SOBRE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

João Carlos Salles

Filósofo, reitor da UFBA e presidente da ANDIFES

22/09/2016 • Coluna ANPOF

João Carlos Salles (UFBA) 

Publiquei o texto abaixo em 24 de julho de 2006, saudando um passo importante na luta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia e da comunidade acadêmica pela volta da filosofia e também da sociologia ao ensino médio. Teci então vários considerandos e ponderações, pois julgava tratar-se de luta demorada, cercada de todos os cuidados, não devendo o bom ensino de filosofia ser confundido com falsas prestidigitações, meras doutrinações ou lugares comuns moralizantes.

 

Teci então vários considerandos e ponderações, pois julgava tratar-se de luta demorada, cercada de todos os cuidados, não devendo o bom ensino de filosofia ser confundido com falsas prestidigitações, meras doutrinações ou lugares comuns moralizantes.

A filosofia é inimiga da doutrinação e do autoritarismo, pois seu lugar é sobretudo o da reflexão sobre as condições de produção da verdade e não o da imposição forçada de algum pretenso discurso verdadeiro. A filosofia procura o convencimento e não a persuasão. E, por isso mesmo, exige provas, boas demonstrações, exercitando uma polidez do espírito necessária à formação da cidadania.

Nunca foi de estranhar que espíritos autoritários e espíritos medíocres queiram retirar a importância e o lugar da formação filosófica, mas é sempre assustador e surpreendente.

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UM BRINDE À FILOSOFIA!

João Carlos Salles

(Professor do Departamento de Filosofia da UFBA)

A filosofia volta ao ensino médio. E não foi um gesto burocrático, uma decisão distante do Conselho Nacional de Educação. Tampouco uma mera reparação ao desmando antigo da ditadura que nos suprimira filosofia e sociologia do antigo segundo grau. A decisão coroa antes um movimento amplo da sociedade, um certo clamor crescente e multifacetado por debates filosóficos, e ainda uma demanda por formação específica em filosofia, cuja motivação pode advir, por exemplo, de inquietações éticas em nosso cenário político ou de reflexões talvez mais desinteressadas sobre a ciência e a sociedade.

A decisão resulta ainda de justas reivindicações profissionais e acadêmicas, bem como de longa e intensa luta política, marcada muita vez por pequenas vitórias e grandes frustrações. Com efeito, uma mobilização política tenaz e, por vezes, sutil materializou-se em ações diversas, como a introdução progressiva da disciplina em muitos estados, a cobrança de conteúdos de filosofia em vestibulares, a organização de fóruns relativos ao ensino de filosofia, a criação de grupos de trabalho, a realização de encontros, a publicação de artigos e livros, a mobilização de sindicatos e sociedades científicas, e mesmo a redação de novas orientações curriculares, solicitadas e fomentadas pela Secretaria de Educação Básica do MEC – orientações que afirmavam a natureza disciplinar e obrigatória da filosofia e da sociologia bem antes da recente aprovação pelo Conselho.

Um brinde, portanto, à filosofia, como aliás o ergueu Emmanuel Appel aos signatários do manifesto pela sua reintrodução e como, nessa condição, pude responder com gosto e alegria! E um brinde também à sociologia, que, mesmo laica de nascença, não deixa de ser filha de Deus! Mas, agora sim que vencemos, vamos à luta. Afinal, bem o sabemos, apenas para falar de filosofia, ela não é panaceia nem placebo, não sendo por si miraculosa nem inócua sua presença disciplinar e obrigatória no ensino médio.

Não é panaceia, pois sua presença nos currículos não garante bons salários e professores bem preparados, com condições ótimas de ensino e aprendizagem, nem resolve de imediato importantes desafios materiais e didáticos. Mesmo nossos cursos de pós-graduação raramente possuem o que, rigorosamente, poderíamos chamar de bibliotecas; e, por outro lado, ainda caminhamos para consolidar em nosso país uma reflexão e uma experiência sobre o ensino de filosofia para essa específica faixa etária. Há assim profundos e permanentes desafios teóricos e acadêmicos, que precisamos e, confio, saberemos enfrentar, uma vez que a disciplina não gera sempre e por si um pensamento crítico e cidadãos plenos, nem pode, solitariamente, ser antídoto contra deficiências estruturais e imbecilidades de superfície. Como dizia um velho professor, conhecedor de feiras e mafuás, não cura lumbago nem frieira, por mera fricção no corpo ou na alma.

O bom professor de filosofia está longe de ser apenas um indivíduo experiente, cujo olhar maduro e um tanto culto empolgaria mentes sedentas de saber. Sua competência é antes uma bem formada em tradição disciplinar específica, no caso, em diálogo com obras clássicas e temáticas próprias, segundo procedimentos rigorosos (mesmo se diversos) de leitura e escrita, além de comportar uma atitude, bastante difícil, de guardiã do conceito, de lugar propício à reflexão, à crítica e, por isso, uma postura infensa ao preconceito. Assim, a filosofia não pode vir a ser, agora em tempos politicamente corretos, um substituto da antiga educação moral e cívica, provendo apenas um saber supérfluo e sem qualquer papel formador. E, nesse caso, não há meio termo: aulas de filosofia nunca são um placebo. Bem dadas, são formadoras. Se, porém, são mal dadas, afastam os estudantes de um saber que doravante passam a detestar, ou mesmo introduzem noções e estruturas de pensamento falsas ou amesquinhadas.

Um professor esforçado, mas sem formação adequada, costuma tornar-se um prestidigitador, atraindo a atenção do seu público a qualquer preço. E, nesse momento impróprio de uma sala mal constituída, quando profissionais mal remunerados e mal preparados procuram atrair a atenção de adolescentes dispersos, é comum o recurso a atividades lúdicas ou a temas de interesse imediato, fazendo passar o tempo em meio a algumas gotas de sabedoria. Entretanto, meros recursos didáticos sem boa formação em filosofia desarticulam conceitualmente. E poemas e filmes, por atrativos e profundos que sejam, não perfazem uma didática filosófica. Pior ainda, mensagens edificantes ou doutrinadoras podem simplesmente causar dano, por vezes irreparável.

Logo, a luta deve continuar. Uma das chaves fundamentais de seu sucesso até aqui foi uma mudança no quadro nacional dos cursos de graduação e pós-graduação em filosofia. Uma maior qualificação em títulos não equivale decerto a uma melhor qualidade, mas essas referências costumam variar em proporção direta e concomitante. No caso da filosofia, uma mudança nos interesses dos departamentos, com uma maior qualificação, implicou um aumento de cursos de pós-graduação stricto sensu, que passaram de 12, nos anos oitenta, para os atuais 30 cursos [hoje, são mais de 40]. Essa mudança afastou decisivamente os argumentos de quantos outrora temiam que a implantação da filosofia jogasse a disciplina na mão de padres, advogados ou outros profissionais, que com gosto se faziam passar por filósofos. O quadro atual nos permite confiar em condições plenas para a formação e a atualização de bons profissionais para esse novo mercado, em nada desobrigando o governo de prover condições adequadas para uma formação continuada desses profissionais.

‘Mercado’: não podemos esquecer aqui essa palavra. O ócio produtivo (essencial à filosofia) pode dar lugar agora ao negócio. Sem ingenuidade, talvez sempre precise conviver com ele e, em nome da especulação filosófica, saber repelir os meros especuladores do mercado. O campo agora é fértil, as ofertas passam a ser muitas. E muitos serão os empreendimentos e os aventureiros, novos livros e revistas, alguns de ocasião, podendo oscilar entre o simples inferno e as boas intenções. É preciso, então, ainda com mais cuidado, separar o joio do trigo, aprofundar o debate sobre filosofia no ensino médio e, por exemplo, iniciar processos sérios de avaliação de métodos e livros didáticos (um negócio de milhões no Brasil).

Um dos segredos do sucesso e da justeza da proposta de volta da filosofia ao ensino médio, devo repetir, é existência de uma forte rede de cursos de graduação e de pós-graduação em filosofia, cabendo registrar que cursos de graduação e de pós-graduação têm hoje processos de avaliação regidos por regras similares. Em tais cursos, se têm qualidade, ensino e pesquisa não devem dissociar-se. Só pode ensinar bem filosofia quem pesquisa, e só pesquisa autenticamente em filosofia quem sabe formar pessoas, o que também se expressa essencialmente no ensino. Dessa unidade entre ensino e pesquisa, entre graduação e pós-graduação, entre formação atual e medidas novas de formação continuada, já surgem medidas justas para nossa área, para o reconhecimento dos profissionais bem formados – aqueles que, a justo título, podem e devem formar nossos jovens. E aqui vale o princípio de Ariano Suassuna, que bem dizia que só se pode dar o que se tem e ensinar o que se sabe. Ou, simplesmente, jacaré não há de parir pomba.

22 de Setembro de 2016.

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