Sobre a esquerda

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

14/11/2016 • Coluna ANPOF

O uso é a marca do significado diria Wittgenstein. O uso de um termo pode se tornar difuso ao longo da história, sobretudo quando se trata de um termo como o termo esquerda cujo alcance é capaz de transpassar meridianos. Desde a sua origem na revolução francesa aos dias de hoje o uso do termo esquerda nunca se mostrou unívoco e certamente meu texto não tem a pretenção de oferecer uma unicidade ao termo, especialmente na forma de um conceito fechado e absoluto; facilmente refutável pela complexa história do seu uso. Por isso, procederei por semelhança de família, a referência novamente é Wittgenstein, para tentar localizar o papel da esquerda numa democracia liberal ao que ela parece estar resignada.

Inicialmente, é importante mostrar que tanto o liberalismo, sobretudo o libertarianismo, quanto as posições marxianas, essas últimas que parecem compor a base ideológica da esquerda, têm teoricamente um inimigo comum, a saber, o estado. De fato, o estado, diferentemente da posição hegelina, nunca foi um fim em si mesmo para os liberais, nem para Marx; e mesmo a ditadura do proletariado teoricamente deveria ser encarada como um eventual ritual de passagem e nunca como um fim em si mesmo. Um rápido exame da história mostra, de modo pouco questionável, que o estado sempre esteve a serviço de certas elites que fazem uso do poder de polícia, do monopólio da violência próprio do estado, para manter certa ordem instituída, sobretudo, claro, a ordem econômica: impedindo tanto a apropriação coletiva dos meios de produção quanto uma política efetiva de livre mercado. Em suma, o que se poderia caracterizar honestamente como um elo comum, por razões distintas, entre posições de direita (liberal) e esquerda é o questionamento do estado a serviço da classe dominante.


No entanto, ainda que não seja preciso concordar plenamente com Fukuyama, com o diagnóstico do fim da história, a história recente tem mostrado que o Estado pode ser diminuído, mas certamente ele não será completamente extinto, de sorte que a democracia liberal, ainda que eventualmente não represente na radicalidade a posição liberal, tem sido posta, ao lado do princípio da não violência, como um valor irrevogável; traduzido na máxima atribuída a Voltaire de que se pode discordar de tudo, mas que se deve resguardar com todas as forças o direito à discordância.

Nesses termos, a história da política no ocidente, pós segunda guerra mundial, é uma história em que se procura garantir a democracia liberal; invariavelmente ameaçada por regimes ditatoriais na América Latina ou por golpes parlamentares e que conseguiu ganhar contornos mais definitivos na Europa apenas após a queda do muro de Berlin. Essa democracia parece ter sido assumida subrepticiamente como um valor universal para o ocidente e se dilata nos discursos tanto de esquerda quanto de direita para se constituir como uma cláusula pétrea para qual todas as posições políticas, por diferentes razões, convergem ou devem convergir para se manterem, pelo menos, no campo institucional.

Um dos efeitos disso para a esquerda é assimilação de uma posição política contrária à sua base marxiana não tanto pela negação de qualquer forma de ditadura, visto que houve e há a leniência com Cuba, mas, sobretudo, pela assimilação do Estado como a principal plataforma política de esquerda. O campo de batalha da esquerda passou a ser defesa da interferência do estado na vida social e na economia. Hegel e não Marx é a referência para a esquerda no sentido de que o estado passou ser um fim em si mesmo cuja forma extrema se transformou em regimes socialistas totalitários. Nesse ponto, o projeto revolucionário de Marx é substituído, na democracia liberal, por uma política do possível, a que muitos chamam de realpolitik e que torna a existência do Estado objeto de uma luta fundamental para a maior parte da esquerda (a excessão está nos escassos anarquistas coletivistas que não votam para não corroborarem a democracia liberal, mesmo que para isso seja necessário ser conivente, indiretamente, claro, com a eleição de pessoas como Crivela). Desse modo, a defesa do estado passa a ser uma bandeira incontornável da esquerda e ela se materializa na economia pela adoção de variações das posições de Keynes cujo foco consiste em fazer do estado, frente aos ataques libertários, a garantia da execução de uma regulamentação do mercado que possa financiar não apenas o pleno emprego, mas também pautas mínimas de direitos, tanto trabalhistas quanto básicos como educação, saúde e segurança, especialmente jurídica, os quais são rapidamente ameaçados nas crises econômicas.

A aceitação da democracia liberal não deixa alternativas à esquerda ocidental a não ser correr atrás de arranjos políticos capazes de converterem desenvolvimento econômico em bem estar social. A esquerda, portanto, depende do desenvolvimento capitalista para tentar, sim, apenas tentar, distribuir as riquezas de modo mais razoável, uma vez que a democratização dos meios de produção fica inviável com o direito à propriedade; igualmente inquestionável, na sua radicalidade, claro, nas democracias ocidentais e associado, estranhamente, à própria condição humana pelo direitos humanos.

À esquerda restou, por um lado, uma disputa com os liberais, institucionalizados, sobre o tamanho do estado de bem estar social e sobre quem deveria pagar a conta desse estado (distribuição de impostos); sem que isso signifique uma ameaça, de fato, ao sistema capitalista e, por outro, a defesa de direitos individuais (tradicional bandeira liberal, mas abandonada convenientemente pelos partidos de direita para garantir aliança com os conservadores), na forma do respeito às diferenças.

Estamos fadados a um campo de atuação política em que a aliança com o capital (lembremos dos grandes investidores não apenas das campanhas, mas também dos governos de Obama, Lula, Francois Hollande, para citar alguns)1 não apenas é incontornável como faz parte do processo da democracia liberal; sem nenhuma distinção de partido.

Se a desobediência civil, não necessariamente violenta, poderia ser uma arma política legítima, como sustentava Erich Fromm, para reverter a monotonia da democracia liberal e para se recuperar as posições marxianas, a sua assimilação contemporânea por meio das mais variadas ocupações ou pelos movimentos occupy, ainda não se configura como uma estratégia de atuação política unificada e suficientemente forte para destronar o que na origem era o inimigo da esquerda: o estado. Parece que não podemos, ainda por um bom tempo, abandonar a arena política institucional e temos que inevitavelmente entrar num jogo em que a moral quando não está completamente imersa numa zona cinzenta está, na melhor das hipóteses, caminhando sobre ela.

1 Mais recentemente, os lobistas de bancos, grandes indústrias e do recente setor de tecnologia têm passe livre nos corredores dos poderes constituintes da democracia liberal. O estado os financia com créditos, os protege, como no caso recorrente do socorro aos bancos, e por eles é alimentado não apenas na forma de imposto, mas especialmente nas campanhas eleitorais. Com o discurso de que a economia não pode parar, menos ainda quebrar porque o complexo sistema em rede da economia terminaria por afetar fortemente os mais pobres, está fora de ordem, para desesperos de liberais e marxinianos puro sangue, deixar de prestar a assistência aos parceiros do estado.

14 de Novembro de 2016.

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