Toda repressão será legitimada ou O dia em que o feitiço virou contra os (pretensos) feiticeiros e todo amanhã virou hoje
Mariana Lins Costa
Professora de Filosofia (UECE)
03/06/2025 • Coluna ANPOF
“Eu sou astrólogo / Eu sou astrólogo / Vocês precisam acreditar em mim / [...] / Eu sou astrólogo/ E conheço a história do princípio ao fim”
Raul Seixas. “Al Capone”.
“Mark Zuckerberg se declarou um defensor da liberdade de expressão, mas testemunhei a Meta trabalhar em estreita colaboração com o Partido Comunista Chinês para construir e testar ferramentas de censura personalizadas que silenciaram e censuraram seus críticos.”
Sarah Wynn-Williams, ex-diretora da Meta, em testemunho ao Senado dos EUA, em abril de 2025[1]
Esse texto apresenta uma hipótese que se pretende esdrúxula – embora talvez não o seja: a de que o dia 21 de maio de 2025 marca o momento em que o feitiço se virou contra aqueles que se julgavam imunes à sua lógica. Pois também o feitiço tem um logos – embora se trate de um logos que não é necessariamente fiel ao emissor, mas tão somente ao próprio logos que o configura.
Pois, neste dia, Elias Rodriguez, um cidadão norte-americano, 30 anos, residente em Chicago – descrito neste momento pela imprensa como tendo vínculos com grupos de extrema esquerda, marxistas e pró-Palestina – atacou e matou dois funcionários da embaixada de Israel em Washington, que além de inocentes, sob o ponto de vista das leis democráticas, eram jovens, namorados, prestes a casar.
Um ataque claro de terrorismo doméstico – nada de terrorismo simbólico contra entidades abstratas que convidam à interpretação, como nós brasileiros andamos nos debatendo por aqui –, mas assassinato por arma de fogo motivado por causa política, já que assinado com o slogan: “Palestina Livre”.
Pois a hipótese aqui apresentada – ainda em versão embrionária – é a de que esse evento marca o momento em que a nossa esquerda institucional, queira ou não queira, será empurrada para a jornada de reconhecimento de que o chamado “discurso de ódio” não é uma essência, mas uma designação política. Para o reconhecimento de que a tentativa de expulsar do espaço público discursos “extremistas”, tomando como métrica a normatividade democrática, não tem a ver com moral e nem sequer com constitucionalidade. Trata-se da construção de um dispositivo que, ao rejeitar o que é “ódio” (um afeto, inclusive, primário segundo Freud), cai na armadilha de não identificar que discursos rotulados como “extremistas” podem, em diferentes contextos, servir tanto à opressão quanto à emancipação — tudo depende de quem detém o poder (ou a ousadia) de definir o que é ódio. É sempre o caso de lembrar que os “mártires de Chicago”, homenageados no primeiro de maio, Dia do Trabalhador, foram condenados à morte ou à prisão perpétua não por seus feitos, mas por suas palavras. Porque publicaram e discutiram sobre receitas de bombas caseiras – para a autodefesa contra a violência estatal que literalmente convocava o exército para reprimir greves. Como disse um deles, Albert Parsons, ao ouvir sua sentença de morte: “Defendemos o direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, à liberdade de reunião, sem intimidação nem perturbação. Defendemos o direito constitucional à legítima defesa, e acusamos a acusação de roubar do povo dos Estados Unidos esses direitos duramente conquistados. Mas a acusação imagina que triunfou porque propôs executar sete homens”.[2]
Trump, ao criminalizar os discursos pró-Palestina como antissemitismo (Executive Order 14188), não negou a existência do discurso de ódio: ele sub-repticiamente o redefiniu para proteger aliados e silenciar o dissenso. Já se tratava aí de um exemplo claro de como o conceito pode ser instrumentalizado. Faltava apenas o gatilho – e ele foi acionado. Como sintetizou Benjamin Nethanyahu, ao se posicionar sobre o atentado: “‘Palestina Livre’ é a versão atual do ‘Heil, Hitler”.[3]
Mas o dia 21 de maio trouxe mais um ingrediente que finca essa virada do feitiço contra os (pretensos) feiticeiros de modo suficientemente definitivo na nossa atualidade imediata. Pois, nesse mesmo dia, na Sala Oval da Casa Branca, Donald Trump confrontou Cyril Ramaphosa com acusações de “genocídio branco” na África do Sul. O conceito de discurso de ódio foi assim simultaneamente sangrado nas ruas e encenado no palco pelo ex-apresentador de reality show Donald Trump que apresentou como “provas”: um vídeo contendo imagens de políticos sul-africanos negros cantando uma canção antiapartheid, Kill the Boer – que supostamente incitaria o assassinato de fazendeiros brancos (e cuja classificação como “discurso de ódio” é efetivamente tema de controvérsia nas cortes sul-africanas) –; imagens de cruzes enfileiradas numa estrada, sugeridas como sepulturas de agricultores brancos, embora fossem, na verdade, parte de um memorial temporário em protesto pelo assassinato de um único casal (de agricultores brancos) em setembro de 2020;[4] uma fotografia de um enterro coletivo que nada tinha a ver com a África do Sul – tratava-se dos restos mortais das vítimas de um confronto entre rebeldes e Forças Armadas da República do Congo –[5] etc.
Ou seja, no mesmo dia – que possivelmente será também amanhã –, tivemos um gatilho real e um gatilho simbólico: e eis que o feitiço, que não precisa ser verdadeiro para ser lógico, muda de mãos.
À guisa de complementação, vale mencionar que, já antes do encontro com Ramaphosa, no dia 7 de fevereiro, Trump havia assinado a ordem executiva 14204 que “prevê, ao mesmo tempo, o corte da ajuda dos Estados Unidos à África do Sul, e o asilo em território americano aos africâneres, os sul-africanos brancos de origem europeia”[6] – tendo sido, inclusive, o primeiro grupo desses refugiados recebidos também em maio.[7] Que Trump tenha garantido o status de refugiado aos sul-africanos brancos, enquanto cancela outros programas de refugiados para não brancos, foi, por assim dizer, suficientemente explicado pelo secretário de Estado Marco Rubio: “Eu penso que os Estados Unidos têm o direito de aceitar no país e priorizar a admissão de quem quiser que entre”.[8] Nesse sentido, vale também enfatizar, o que de todo modo não é uma surpresa, que o sul-africano Elon Musk – cuja família materna foi parar na África do Sul justamente porque o seu avô simpatizava com o apartheid[9] – é um dos que amplificam nas redes, valendo-se inclusive da sua inteligência artificial, o tal “genocídio branco”, enquanto denuncia as “leis racistas de propriedade” do país – contra os brancos obviamente.
Não a direita não é burra. Ao menos, não os que a operam. Burros somos nós, quando esquecemos que em uma sociedade marcada pela extrema concentração de poder e renda, assumir uma posição radical contra essa estrutura é ser “extremista” no eixo vertical. Que qualquer “extremismo” horizontal – seja da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita – não é extremismo, é confusão entre as partes do mesmo; é tentativa de vantagem mínima, de estar um pontinho acima, mas ainda esmagado. É esquecer-se que o extremo de uma pirâmide não está no lado oposto da base.
Como bem disse Emma Goldman, cujos discursos “obscenos” e “blasfemos” (na terminologia jurídica da época) lhe renderam dezenas de prisões e detenções: os “poderes que durante séculos escravizaram as massas desenvolveram um estudo bastante completo da sua psicologia”.[10] E ao que parece, para voltarmo-nos ao Brasil, talvez seja legítimo suspeitar que esses “poderes”, por meio de seus representantes e intermediários locais, nos tenham, de fato, enfeitiçado psicologicamente — a nós que não acreditamos em feitiços, mas cuja cegueira seletiva, excluída a tolice, só pode ser explicada por apelo ao sobrenatural. Pois, a despeito de todo nosso amor declarado pela educação e pela informação verídica e factual, estamos a enxergar nos adjetivos que acompanham as chamadas instituições democráticas uma espécie de evidência de que estaríamos diante do imperativo categórico encarnado contra o autoritarismo, como se não houvesse um peso e duas medidas, como se tivesse nos sido lançada uma poeira mágica nos olhos com o alinhamento pontual do Supremo Tribunal Federal aos valores progressistas durante o governo Bolsonaro. Uma poeira capaz de provocar amnésia coletiva histórica e transformar o mesmo Supremo que se calou diante de um impeachment sem base jurídica — e que endossou os abusos da Lava Jato — em baluarte da democracia. Um feitiço capaz de fazer esquecer um golpe bem-sucedido, aquele do “Supremo com tudo”, e achar que a democracia será assegurada por meio da repressão estatal da mentira e do “discurso de ódio” professados por aqueles reles civis do golpe fracassado, como era o caso do capitólio de Trump no ontem dos EUA que já não é mais hoje, diferentemente do dia 21 de maio de 2025, que, segundo a nossa hipótese, será também amanhã.
Pois o feitiço, assim como a acusação de “discurso de ódio”, não precisa de verdade, nem de moral para operar. Move-se como estrutura, como forma que (infelizmente) independe do conteúdo. E ao mudar de mãos, não se desfaz — apenas repete a lógica que o sustenta, agora sem disfarce.
Como diria Raul: “Hei, Lampião, dá no pé, desapareça — pois eles vão à feira exibir tua cabeça.”
Notas
[1] https://www.indiatoday.in/world/story/meta-worked-hand-in-glove-with-china-censorship-betrayed-us-values-shared-user-data-whistleblower-sarah-wynn-williams-2707845-2025-04-12
[2] https://www.marxists.org/subject/mayday/articles/speeches.html
[3] https://x.com/Kaizerrev/status/1925677824817381526
[4] https://www.bbc.com/news/articles/ce9vxve994ro
[5] https://www.reuters.com/world/africa/trumps-image-dead-white-farmers-came-reuters-footage-congo-not-south-africa-2025-05-22/
[6] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy9lzgj4xwvo
[7] https://www.bbc.com/portuguese/articles/c201n7y1krgo
[8] https://www.youtube.com/watch?v=uEPkLhZa-DA
[9] https://www.theguardian.com/technology/2025/mar/10/making-of-elon-musk-childhood-apartheid-south-africa
[10] Emma Goldman. O indivíduo, a sociedade e o Estado, Tradução, introdução e notas Mariana Lins. São Paulo: Hedra, 2023, p. 54
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.