Sobre a tolerância utilitária: a dimensão negativa do suportar

Flávio Rocha de Deus

Mestrando em Filosofia (UFBA)

02/10/2023 • Coluna ANPOF

A noção de tolerância tem sido uma preocupação recorrente ao longo da história da filosofia. Não foram poucos os filósofos e filósofas de incontestável relevância que já exploraram as dimensões e implicações desse conceito. A título de exemplo, para além dos mais ordinários – que encontramos em todo manual introdutório – como Locke, Voltaire e Stuart Mill; podemos citar em nossa contemporaneidade frutíferos pensadores como Albert Camus, Rainer Forst, Hannah Arendt, Martha Nussbaum, John Rawls, Will Kymlicka, entre muitos outros. 

A tolerância, em vias amplas, refere-se à disposição de aceitar e respeitar opiniões, crenças e práticas diferentes das nossas, mesmo quando discordamos delas. Esta virtude ética desempenha um papel fundamental na construção de sociedades democráticas e pluralistas, mas sua compreensão vai além de uma mera aceitação passiva. Neste contexto, exploraremos aqui neste texto uma possível complexidade da tolerância, destacando não apenas a sua face positiva de aceitação, mas também uma dimensão menos explorada: a tolerância utilitária, que é nosso principal foco, que, embora possa parecer um ato de suportar, esconde nuances que merecem uma análise mais aprofundada.

Ao que me parece o espectro da tolerância não se limita a um mero antagonismo dualista: intolerante/tolerante. Mas, no entanto, se mostra, ao menos, como uma trifurcação: Em um lado do espectro temos o intolerante ordinário, comum em todos os aspectos, dogmático pela própria natureza e publicamente se depara (ou deveria) com repressões coletivas e institucionais. Mais além encontramos o que aqui nomearemos como um tolerante ativo, que faz uso da reflexão constante e busca compreender e reconhecer o outro em si e por si. Este tolerante valoriza a autonomia moral de cada indivíduo e entende que a verdadeira tolerância não é simplesmente o aceite do outro no mesmo espaço, mas, busca ter um legítimo interesse pela existência do outro e por sua visão de mundo, buscando entende-lo com toda a alteridade possível. Já por fim, nossa terceira categoria, que escolhi chamar de tolerante utilitário, é uma espécie problemática e pouco lembrada, provavelmente, por ser mais sutil e pelos seus praticantes serem socialmente mais inteligentes. 

A tolerância utilitária não é um movimento ético, mas uma instrumentalização estética que busca evitar problemas cotidianos para melhor se adequar e adentrar a determinados espaços. É óbvio que ser racista, misógino, aporofóbicos, etc., em um departamento de humanidades (que são em sua maioria mais progressistas que os demais) é um sinal claro de estupidez de quem quer dificultar sua vida cotidiana. Apenas os idiotas que não querem ser chamados para festa alguma fazem isto; os mais espertos, que possuem melhores habilidades sociais para dissimular, apenas repetem nossas palavras de ordem “diversidade, pluralidade, inclusão” com a devida performance momentânea para convencer a todos a sua volta que ele acha “super legal” essas coisas novas, mesmo que não veja nenhum valor naquilo. A verdade é que facilmente se pode ser tolerante enquanto ignora e despreza o outro. 

O tolerante utilitário pode, em muitos casos, parecer cumprir seu papel social ao adotar uma atitude recorrente de passividade que evite os conflitos habituais. No entanto, essa abordagem pode revelar problemas significativos quando esta mesma pessoa é confrontada com situações em que a tolerância é verdadeiramente testada, especialmente quando há tensões ou desafios que não podem ser ignorados. Por exemplo, ao assumir cargos de poder em que o indivíduo tem em suas mãos o voto de Minerva para decidi a conclusão de conflitos ou avaliar (leia-se: hierarquizar) os atributos de outros para os fins institucionais mais diversos.

Em minha percepção, aquele que se encontra como um tolerante ativo (ou reflexivo), não enxerga o outro como um mero átomo social ao qual se deve apenas assumir de forma mecânica o reconhecimento da liberdade pública, mas o vê como uma existência interessante que, além de ser tolerada, deve ser entendida e, se possível, compartilhada e incorporada. O indivíduo utilitariamente tolerante é vergonhoso e deprimente. A exemplo de uma citação, os oito doutores desse espectro que encontro recorrentemente em minhas atividades semanais são apenas monges bem adestrados que aprenderam a não surtar imediatamente a cada vez que se deparam com aquilo que diverge de seu ser. No entanto, no trato cotidiano e nos momentos de poder, demonstram todas as rachaduras e lacunas de seu utilitário personagem público. Sabemos que, quando chegam em casa, desdenham daquilo que horas antes chamaram de “Interessante... Necessário... Potente...” e as demais palavras já habituais em nossos colóquios.

A exploração do espectro da tolerância destaca sua natureza multifacetada. A jornada pela compreensão da tolerância nos leva além da simples coexistência de diferenças e nos desafia a considerar o compromisso real com a aceitação e compreensão do outro. A "tolerância utilitária", embora possa inicialmente parecer um meio de evitar conflitos e se adequar à sociedade, revela sua fragilidade quando mais precisaríamos de um tolerante realmente ativo, que busca um entendimento autêntico do outro, valorizando não apenas a coexistência, mas o enriquecimento mútuo por meio da diversidade ativa.

 

 

 

 

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