobremodo por meio do uso dos dispositivos jurídicos de 1948 e 1949, chamados de regulamentos de emergência, de terras e bens ausentes e de demarcação de zonas de segurança), os campos concentracionários a céu aberto, as novas tecnologias de destruição em massa, o aparelhamento militar etc., o desrespeito aos Direitos Humanos, provam como o fundamento implacável do colonialismo melhorou as condições perversas utilizadas no nazismo para os fins do sionismo. Como nos lembram Edward Said (1979) e Ilan Pappé (2016), o processo colonial secular das potências europeias ergueu o panteão israelense no território palestino e imprimiu no imaginário social do povo judeu a ideologia sionista de que a tomada da terra prometida seria a única maneira mantê-los vivos no mundo com suas tradições e cultura.

Contudo, para sobreviver, os judeus sionistas afirmaram suas vidas a partir da negação de um povo com vínculos históricos, sociais, políticos, territoriais e culturais estabelecidos. A afirmação se fez e se faz pela negação do outro-palestino. O destino extraordinário dos palestinos diante do ímpeto afirmativo do Estado de Israel foi o mesmo dado pelos nazistas aos judeus: o exílio e a limpeza étnica. E, assim, os palestinos passaram a “ser exilados por exilados, [e] reviver o processo de desenraizamento nas mãos de exilados” (Said, 2000). Desde a limpeza étnica – Nakba –, o exílio tornou cerca de 6 milhões de palestinos em refugiados (UNRWA, 2022) – curiosamente, o mesmo número de judeus mortos pelos nazistas –, e rendeu à Palestina a marca de um campo a céu aberto em que indistinguem as figuras do aprisionado e do refugiado. Todos os palestinos estão confinados em faixas de terra apequenadas. Esse cerco histórico, antigo e ideologicamente sistematizado – como se vê em “A muralha de ferro” (1923), de Vladimir Jabotinsky –, produz a danação de um povo em sua própria existência e pertencimento. Palestinos são refugiados de seus próprios territórios, são a massa de seres humanos banidos de seus espaços de pertenças, do enraizamento da própria condição humana no ponto em que se encontram. “Não pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor” (Kristeva, 1994), eis o imperativo que pesa sobre a condição de exílio dos palestinos. É isto um palestino? Sim, é isto, um refugiado, um estrangeiro para si mesmo, um exilado, um recém-chegado a lugar nenhum, o abandonado pelo direito, o refugo do mundo.  

Em “Origens do Totalitarismo” (1951), Hannah Arendt observou a peculiaridade do fenômeno dos refugiados, apátridas e minorias.  Servindo-se do imperialismo colonial e das grandes guerras mundiais, quando muitos russos, búlgaros, romenos e húngaros perderam direitos, Arendt faz emergir o debate cirúrgico sobre os Direitos Humanos em tempos de esfacelamento de Estado-nação. Como se sabe, a grande proposta comunitária internacional de proteção da vida humana se tornou densa a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Em tese, não havia demérito nas propostas, mas isso não anulava o caráter inoportuno de tensões nos dispositivos jurídicos. Como compreende Arendt, à medida que os Direitos Humanos concebiam o homem em sua individualidade abstrata, um vulto cinzento encobria, de um lado, a massiva desnacionalização e a despolitização de povos, e a perda da cultura e do idioma, de outro. Esses desdobramentos motivaram Arendt a enxergar na promessa dos Direitos Humanos uma tentação aparente: o reconhecimento dos Direitos Humanos a partir do reconhecimento da cidadania. O acordo de saída esfacelava a própria lógica universal dos Direitos Humanos, já que condicionava a garantia formal dos direitos aos Estados soberanos. O reconhecimento da cidadania, como se sabe, é uma prática Estatal. O Estado reconhece o sujeito como membro de sua comunidade nacional e a ele concede direitos civis e políticos. Ora, o entrave à igualdade universal dos Direitos Humanos se forma nos próprios Estados por causa da desigualdade jurídico-política construída internamente por eles. O princípio da nacionalidade torna-se um dispositivo de cesura e controle, de inclusão e de exclusão, na forma antinômica homem-cidadão, porque inclui no rol de proteção jurídica o homem-cidadão e não o homem com suas diferenças reais.

Arendt nos permite ver a impotência dos Direitos Humanos no caso concreto de Israel e Palestina. Nenhum governo – e assim age Israel – protegeria povos sem vínculos com ele. Há sempre um risco de hospedar (do termo “hospes” – para lembrar de Benveniste e Derrida) o refugiado. O refugiado é uma ameaça de dissolução do dado, da nacionalidade, do direito territorial. Ele está encarnado de uma potência de mudança que, aos olhos coloniais, o faz ser visto como uma ameaça inesgotável. Todo refugiado é um terrorista em potencial, e todo lugar de abrigo de refugiados, vivos ou mortos, – como hospitais e cemitérios (termos que congregam a mesma estrutura da hospedagem e da hospitalidade – dos hospes) – é uma zona de perigo. Igualmente a Arendt, Giorgio Agamben se posiciona contra a projeção dos direitos transnacionais sob o estatuto das Declarações, porque entende preexistir nele um movimento ideológico descolado da prática. Nenhum dispositivo jurídico conseguiu blindar os massacres contra os exilados. Cada vez mais, a exclusão dos refugiados de garantias fundamentais provoca a naturalização do abandono humano em zonas de exceção. A vida abandonada é a vida nua. A vida nua é a vida destituída de sua condição humana, negada pela violência radical. A vida nua é a vida violentada no abandono e no exílio. “Começa o exílio quando começa o abandono, o sentir-se abandonado”, como diz Zambrano. O exílio é o desterramento dos laços simbólicos desse pertencimento.  O refugiado pertence a um bando de sujeitos banidos da proteção formal do direito. Mas que bando é esse senão aquele classificado como bandido por seus violentadores? Os refugiados abandonados exemplificam a vida nua exposta à negação radical. É um bando biológico, pária de seu próprio território, refugo do resto, subviventes dos sobreviventes do nazismo. 

O abandono do abandonado é a realidade concreta do subvivente palestino. Sem direito a ter direitos ou com direito a não ter direitos, os refugiados palestinos subvivem em condições indignas. A privação do mínimo (alimentos, medicamentos, infraestrutura, moradia etc.) como projeto de governo acutila a dignidade humana de um povo que faz do deserto sua morada, não como metáfora, mas como realidade. O refugiado palestino subvive na arquitetônica brutal dos escombros. Dos restos e como restos, com a escassez material e com a privação histórica da memória (como a “Lei Nakba”, de 2011, que prevê a retirada de financiamento a organizações que celebrem a independência de Israel como um dia do sofrimento do povo palestino), ele sequer alcança o estatuto de um sobrevivente. O refugiado palestino vive subjacente às condições mínimas da existência: não se trata apenas da privação da moradia, dos alimentos, da infraestrutura, mas também da castidade da condição de ser ser humano: a ele não é permitido sofrer, enlutar-se, rememorar, ser feliz, habitar sua terra, enterrar seus mortos e celebrar seus vivos. Nem mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reelaborada no final da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de evitar que barbárie semelhante àquela contra o povo judeu se repetisse, foi suficiente para impedir essa danação contra o povo palestino. Enquanto o humano desse grande dispositivo universal permanecer abstrato e confinado pela nacionalidade estatal, não haverá possibilidades concretas e imanentes de “uma vida”, mas apenas a subvida.

Quando a guerra acabar, não acabará a guerra, porque as muralhas físicas de ferro são apenas reflexo do abismo da muralha do abandono e do não pertencimento que condiciona o refugiado a caminhar, como exilado, pelos escombros da história. 


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In: Meios sem fim. Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. RJ: Rocco, 1994.

PAPPÉ, Ilan. A Limpeza Étnica da Palestina. São Paulo: Editora Sundermann, 2016. 

SAID, Edward. A questão da palestina. São. Paulo: Ed. Unesp, 2012.

______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Companhia das Letras, 2003.

ZAMBRANO, María: Los bienaventurados, Madrid, Siruela: 1990.

______. El exilio como patria. Barcelona: Anthropos Editorial, 2014.


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