Sociedade de dois pesos e duas medidas

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

14/07/2022 • Coluna ANPOF

Existe uma grande diferença entre como o judiciário deveria se portar e como ele de fato se porta. Ele deveria julgar os membros das classes alta e baixa com o mesmo rigor. No entanto, o fato é que ele julga os membros das classes altas com mais leniência e os membros das classes baixas com mais severidade. A mesma coisa pode ser dita sobre o sistema de saúde. Não existe uma coincidência perfeita entre como ele deveria atuar e como ele realmente atua. As pessoas de pele mais clara costumam ser tratadas com mais cuidado do que as pessoas de pele mais escura. O ortopedista que me atendeu após um acidente de moto disse que eu não estava conseguindo dobrar o joelho por “frescura”. Só depois de um mês ele concordou em solicitar exames médicos adequados. O laudo voltou com uma lista assustadoramente longa de problemas. O meu joelho ficou permanentemente lesado. Não posso deixar de me perguntar se o ortopedista teria sido mais cuidadoso se eu fosse loiro ao invés de moreno, se eu tivesse olhos azuis ao invés de castanhos. Também não posso deixar de me perguntar se o tratamento teria sido ainda pior se eu fosse negro. Porque os negros são vistos como mais fortes, mais robustos, mais resistentes à dor. E essas são apenas algumas das perguntas que martelam em minha cabeça. 

O que vale para o judiciário e para o sistema de saúde, vale para nossa sociedade como um todo. O tratamento que você recebe nos shopping centers está intimamente relacionado a quanto você aparenta ter em sua conta bancária. O tratamento que você recebe nas universidades também está ligado à sua posição na malha de índices sociais dentro da qual estamos todos emaranhados e todas emaranhadas. O seu gênero importa. A sua nacionalidade importa. A sua cor da pele importa. A sua idade importa. A sua titulação importa. Nada disso deveria importar, mas tudo isso importa. Porém, o verdadeiro problema não está na diferença entre o que as instituições deveriam fazer e o que elas de fato fazem, isto é, entre suas diretrizes normativas e suas realidades efetivas. O problema não é que o desempenho delas frequentemente deixa a desejar frente aos seus ideais ou papéis formais – condenando inocentes à prisão, esquecendo equipamentos cirúrgicos dentro de pacientes, destratando clientes de baixa renda e pisoteando em quem desavisadamente se atreve a pensar. As instituições estão sempre suscetíveis a falhas. É razoável esperar que não funcionem com a impecabilidade das máquinas. O verdadeiro problema é outro. O verdadeiro problema é que suas grandes e pequenas falhas não atingem toda população de maneira aleatória. Elas atingem preferencialmente as minorias. As pessoas das classes altas podem, sim, ser injustamente condenadas, mas elas certamente não sofrem tanto com os erros do judiciário quanto as pessoas das classes baixas. 

O antropólogo Stuart Kirsch ficou surpreso ao descobrir que um dos artigos que submeteu à revista Anthropology Today foi enviado pelos editores à empresa mineradora BHP. Os povos indígenas jamais foram tratados com a mesma cortesia. O comediante sul-africano Trevor Noah observou que nos Estados Unidos “há dois diferentes sistemas de justiça (…). Há um para ricos, outro para pobres. Um para pessoas brancas, outro para pessoas negras.” O filósofo Julio Cabrera notou como o professor Ivan Domingues, em seu livro Filosofia no Brasil: Legados e Perspectivas – Ensaios Metafilosóficos, chegou a grafar três nomes de filósofos argentinos de maneira errada em uma só página, ao passo que não grafou de maneira errada o nome de nenhum pensador europeu “ao longo de todo o livro”. O pensador e ativista nigeriano Ken Saro-Wiwa acusou o governo britânico de usar “dois pesos e duas medidas”, uma vez que ele “faz uma barulheira sobre democracia na Nigéria e na África, mas dá seu completo apoio a ditadores”. O diplomata britânico Robert Cooper, por sua vez, disse que as potências atlânticas precisam usar “dois pesos e duas medidas” em suas operações internacionais, respeitando a lei ao negociarem com países ricos e desenvolvidos, mas usando as “leis da selva” quando atuando “na selva”. Esses e outros exemplos – alguns especificamente brasileiros – podem ser encontrados nos meus livros Oftalmopolítica e Sobre a leitura.

Em todas suas facetas e modalidades, a direita é uma defensora voraz do uso de dois pesos e duas medidas. Ela geralmente prefere não revelar as regras segundo as quais joga, mas às vezes aparecem entusiastas como Robert Cooper que soltam o verbo e confirmam nossas suspeitas. Já o desconforto com o uso de dois pesos e duas medidas é um dos signos da esquerda. Ele é um dos signos da esquerda pelo simples fato de que ela tende a ter uma reação visceral contra a injustiça. Não é que ela não cometa erros. Não é que ela não os cometa de maneira sistemática. Mas ela é nossa única esperança. A autoanálise e a autocrítica nunca foram bandeiras da direita. Se a esquerda frequentemente descumpre seu compromisso com o pensamento, a direita não sente necessidade nenhuma de cumpri-lo. O uso de dois pesos e duas medidas soa aos ouvidos do pensamento como unhas arranhando o quadro negro. Mas aos ouvidos da direita, soa como música.

O uso de dois pesos e duas medidas é uma característica marcante da civilização ocidental. Aliás, é bastante difícil imaginar como ela poderia preservar sua imagem de democrática, livre, justa e neutra sem fazer uso sistemático de dois pesos e duas medidas. A questão, claro, é que nossa subjetividade também está torta e inclinada. E assim o mundo circundante tende a nos parecer perfeitamente reto, perfeitamente alinhado, não deploravelmente torto e inclinado. Estamos tão descalibrados que se o mundo estivesse calibrado, ele iria nos parecer descalibrado. Somos nós mesmos e nós mesmas os agentes e as agentes que o descalibram contínua e ininterruptamente. Garantimos que ele funcione segundo dois pesos e duas medidas. Nos meus livros Sobre a leitura e Oftalmopolítica tento demonstrar – inclusive por meio de um experimento – que usamos dois pesos e duas medidas no próprio ato de ler.

Acho que esse é o contexto ortogonal – ou o contexto sincrônico – contra o qual deve ser lido o problema da filosofia no Brasil, recentemente discutido por Márcia Tiburi, João Teixeira e Claudinei Luis Chitolina. O uso de dois pesos e duas medidas é um legado colonial. Mas ele é um legado colonial por ser um legado ocidental. A Europa não exporta apenas pensamento. Ela também exporta seu avesso. O uso de dois pesos e duas medidas é acalentado desde a Grécia Antiga. Ele nos diz respeito em mais de um sentido. Primeiro, ele é um dos nossos problemas endêmicos mais elusivos e persistentes. Segundo, ele satisfaz a exigência de universalidade frequentemente apontada como obstáculo ao próprio sentido da pergunta por um pensamento filosófico brasileiro. Terceiro, apesar de haver uma consciência dispersa e fragmentada sobre o problema do uso generalizado de dois pesos e duas medidas, até onde sei ele não foi ainda devidamente explorado e discutido. Por fim, ele é um dos processos cognitivos que trava o caminhar da filosofia brasileira. Mas ele também mostra que é possível, sim, dar uma contribuição ao debate internacional sem ignorar o que está acontecendo na esfera local.

Talvez valha a pena assinalar que o problema do uso de dois pesos e duas medidas pode reconfigurar nosso entendimento sobre o preconceito. Ao introduzir na equação a ideia de relação, ele mostra que o preconceito não precisa ter feições negativas. Para haver preconceito, basta haver diferença de tratamento. Quando pensamos sobre o preconceito, pensamos geralmente em situações como S1 ou S2, onde uma pessoa é tratada de forma positiva ou neutra e outra pessoa de forma negativa. Mas assim perdemos de vista situações como S5. As pessoas não precisam ser destratadas para serem discriminadas. Elas podem ser bem tratadas. Se houver quem receba tratamento melhor na mesma situação, poderemos falar em preconceito. O preconceito não se reduz a uma questão de afetos, pensamentos ou comportamentos negativos. 

Já se disse que vivemos numa sociedade do controle, em que somos cerceados e cerceadas até nos mínimos detalhes. Já se disse também que vivemos numa sociedade do cansaço, em que a violência está progressivamente migrando do mundo físico para o mundo psíquico. Mas nada me parece ser mais brutalmente verdadeiro do que o fato de que vivemos em uma sociedade de dois pesos e duas medidas. A justiça funciona de acordo com dois pesos e duas medidas. A saúde funciona de acordo com dois pesos e duas medidas. O comércio funciona de acordo com dois pesos e duas medidas. E a universidade, por fim, também funciona de acordo com dois pesos e duas medidas. Tanto que não é qualquer um nem qualquer uma que pode dizer em que tipo de sociedade vivemos.

DO MESMO AUTOR

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Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

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