Robôs, amor e empatia - breves notas

Aline Karen Cristina Canella

Doutoranda e mestre em Filosofia (PPGFIL/UCS)

15/05/2023 • Coluna ANPOF

A imaginação, segundo David Hume em “O tratado da natureza humana”, é uma faculdade capaz de separar todas as ideias simples que absorvermos a partir de nossa experiência sensível e uni-las novamente da forma que bem queremos (HUME, 2001, p. 34). Ainda assim, este estabelece que, mesmo se nossa mente faz uma transição entre ideias simples que não existe no mundo real, esses raciocínios não extrapolariam nossa capacidade cognitiva – respeitando as relações naturais daquilo que se é possível absorver através de nossos sentidos. 

O primeiro robô humanoide foi criado em 1939 e exposto na Feira Mundial de Nova York, ocasião que reuniu milhões de pessoas para a exibição de Elektro: um homem de metal de 2,1 metros de altura e cerca de 120 quilos. Esse gigante, no entanto, não possuía inteligência artificial – mas podia andar, mover os braços, girar a cabeça, contar os dedos e abrir e fechar a boca ao proferir um vocabulário de 700 palavras (LIMA, 2020, P.23). Antes mesmo da criação de Elektro, no entanto, a humanidade já concebia filmes com a temática: é o caso do filme Metrópoles, de 1927, que posteriormente serviu de inspiração para o robô “C-3PO”, personagem de “Guerra nas Estrelas”[1] claramente baseado em “Maria”, de “Metrópoles” (FLORIDI, 2015, p.2). Estes últimos, ao contrário de Elektro, representavam uma forma de inteligência artificial com similaridades às capacidades cognitivas de um ser humano pleno de suas faculdades mentais.

Se Hume estivesse vivo para presenciar a exposição de Elektro, ou para assistir aos clássicos do cinema sobre Inteligência Artificial, provavelmente chegaria à conclusão de que este surgiu a partir de três ideias simples, que podemos, para fins práticos, resumir em: metal, forma humanoide e capacidade cognitiva. Deixando de lado este cenário impossível, é necessário dizer que o assunto que aborda a inteligência artificial tem capacidade de mexer com o imaginário coletivo – e de 1927 para a atualidade, inúmeras produções cinematográficas abordaram o tema. É o caso de Love, Death & Robots [2], série de televisão de animação americana que inspira o nome deste capítulo.

Sinto em dizer que, apesar dessa introdução fantasiosa, delimitaremos um assunto muito mais palpável para a nossa abordagem, e este é: a empatia dentro das relações humanas permeadas pela tecnologia. Esta delimitação se faz importante para evitar o extravio da abordagem à questões estranhas ao que propomos brevemente debater (RUSS, 2010, p.20) tendo em vista o espectro atual do desenvolvimento da tecnologia humana. Em outras palavras, seria irrazoável contemplar à exaustão as relações humanas com uma inteligência artificial equivalente à razão humana de uma pessoa com faculdades mentais plenas, vez que tal tecnologia ainda não existe. Entretanto, a inexistência de uma inteligência artificial tão avançada não nos impede de especular. O que é proposto a analisar, portanto, é: as relações empáticas do ser humano para com as inteligências artificiais e tecnologias que dispomos na atualidade e especulações sobre inteligências artificiais. Para tal, em primeiro lugar, abordaremos e delimitaremos o que é a empatia que se pretende abordar. 

A nomenclatura empatia é relativamente recente. A partir do século XVIII Autores como David Hume e Adam Smith fundaram suas teorias morais no termo “simpatia”. No entanto, em sua essência, o termo simpatia empregado pelos supracitados autores se referia ao que hoje temos como empatia. Esse conceito está associado à capacidade de um ser consciente de si saber o que outro ser está sentindo, tendo como base suas experiências prévias e seu envolvimento emocional com o outro. Muitas obras também apresentarão a emparia como um elemento contrário à razão (KAUPPINEN, 2020). Como criaturas sociais a empatia constitui um instrumento importantíssimo para o avanço social.

Para a análise sobre a empatia no século XXI, analisaremos brevemente as proposições de Michael Slote, autor contemporâneo autodefinido “sentimentalista moral”. Para ele, a empatia é parte fundamental da aprovação moral, vez que o ser humano, como espectador, tem a capacidade de perceber se outro agente agiu ou não por preocupação empática. Dessa forma, uma consequente aprovação moral de uma ação levaria em consideração o sentimento reflexivo de empatizar com a preocupação empática que o agente tem com um terceiro. (SLOTE, 2010, p.33).  Por exemplo: Maria trouxe uma maça cortada ao meio e dois sanduíches para o recreio, sendo pressuposto dividir essa quantidade com Ana, que não trouxe nada. Supondo que Maria cede somente meia maça para Ana, que fica babando por um sanduíche, um terceiro observador perceberia que Maria não agiu com empatia para com Ana – e emitiria um juízo moral sobre essa atitude. Assim sendo, ações seriam julgadas como moralmente certas ou erradas – sendo as corretas aquelas feitas por interesse empático. 

Recapitulando o tema proposto para essa breve análise, tomaremos como relações humanas permeadas pela tecnologia aquelas entre os seres humanos e objetos tecnológicos. Para David Hume (2001, p. 512), em sua teoria sobre o prazer e o desprazer (ou vício e virtude), este alega que ao se excitar essas percepções advindas dos sentidos se é possível obter uma das quatro paixões, compreendidas em: orgulho, humildade, amor ou ódio. Hume alega que o prazer ou dor originados pelos objetos inanimados são incapazes de gerar essas paixões porque, em geral, estes não estipulam relações conosco.

Mas como explicar, apenas como um exemplo, aqueles que “terceirizam” relações, que antes somente poderiam ser humanas, para as máquinas? A empresa Abyss Creations [3], que fabrica bonecas sexuais com inteligência artificial, poderia discordar de Hume em um sentido: para eles não é incomum um cliente se apaixonar pelo produto. Mas a explicação de Michel Slote sobre os objetos inanimados pode elucidar essa questão – e nos ajudar a entender o que o filósofo escocês queria dizer. 

Objetos inanimados não podem nos prejudicar ou machucar como resultado de uma percepção empática reverberante. Portanto, não há como julgar uma boneca sexual por si mesma, já que essa não compõe um sujeito com capacidades racionais semelhantes às de um ser humano pleno de suas faculdades mentais. Ou seja, não achamos que uma boneca sexual é em si mesma indecente, e, ao contrário de possíveis donos e donas de bonecas sexuais, estas não se tornam alvos de aprovação e desaprovação moral (SLOTE, 2012, p.38). Ainda assim, somos capazes de projetar nossa humanidade para as coisas inanimadas, “emprestando” a estas características que, em última análise, vem de uma via única – são apenas impressões nossas. Eis que podemos justificar o amor pelas bonecas sexuais: ao entender que Hume se referia à possibilidade de julgamento moral e não ao apego a um objeto. 

Com isso, é possível concluir que a empatia não é um instrumento perfeito – experimentamos o mundo de formas singulares. Mas isso invalida sua existência? Aristóteles (2007), apesar de grande defensor da razão, em “Ética a Nicômaco”, chegou a afirmar que a prudência, ou phrónesis, que seria a sabedoria prática, não pode ser ensinada – diferente do criar, ou poiésis. Como se trata de um bem julgar reflexivo, ou seja, uma práxis, o único meio de adquiri-la seria a experiência. Ou seja, ainda que Aristóteles fosse defensor de uma filosofia primeira suprassensível, o mesmo também acreditava que quanto mais experiente um sujeito era, maior possibilidade este teria de agir com prudência e sabedoria. Ainda, a experiência sensível não pode ser ensinada – cabe a cada um aprender e senti-la de forma individualizada. 

Especulando-se a existência de uma Inteligência Artificial capaz de criar julgamentos morais: seria possível universalizar a ética? Para responder a essa pergunta, dentro da teoria sentimentalista moral proposta por Devid Hume e Michel Slote, primeiramente é necessário refletir sobre a premissa já exposta, em outras palavras, de que: é impossível para um pensador cuja mente já foi formada ao longo da vida por meio de estímulos de sentimentos, emoções e consequentes respostas emotivas, compreender de forma igual o pensamento de outro pensador. 

Da mesma forma, ainda que a máquina chegasse a uma solução moral, esta apenas compreenderia uma simulação do mecanismo social que já conhecemos: que poderia ou não ser aceito pelas pessoas. Ou seja, se as pessoas julgam por meio de instrumentos empáticos a partir da aprovação e desaprovação, uma máquina com a capacidade de reproduzir esses julgamentos não conseguiria chegar a uma conclusão é ética universalmente perfeita – assim como os seres humanos plenos de suas faculdades mentais e autodeclarados animais racionais de maior inteligência do Planeta Terra não conseguem. 

Isso porque nossas impressões e julgamentos estão sempre se modificando dentro do espaço do tempo, moldadas pelo tecido invisível das relações sociais: ou seja, somente podemos analisar hoje com um olhar crítico às morais impostas no passado porque nos encontramos experienciando uma moral diferente daquela.

Em conclusão, seria impossível conceber uma moral universalizada que fosse capaz de satisfazer a humanidade, uma vez que esta, a partir da teoria do sentimentalismo moral, pauta seus julgamentos morais pela experiência, que compõe uma espécie de instrumento social mutável altamente complexo. Ao mesmo tempo, a perspectiva de construção de uma relação empática com objetos inanimados, ainda que tecnológicos, só possível se considerada a partir da experiência sensível do ser com capacidade de experimentar sensações, não havendo, por obvio, um retorno do objeto inanimado: impossibilitando emitir juízos morais acerca do objeto em si mesmo.  

[1] Star Wars no idioma original, é uma franquia do tipo novela espacial estadunidense criada pelo cineasta George Lucas.

[2] Do Inglês “Amor, Morte e Robôs”, série exibida em formato de antologia no serviço de streaming (tecnolgoia de transmissão de conteúdo online) Netflix, produzida por Joshua Donen, David Fincher, Jennifer Miller e Tim Miller.

[3] BBC News Brasil. De silicone a inteligência artificial: a fábrica que constrói bonecas sexuais mais 'reais’. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-37492334> Acesso em: 19 mar. 2021.

REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973. 

BBC News Brasil. De silicone a inteligência artificial: a fábrica que constrói bonecas sexuais mais 'reais’. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-37492334> Acesso em: 19 mar. 2021.

FLORIDI, Luciano. Singularitarians, AItheists, and Why the Problem with Artificial Intelligence is H.A.L. (Humanity At Large). APA, philosophy and computers. Edição de Primavera de 2015, volume 14, n.2. Disponível em: <https://www.csee.umbc.edu/courses/graduate/671/fall20/resources/apaPC.pdf> Acesso em: 19. Mar. 2021.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Ed. UNESP. São Paulo. 2001.

KAUPPINEN, Antti. "Moral Sentimentalism". The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edição de Inverno de 2018. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/moral-sentimentalism/>. Acesso em: 29 out. 2020.

LIMA, Mayane Batista. Perspectivismo maquínico sobre um ponto de vista heurístico concernente aos ecossistemas comunicacionais. Diponível em: <https://tede.ufam.edu.br/bitstream/tede/7779/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o_MayaneBatista_PPGCCOM.pdf> Acesso em: 19. Mar. 2021.

RUSS, Jacqueline. Os métodos em filosofia. 1ª ed. Editora Vozes. São Paulo. 2010.

SLOTE, Michael. Moral Sentimentalism. Ed. Oxford University Press. New York: 2010.

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