Sobre a metafísica, ética e epistemologia dos vieses implícitos | Especial Minicursos XX Anpof

Felipe Nogueira de Carvalho

Professor (UFLA)

23/07/2024 • Coluna ANPOF

Uma série de estudos empíricos realizados principalmente nas últimas duas décadas mostram que a grande maioria das pessoas brancas testadas nesse paradigma possuem uma série de vieses raciais, que afetam, de forma muitas vezes inconsciente, sua capacidade de fazer bons julgamentos e suas percepções, comportamentos e interações com pessoas negras. No que talvez seja o mais conhecido desses estudos, o “Teste de Associação Implícita” desenvolvido por Anthony Greenwald e colaboradores (1998), as pessoas se mostraram em geral mais rápidas em associar rostos negros a qualidades negativas e rostos brancos a qualidades positivas, e mais lentas em fazer as associações inversas. Em um outro estudo bastante conhecido, Dovidio & Gaertner (2000) mostraram que empregadores brancos tendem a favorecer currículos de candidatos com nomes tipicamente brancos, e avaliar de forma mais negativa currículos de candidatos com nomes tipicamente negros, mesmo quando os currículos trazem qualificações similares. Além disso, há evidências de que rostos racialmente ambíguos são desproporcionalmente identificados como negros quando exibem expressões raivosas, e como brancos quando exibem expressões contentes (Hugenberg & Bodenhausen 2004), e que rostos negros com expressões neutras são mais prontamente categorizados como hostis em comparação a rostos brancos com expressões idênticas (Hugenberg & Bodenhausen, 2003). Finalmente, para citar um estudo brasileiro, em uma simulação virtual tanto policiais militares quanto civis brancos foram mais rápidos em disparar uma arma de fogo contra pessoas pretas que carregam um objeto suspeito não-identificado do que contra pessoas brancas (Lima et al., 2018). As evidências não param por aí, aferindo vieses raciais em em decisões judiciais no Brasil (Silva & Lima, 2016) e nos Estados Unidos (Blair et al. 2004), em atendimentos médicos (Leal et al. 2017), etc.

Todos esses resultados são explicados pela presença de “vieses implícitos” nos sujeitos testados, algo que poderia ser aferido empiricamente, permitindo intervenções cuja eficácia poderia ser comprovada através dos testes experimentais supracitados; se, após uma intervenção, os resultados dos testes fossem afetados positivamente, isso seria evidência de diminuição de vieses implícitos. Tal pressuposição gerou uma indústria milionária de programas de treinamento corporativo que prometem reduzir os vieses implícitos dos funcionários e empregadores de uma determinada empresa de modo a torna-la mais justa e eficiente [1]. Mas o que significa exatamente atribuir um “viés racial implícito” a alguém? Tais vieses podem de fato ser mitigados (ou eliminados) por medidas focadas na alteração de tais resultados experimentais? (Spoiler: não.)

Em psicologia cognitiva, “viés implícito” é um construto psicológico desenvolvido para explicar uma gama de fenômenos em que os comportamentos de um agente em relação a um determinado objeto x não podem ser explicados pelas crenças reflexivas e conscientemente acessíveis do agente sobre x, mas precisam apelar para atitudes em relação a x que supostamente operam “sob o radar” da consciência do agente. Tal construto surgiu com o desenvolvimento de medidas indiretas de atitudes nas décadas de 1970 e 1980, nas quais os sujeitos não são questionados diretamente sobre suas atitudes em relação a x, mas são instruídos a se engajar em tarefas que supostamente detectam expressões automáticas dessas atitudes. Como muitas vezes há uma dissonância entre as crenças reflexivas dos sujeitos e os resultados de tais medidas indiretas, estas últimas passaram a ser chamadas de “atitudes implícitas” ou “viés implícito”.

No entanto, mesmo que este construto tenha sido verificado por diversos testes empíricos, aplicado a uma ampla gama de fenômenos e utilizado como ferramenta explicativa em debates teóricos sobre o preconceito e a desigualdade racial, ele ao mesmo tempo levanta uma série de dificuldades filosóficas nos campos da ética, epistemologia e metafísica que merecem ser investigadas com maior afinco. O objetivo deste minicurso será, justamente, fazer tal investigação.

Em um primeiro encontro, após introduzir o fenômeno tal como aparece na psicologia empírica, iremos nos debruçar sobre questões que dizem respeito a metafísica dos estados mentais. Em outras palavras, que tipo de entidade psíquica seria um viés implícito? Enquanto alguns pesquisadores procuram trabalhar com categorias aceitas e incontroversas de entidades mentais (tais como crenças), outros argumentam que a peculiaridade dos vieses implícitos exige que ampliemos nossa ontologia mental de modo a incluir outras categorias, como “endossos irregulares” (Levy 2015) ou aliefs (Gendler 2008); outros, ainda, argumentam que vieses implícitos não devem ser compreendidos como estados mentais mas sim como perfis disposicionais (Machery 2016), hábitos corporificados (Leboeuf 2020) ou esquemas sociais (Haslanger 2008).

O segundo encontro será dedicado a questões éticas e epistemológicas. Em primeiro lugar, se vieses implícitos são, em princípio, inconscientes e não estão sob controle intencional do agente, este agente ainda pode ser responsabilizado por agir baseado em um viés implícito? Se sim, em que sentido? Se não, porque não? Como devemos abordar os vieses implícitos para que tenhamos uma boa conduta moral? Que tipo de ética precisamos para confrontar seriamente a questão dos vieses implícitos? Em segundo lugar, de que forma os vieses implícitos atrapalham nossas práticas de aquisição e transmissão de conhecimento? Em virtude de que? O que fazer para minimizar ou mesmo anular seus efeitos epistêmicos deletérios? Que tipo de epistemologia teremos uma vez que incorporemos os vieses implícitos em nossa análise teórica?

Finalmente, no terceiro encontro discutiremos a interface entre explicações psicológicas e estruturais sobre o preconceito e a desigualdade racial. Iremos nos perguntar sobre o escopo de explicações individualistas, tais como os vieses implícitos, e se tais explicações devem ser suplantadas ou complementadas por explicações estruturais que privilegiam práticas sociais e institucionais como ferramentas explicativas de fenômenos discriminatórios e da desigualdade racial. Seriam estas duas explicações de ordem diferente, ou será que podem ser de alguma forma compatibilizadas? Se sim, como? E onde estaria o viés implícito nesta compatibilização? Estas serão algumas das questões que encerrarão este minicurso.

[1] Para um exemplo informativo basta ver a página da empresa de consultoria CZK Diversidade, cujo programa de treinamento contra vieses implícitos conta com mais de uma centena de clientes, entre eles Banco do Brasil, Honda, Ipiranga, Leroy Merlin, Grupo Mafra, Monsanto, Mercedes-Benz, Oi, Samarco, entre outros (https://ckzdiversidade.com.br/consultoria-especializada/treinamento-de-vies-inconsciente-para-diversidade-inclusao/, último acesso em 11/07/24).

O minicurso "Sobre a metafísica, ética e epistemologia dos vieses implícitos" será ministrado pelo professor Dr. Felipe Nogueira (UFLA/GT Filosofia e Raça) no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.

Referências

BLAIR, Irene V.; JUDD, Charles M.; CHAPLEAU, Kristine M. The influence of Afrocentric facial features in criminal sentencing. Psychological science, v. 15, n. 10, p. 674-679, 2004.

DOVIDIO, J. F., & GAERTNET, S. L. Aversive Racism and Selection Decisions: 1989 and 1999. Psychological Science, 11(4), 315-319, 2000. https://doi.org/10.1111/1467-9280.00262

GREENWALD, A.G.; MCGHEE, D.E.; SCHWARTZ, J.L.K. “Measuring individual differences in implicit cognition: The implicit association test.” Journal of Personality and Social Psychology v.74, n.6, 1998, p. 464–1480

HUGENBERG, K. & BODENHAUSEN, G. Facing Prejudice: Implicit prejudice and the perception of facial threat. Psychological Science v.14, n.6, 2003, p. 640–643.

HUGENBERG, K. & BODENHAUSEN, G. Ambiguity in social categorization: The role of prejudice and facial affect in race categorization. Psychological Science v.15, n.5, 2004, p 342–345

LEAL, M. DO C. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, p. e00078816, 2017.

LIMA, M.E.O., ARAUJO, C.L. & PODEROSO, E.S. The Decision to Shoot Black Suspects in Brazil: The Police Officer’s Dilemma. Race Soc Probl 10, p. 101–112, 2018. https://doi.org/10.1007/s12552-018-9225-5

PRICE, J; WOLFERS, J. “Racial Discrimination Among NBA Referees.” The Quarterly Journal of Economics v.125, n.4, p. 1859-1887, 2010.

SILVA, Rogério Ferreira; LIMA, Marcus Eugênio Oliveira. Crime and punishment: the impact of skin color and socioeconomic status of defendants and victims in jury trials in Brazil. The Spanish journal of psychology, v. 19, e77, 2016.

DO MESMO AUTOR

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Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

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