Regeneração

Janyne Sattler

Profa. UFSC, integrante do GT Filosofia e Gênero e do Projeto Uma Filósofa Por Mês

07/03/2022 • Coluna ANPOF

Talvez no início não tenhamos nos dado conta. Ou tenhamos demorado um bocado para perceber de fato. Era óbvio que tinha alguma coisa estranha, senão errada, mas era difícil saber o que era, e estávamos muito longe ainda de nomear aquela sombra que parecia nos seguir quando líamos as ementas, as listas bibliográficas, ou as lombadas enfileiradas na biblioteca; quando nos sentávamos às carteiras desconfortáveis da sala de aula ou quando frequentávamos os auditórios cheios; quando recebíamos a loa do decote ou o olhar condescendente à objeção sugerida. Nos corredores, não chegávamos a comentar, mas sentíamos, ali à espreita, uma quase materialidade para aquele vulto.

Uma sombra de ombros gigantescos.

Ou talvez tenhamos sabido muito bem, sim, desde o início. Mas deixar passar batido e se fazer de ingênua era uma questão de sobrevivência. De sobrevivência acadêmica, também, claro. Teimar na aparência de regularidade e insuspeição nos dava ares de autoconfiança e quase bravura. E fazer de conta que o deslocamento sentido era coisa do nosso temperamento, apenas, explicava aquele desconforto e até mesmo nossa timidez. Não tínhamos estado sempre um pouco fora do lugar em várias circunstâncias? Não tínhamos nos achado sempre um pouco inadequadas naqueles espaços de maioria varonil? Não seria aquele apenas mais um dos nossos fantasmas inventados em meio às crises de doidice que nos eram reiteradamente lembradas?

Uma sombra de traços nitidamente brancos.

Mas se o medo, o embaraço, o silêncio e o vexame eram palpáveis, se a materialidade daquele espectro encontrava-se nos reflexos de nossos olhos, e se nosso refúgio compartilhado não passava de uma imensa perplexidade, então havia algo ali que precisava ser expresso, mostrado, e tornado finalmente real. Havia algo que precisávamos fazer ver, e tirar do canto escuro das histórias de fachada usadas para nos aterrorizar. Nos intimidar, nos inibir e nos coibir, nos vetar sem vetos oficiais, nos silenciar sem mordaças e, finalmente, nos petrificar.

Fazer ver. 

A onipresença de um vulto de homem. Branco. O Filósofo. 

A onipresença de ausências profundamente sentidas. Nós mesmas tornadas invisíveis pelos mais ricos estratagemas infligidos de autoquestionamento, de auto boicote, de autodesconfiança, de autocensura. Invisíveis e, ainda assim, profundamente marcadas. “Fomos todas lesadas, profundamente”. 

Fazer ver.

A onipresença de uma história contada para nos acomodar no conformismo de criaturas não pensantes. A onipresença de uma história.

Começamos então a perceber que o vulto tomava corpo. Ou um conjunto de corpos e de corpus bem específico. E se já sabíamos muito bem os seus nomes, começamos também a conhecer as suas intenções. Os seus motivos de univocidade parcial. Os seus motivos de escamoteamento, de vigilância, de reclusão e exclusão, de afastamento, silenciamento e violência. Os seus motivos de perseguição, degola e encarceramento.

Tudo isso sob a fachada da proteção à vulnerabilidade da nossa cabeça, leve e aerada demais. Sob a fachada da piedade por nossas autorrealizadas tentativas frustradas de seriedade. Sob a fachada da complacência por nossas aventuras textuais. Sob a fachada da concessão de espaço às poucas que sobrevivem a tanto medo e a tanta violência, sobretudo depois que passamos a nos autointitular filósofas feministas. Concessão de um título, de uma área, de um assunto, de um estilo e de um conceito. 

Começamos então a contrapor nomes, intenções, histórias e pluralidades. Daquelas que estiveram o tempo todo à sombra do Filósofo, e os nossos próprios nomes. Começamos a chamá-las, a fazê-las ser vistas e atribuir-lhes corpo. E começamos, lentamente, a nos regenerar. Como corpos filosoficamente lesados. Como corpos de mulheres filosoficamente petrificadas. Como corpos pensantes. Como corpos filosóficos, constituindo um corpus filosófico regenerado. 

‘Lesão’ significa marca permanente, e uma lembrança insistente dos arrepios provocados pela história única da filosofia. E de sua força hegemônica pungente.

‘Regenerar’ significa curar de sobreaviso e pelo sustento da coletividade.

Temos hoje certeza de que alguma coisa estava mesmo errada, a começar pela suposição de que somos ouvintes crédulas e passivas, e tolamente espantadiças. Contra essa suposição, no entanto, tomamos o espanto em nossas próprias mãos. 

Já nos demos conta. 

Não temos mais medo. 

Estamos agindo. 

 

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