Três lembranças, que já estavam anotadas, e uma dedicatória recentemente compreendida
Bento Itamar Borges
Professor de Filosofia da UFU (aposentado)
05/08/2021 • Coluna ANPOF
O programa era de outro partido. Nosso Professor Ernildo Stein levou muito a sério o livro do Giannotti e até montou um curso na pós da “URGS” para analisarmos Trabalho e reflexão, ainda quentinho da gráfica. No fim do primeiro semestre de 1983, o autor uspiano deu o ar de sua graça no Instituto Goethe, para uma conferência. Seguiu-se o esperado debate, com troca de farpas e outras gentilezas acadêmicas, vênias e provocações. Na aula seguinte, Stein voltaria logo a Max Weber ou Habermas. Todavia, teve que driblar antes a pergunta de um aluno. Era só para reanimar o entrevero, mas Stein tratou logo de liquidar parte da ementa, com curta e lacônica declaração: “Bah! Esse livro é o programa político do PT...” Na verdade, logo veríamos Giannotti associar-se ao colega de firma e futuro senador FHC, o que traria muita água para o moinho do recém-criado PSDB. Juntos no Cebrap e, depois, por algum tempo, em Brasília, onde Giannotti atuou como conselheiro privilegiado do presidente tucano. Em um dos fascículos que levava para cada seminário – e um deles entraria para a categoria de “Überseminar” – Stein abriu um parágrafo com a poética e sonora frase: “Giannotti já notara...”, etc.
A super-medida Nosso professor Ernildo Stein, em 1983, lia com a turma da pós o livro que Giannotti viria em breve discutir no Instituto Goethe, Trabalho e reflexão. Em um desses seminários preparatórios, eu aqui elaborei uma questão muito séria, profunda, se me permitem, que depois nosso mestre levaria para debater com o autor paulista convidado a Porto Alegre. Era e é de fato um problema fundamental (top trend na aulas de Stein por uma década), que cobrava uma reconsideração do insuperável recurso ao transcendental, fosse regulativo ou constituitivo. Não me lembro da resposta de José Arthur e não me incomodou se meu nome não fosse citado no debate – casa cheia – como autor da elaboração. E era essa uma dificuldade para o esforço argumentativo de Giannotti e demais filósofos que esperam ultrapassar Kant e outros idealistas. Admito que talvez eu não conseguisse sustentar uma tréplica, mas é claro que mestre Stein poderia fazer melhor. E fez. O que interessa hoje é que eu me lembre, quase quarenta anos depois, da problematização por mim levantada dias antes: A) Giannotti discorrera demoradamente sobre a medida do trabalho, do tempo, da mercadoria – e já não me lembro se ele citou mais Weber e Parsons que Marx naquelas seções; B) Giannotti também reflete em sua obra (trabalho, enfim) sobre a medida do salário, da valia, da mais-valia, etc.; C) Mesmo sem entrar na conversa sobre equidade, simetria, justiça, etc. cabia então perguntar se há uma super-medida sempre anterior que possa fundar como parâmetro comum essas duas medidas, ambas: uma pré-medida geral, uma super-medida transcendental, como condição de possibilidade de qualquer medida ou medição, etc. Enfim, o tal “mirante privilegiado”, conforme vocabulário de meu breve professor Paulo Arantes, em 1991. Não por haver dado munição para uma briguinha entre dois grandes filósofos no Brasil, mas... pela constatação da lacuna na reflexão sempre em desenvolvimento. Por esse último motivo, avalio esta como uma das minhas grandes contribuições ao debate nesse campo do pensamento, até os vinte e sete anos. Fico feliz de novo, ao falar de nossos mestres e desses eventos, dos quais não resta comprovante algum, pois não havia plataforma lattes e nem essa obsessão por pontos na carreira. (E nem essa onda obscurantista terrível que estamos atravessando.)
Sobre o edifício da dialética. O filósofo J. A. Giannotti era brilhante e eloquente; mantinha sua pose de catedrático na USP e dava rumos ao Cebrap. Merecia, sem dúvida, a fama e sofria as consequências da exposição. Pensamento ágil e presença de espírito em debates acadêmicos, como também incisivo, como sucedeu em um raro evento sindical. Foi enviado para o congresso da Andes, Juiz de Fora, 1988. Como diria o Sebastiãozinho Nery, eu vi, eu estava lá. Do lado da CUT, o Jair Meneghelli perdeu a paciência, esmurrou a mesa e disse que nunca tinha visto categoria mais enrolada que a dos professores, pois demorava demais para se filiar. E Giannotti compunha a turma contrária à filiação de intelectuais no bloco dos metalúrgicos. Caiu num entrevero, em que marxistas no plenário apelaram para a figura de um Hegel invertido: alguns acusaram o mestre uspiano de botar Marx mesmo de “ponta-cabeça”! Giannotti não se impressionou e desbancou a mesa toda com a genial réplica: “Tanto faz girar a coisa para lá ou para cá, pois o edifício da dialética...é redondo!” Arrasou. Tive que aplaudir a verve do mestre e sua ousadia, embora o argumento dele não me dissuadisse. Afinal, eu era delegado de base, vinha pra votar sim, em nome de minha AD. Mas ele, Giannotti, parecia ter o direito e a incumbência de ser também imponente. Na gíria sindical, diríamos que ele gostaria de tratorar a proposta de filiação à CUT, mas atuou com classe e estilo.
“Aos que partiram sem se despedir”
No último dia 30 de julho, a Folha de São Paulo lembrou a frase de Giannotti numa entrevista concedida dois anos antes ao jornal: “ninguém aprende a morrer”. A reportagem trouxe uma ótima foto, em que ele dá uma boa gargalhada. O fato é que, eventualmente, aprendemos um pouco mais sobre um filósofo depois de ler um elogio fúnebre – como foi o caso de Habermas sobre o colega Rorty: que ele tinha sido trotskista e coletava orquídeas selvagens (e apaziguara a peleja com os pós-modernos).
Ou então, quando voltamos hoje para nossa pequena biblioteca pessoal a fim de conferir como foi mesmo aquele autógrafo de Giannotti no livro Trabalho e reflexão. Parece que ele me chamou de gaúcho naquelas garatujas – ilegíveis e mais ou menos equivocadas, como quase sempre resulta em vernissages – e datou após a rubrica... como se ele não estivesse em Porto Alegre: “S.P. 24/7/83”
Reparo no outro livro, Origens da dialética do trabalho, relançado em segunda edição em 1985, que o nome de Cruz Costa aparece na dedicatória, após “Lupe”. E não ficou claro o motivo da deferência, após consultar meu exemplar em papel jornal, da edição de 1945: A filosofia no Brasil.
Outro mistério, muito sério, na dedicatória cifrada de Trabalho e reflexão: quem são aqueles “que partiram sem dizer adeus”?
As duas dúvidas se juntam e se esclarecem. Cruz Costa deve ter sido professor de Giannotti na USP e, depois, na banca de livre-docência, apontou no texto de Giannotti “trechos ambíguos a serem refeitos”, conforme prefácio de 1965, nos agradecimentos finais. Sobre Cruz Costa consta no Dicionário biobibliográfico do CDPB que “embora não tivesse militância política, foi arbitrariamente afastado de suas funções pelo governo militar em 1966”.
Ao final da apresentação do volumoso estudo Trabalho e reflexão, Giannotti explica: “Quando publiquei O Ardil do Trabalho, nos Estudos CEBRAP nº 4 (1973), este capítulo já dedicava o livro a todos aqueles que, desde 1964, estavam sendo mortos, presos ou fugindo às pressas, enfim, sem tempo para qualquer despedida. Aquele ano negro de repressão não permitia uma dedicatória mais direta; hoje conservo sua forma alusiva mas explicito seu terrível conteúdo. São Paulo, setembro de 1982”.