Um Ensino Médio de verdade precisa ter Filosofia
Comissão de Ensino de Filosofia da Anpof
06/12/2023 • Coluna ANPOF
O incremento do Ensino Médio tem reservado nuances bem particulares nos últimos anos. Com a inclusão de sua obrigatoriedade na Constituição Federal, inúmeras políticas públicas começaram a ser desenvolvidas na tentativa de ofertar para todos e todas uma educação de qualidade, especialmente na escola pública.
De forma particular, a inclusão do Ensino de Filosofia, em 2008, como disciplina obrigatória foi uma tentativa de suprir uma lacuna na formação dos/as estudantes matriculados/as na última etapa da Educação Básica. Mesmo que de forma desigual, todas as escolas do país tiveram de inserir a Filosofia nos seus arranjos curriculares.
Em seguida, um conjunto de ações contribuiu para fortalecer a introdução da Filosofia no currículo oficial, a exemplo do livro didático específico de Filosofia, o aumento de questões de Filosofia no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a realização de concursos públicos, a contratação de professores/as pelas escolas particulares, a inclusão da Filosofia no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no Programa Residência Pedagógica e a fundação de dois mestrados profissionais (PROF-FILO e PPFEN/CEFET-RJ), cujo objetivo é colaborar com a formação continuada dos/as professores/as de Filosofia que lecionam na Educação Básica.
O cenário caminhava para a consolidação do Ensino de Filosofia, inclusive com a demanda de ampliar a carga horária no Ensino Médio e de inseri-lo no Ensino Fundamental. Entretanto, com a aprovação da lei nº 13.415/2017, que ficou conhecida como novo Ensino Médio (NEM), a Filosofia perdeu seu status disciplinar, foi convertida em estudos e práticas, e seus conteúdos foram diluídos e fragmentados na área de conhecimento denominada Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA).
Sob muito protesto, especialmente por parte dos/as estudantes, professores/as e pesquisadores/as, as escolas começaram a implementar o NEM em plena pandemia do COVID-19. Pautado pelo argumento de que a reforma aumentaria a desigualdade social e revelaria o fosso entre escolas públicas e particulares, o que se viu nos últimos anos, em todo o país, foi justamente o que se previa.
Conteúdos científicos, humanísticos, artísticos e filosóficos, tão importantes para a formação cidadã e para o mundo do trabalho, foram substituídos por conteúdos, no mínimo, exóticos, como brigadeiro gourmet. Em outras situações, o viés ideológico do NEM ficou bem explícito, quando houve a inclusão de conteúdos voltados para o empreendedorismo, sem considerar a realidade social e econômica da maioria dos/as estudantes.
No caso da Filosofia, o NEM reduziu a já limitada carga horária do currículo oficial em 15 (quinze) estados. De igual modo, das grandes áreas, o primeiro olhar nas competências específicas da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas nos conduz a concluir que há uma predominância de conteúdos voltados para a Ética e Filosofia Política, desprezando áreas importantes como a Estética, a Lógica, a Metafísica e a Epistemologia.
O NEM prometeu implementar escolas em tempo integral, algo que as estatísticas apontam como realidade, especialmente na região Nordeste. De igual modo, afirmou que os/as jovens teriam a liberdade para escolher, de acordo com seu projeto de vida, o melhor itinerário formativo. Curiosamente, a expansão da carga horária na escola foi acompanhada do esvaziamento e da redução do tempo destinado aos conteúdos científicos, humanísticos, artísticos e filosóficos, provocando, muitas vezes, a ociosidade dos/as jovens nas escolas, notadamente as públicas, responsáveis por 88% das matrículas de todo o Ensino Médio.
Além disso, as condições estruturais e o déficit de professores condicionaram, de tal modo a oferta dos itinerários formativos que eles são disponibilizados aos/às estudantes de modo desigual, seja entre as redes de ensino ou dentro da mesma rede.
A insatisfação aumentou e foi canalizada em diversas manifestações ao longo dos últimos anos. O movimento #RevogaNEM ganhou as ruas e os espaços institucionais, ampliando a rejeição popular à lei 13.415/2017. Com a vitória do presidente Lula (PT), aumentou a esperança de que ela fosse revogada, o que acabou não acontecendo.
O Ministério da Educação (MEC) deliberou congelar o cronograma de execução das mudanças no ENEM para, em seguida, convocar uma consulta à sociedade tendo como eixo central o novo Ensino Médio. A resposta da sociedade foi taxativa, estudantes, professores/as, responsáveis pelos/as estudantes, pesquisadores/as, etc. repudiaram, através de vários mecanismos estabelecidos pela consulta, a lei nº 13.415/2017[1].
Entre as proposituras resultantes da consulta, houve uma que solicita a ampliação da carga horária destinada à Formação Geral Básica (FGB), outra que reivindica o restabelecimento da obrigatoriedade das antigas disciplinas, entre elas a Filosofia, e uma terceira que pede atenção aos diferentes contextos regionais para que a escola não aumente a desigualdade social existente no país.
O MEC encaminhou o Projeto de lei nº 5.230/2023 ao Congresso Nacional. Na prática, ele incorpora os elementos importantes da consulta. Entre eles, a proposta de ampliar o tempo destinado à Formação Geral Básica (FGB) para 2400h ao longo do Ensino Médio. Contudo, mesmo enumerando os conteúdos que devem constar nas áreas de conhecimento, citando a Filosofia entre eles, o projeto mantém a estrutura curricular da lei 13.415/2017, pautada pela desarticulação entre a FGB e percursos de aprofundamento, outro nome dado aos itinerários formativos, bem como a manutenção do vínculo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Há outros elementos preocupantes no interior do PL 5.203/2023, mas salta aos olhos a nomeação do ex-ministro da Educação do governo Temer, Mendonça Filho (União Brasil/PE), para relatar o projeto. Isso mesmo, o ministro que promoveu o Novo Ensino Médio foi designado para balizar as mudanças na lei criada por ele mesmo.
Não bastasse o nítido conflito de interesses, o deputado pernambucano, em diversos depoimentos, tem afirmado que vai reduzir a carga horária destinada à FGB que consta no PL 5.203/2023 para 2100h, ecoando os interesses daqueles que patrocinaram o NEM, a exemplo das ONG’s empresariais (Todos pela Educação, ICE, Instituto Reúna, etc.), do SEBRAE e do Sistema S (SESI, SENAI, SESC, etc.). O problema é que essa medida, caso seja aprovada, deve impactar na redução do tempo destinado para ensinar os conteúdos científicos, humanísticos, artísticos e filosóficos, entre eles a Filosofia, repercutindo diretamente na vida dos/as estudantes e dos/as professores/as.
O trabalho do relator também será o de avaliar as 79 emendas encaminhadas pelos/as deputados/as federais, blocos parlamentares e federações partidárias para depois incorporar ou não no relatório final do projeto de lei. Entre as emendas apresentadas, há a que defende a proposta de 1.800h para a FGB, como também há a que defende a revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no prazo de 12 meses.
No caso específico da Filosofia, o PL 5.203/2023, como foi dito, afirma que o ensino médio deve abordar conteúdos de Filosofia, algo que nos parece bem genérico. Nota-se a preocupação de alguns parlamentares, partidos políticos, blocos partidários e federações em garantir maior efetividade ao Ensino de Filosofia na última etapa da educação básica. Nesse sentido, foram apresentadas diversas emendas que serão apreciadas pelo relator, podendo ou não ser incorporadas ao texto que será votado no plenário da Câmara dos Deputados. As emendas foram propostas pelas deputadas Luiza Erundina (PSOL/SP), Sâmia Bomfim (PSOL/SP), Érica Hilton (PSOL/SP), Duda Salabert (PDT/MG), e pelos deputados Zeca Dirceu (PT/PR), Welter (PT/PR), Tarcísio Motta (PSOL/RJ), Chico Alencar (PSOL/RJ), Ivan Valente (PSOL/SP) e João Daniel (PT/SE).
Especula-se que Mendonça Filho (União Brasil/PE), na condição de relator do projeto, apresentará o relatório final para a Comissão de Educação até o dia 11 de dezembro, com a perspectiva de o texto ser discutido e votado no Plenário da Câmara no dia seguinte. Até o momento, o Ministério da Educação (MEC) tem assistido de camarote o debate em torno do PL 5.230/23, mesmo ouvindo alguns depoimentos do relator que contrariam o texto original.
Em suma, o Congresso Nacional, através dos/as deputados/as e senadores/as, precisa ratificar a vontade popular que foi manifestada na consulta promovida pelo Ministério da Educação. A ANPOF, de forma específica, tem lutado e continuará lutando para que a Filosofia tenha seu lugar cativo na Educação Básica. Sua presença ao longo de todo o Ensino Médio, com a destinação de uma carga horária mínima de 2h em cada série, é o melhor caminho para dar efetividade ao seu ensino no ambiente escolar, contribuindo, portanto, com a formação cidadã dos/as estudantes secundaristas do país e o seu melhor preparo para o mundo do trabalho.
Nota
[1] Na ocasião, esta Comissão produziu uma nota técnica sobre a Consulta, disponível no site da ANPOF: https://anpof.org.br/comunicacoes/notas-e-comunicados/comissao-de-ensino-de-filosofia-da-anpof-emite-nota-tecnica-sobre-a-consulta-de-avaliacao-e-reestruturacao-da-politica-de-ensino-medio