Uma escola para chamar de nossa

Ronai Rocha

01/11/2016 • Coluna ANPOF

Foi com algum desconcerto que percebi, como sindicalista, nos anos oitenta, que enquanto mantinha meus filhos em escolas públicas, a maioria dos meus colegas tratava de retirar os seus dela, matriculando-os no ensino privado e apostilado que hoje é moda no Brasil. Havia uma defesa da escola pública, por assim dizer, da boca para fora. Nessa perspectiva fico inclinado a ver nas ocupações das escolas públicas por seus estudantes, muito mais do que um protesto contra a reforma do ensino médio. O protesto parece também dizer respeito ao sentimento de estarem sendo ferrados em suas expectativas de aprendizagem. O ensino público brasileiro expandiu-se na virada do século sem conseguir manter o nível de qualidade que um dia teve. Quem tinha condições tratou de retirar seus filhos da rede pública. Nela, os salários são baixos, há absenteísmo e greves periódicas, as instalações são apenas razoáveis e a autoestima muitas vezes é baixa, pelas mais variadas razões. Entre a difícil saída e a lealdade sem fundamento, há, no entanto, o espaço para a voz. É com ela que os estudantes dizem que querem permanecer nela, mas em outras condições. Surgem assim os protestos em favor de melhores métodos de ensino, de melhores instalações, de um melhor relacionamento professor-aluno.


No outro lado do espelho das ocupações está a teoria curricular brasileira, uma espécie de terra arrasada e um tema difícil, que tomaria muitas páginas. A filósofa Cora Diamond chamou de dificuldade da realidade aquelas experiências que parecem resistir à nossa capacidade de pensá-los e que chegam a ser dolorosos em sua inexplicabilidade. Ela pensava sobre situações nas quais vemos as coisas de um jeito que pode ser difícil ou simplesmente impossível para outros. Não estou pensando aqui nos temas que a interessavam, a saber, algumas formas de nosso relacionamento com os animais – comê-los, por exemplo -, mas em coisas aparentemente mais triviais como o currículo, um tema que pode gerar sensibilidades tão diferentes como as que ocorrem hoje nos debates sobre educação, sobre a Base Nacional Comum Curricular, sobrea reforma no ensino.

Uma sociedade gêmea da nossa, a Anped, por exemplo, manifestou-se recentemente contra a própria ideia de uma Base Nacional Curricular. A Anped elencou nove argumentos contra a simples ideia de uma Base Nacional Comum

Curricular. 1 Em defesa dessa posição a Anped sustentou que uma base comum terá efeitos de uniformização e que a definição de itens de aprendizagem válidos para todo o país vai trazer “perigos para a democracia”, em especial por desconsiderar as diversidades e os “conhecimentos construídos antes e fora da escola, para além dos direitos de aprendizagem de conteúdos prescritos fora do universo social dos alunos”. A frase é um claro sintoma da dificuldade do currículo. Ela apaga a diferença entre o currículo e a pedagogia, pois sugere que os conhecimentos do cotidiano são parte de uma base curricular e depois flerta com uma visão romântica desse mesmo cotidiano, no qual os conhecimentos escolares são corpos estranhos. Não contente com isso o manifesto se opõe ao que chama de “centralidade conferida à lógica do ensino de conteúdos, tidos como universais e à sua seleção por especialistas”2.

O que me pergunto nessa hora é de onde brota essa dificuldade do universal? De onde surge essa desconfiança com os “conteúdos tidos como universais”? Como damos conta isso? Se uma associação nacional de pesquisa em educação tem dificuldades com o universal e com os especialistas, podemos ver a dificuldade do currículo como uma autêntica dificuldade da realidade. Apenas começamos a entrever o tamanho do encalacramento em que estamos.

O debate sobre a presença da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo, quando feita em terceira pessoa, aumenta as nossas dificuldades. Basta lembrar a forma espontânea com que Dilma Rousseff referiu-se ao atual currículo do Ensino Médio, em uma entrevista televisionada, em 2014: “O jovem do Ensino Médio, ele não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12 matérias Filosofia e Sociologia. Tenho nada contra Filosofia e Sociologia, mas um curriculum com 12 matérias não atrai o jovem. Então, nós temos que primeiro ter uma reforma nos currículos .”

Não é difícil imaginar a razão pela qual fomos lembrados por Dilma. Não por acaso Filosofia e Sociologia estão entre os últimos conteúdos a entrar de modo obrigatório no atual currículo do Médio. Os últimos a entrar seriam os primeiros a sair, parece ser essa lógica. A declaração de Dilma somente podia ser estranhada por quem não acompanhava o noticiário da área curricular, que faz muito tempo protestava contra o crescimento curricular por acréscimo ad hoc, que gerava o que foi chamado de “enciclopedismo curricular”. O mecanismo é bem conhecido e sua aceitação parlamentar mostra qual é cultura curricular do nosso Congresso. O governo anterior não apenas engrossou fileiras na crítica ao enciclopedismo curricular como tomou medidas práticas, autorizando a criação e o funcionamento de Licenciaturas por grande áreas. No que nos diz respeito, existem hoje em funcionamento várias Licenciaturas em Ciências Humanas, que hoje candidatam-se a assumir, em uma única matrícula, as aulas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia.

Seria muito conveniente que os riscos que estamos correndo hoje, de retirada da obrigatoriedade do ensino de filosofia, decorressem apenas do gênio maligno do atual governo. É verdade que a MP atropelou tudo e que isso é escandaloso e inaceitável. Mas o conteúdo da beberagem vinha sendo preparado faz um bom tempo, como uma daquelas ações sem agente de que nos fala Sartre na Crítica da Razão Dialética.

Quando a atual Secretária Geral do MEC, a professora Maria Helena Guimarães, diz que não é a favor da retirada da Filosofia e da Sociologia, mas que sim que elas sejam incluídas como conteúdos transversais, labora no mesmo campo semântico usado por Dilma. Fica cada vez mais evidente que a questão das áreas de conhecimentos, na proposta da MP 746, está sendo pensada com dois pesos e uma desmedida. Algumas áreas seriam compostas por “disciplinas”, outras áreas seriam compostas por “disciplinas” e por “conteúdos transversais”, e isso seria uma forma de aliviar o enciclopedismo curricular de que queixam tucanos e desplumados.

O que podemos fazer diante dessas unanimidades que parecem nos engolfar? A louvação de nossa capacidade formadora reforça o que já dissemos para justificar 2008. Precisamos de um discurso que não seja a reafirmação do mesmo. Precisamos, por assim dizer, de novas práticas. Se os estudantes ocupam as escolas para dizer que se importam com elas, o que devemos fazer para poder chamar essa escola de nossa? O que devemos fazer, no cotidiano de nossos departamentos, para mostrar que essa escola é também nossa? O que temos feito além da terceirização da conversa sobre currículo, pedagogia e recontextualização? Em qual medida temos presente que a expansão da Filosofia no Brasil está ligada à nossa base social, o curso de Licenciatura? Ou esquecemos que no começo de tudo era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da qual fazíamos parte imprescindível, voltados também para a formação docente? Os bacharelados e a pós-graduação foram conquistas tardias, que despontaram no começo dos anos oitenta. Qualquer desatenção aqui pode ajudar, no limite, a fazer voltar o lema funesto: os últimos, por vezes, são os primeiros.

No meio do recente fogo cruzado, há um mínimo do qual não podemos recuar. Trata-se, em primeiro lugar, da manutenção dos conteúdos de Filosofia na Base Nacional Comum Curricular; em segundo lugar, também como um patamar indispensável, que a escola tenha o direito de manter a Filosofia como melhor nos quiser: como disciplina ou conteúdo transversal. Essa opção, pelo que anunciam governantes de ontem e hoje pode ser retirada, em mais um gesto de dirigismo curricular improvisado. Essa proposta não combina com o fato que nossa disciplina, em poucos anos, mostrou que pode ser valiosa. Depois de quase uma década de ensino de Filosofia não é uma boa ideia simplesmente arrasar o terreno. Trata-se de uma provocação irresponsável ao que tem sido feito de bom, um atropelo à escola e ao currículo. De resto, não é segredo para ninguém que há muito que fazer para que nossa disciplina e nossa escola sejam menos partidas, mais republicanas.

1 Trata-se de um ofício da Anped dirigido ao Conselho Nacional da Educação, em novembro de 2015. Ele pode ser lido no setor de noticias do sítio da Anped, http://www.anped.org.br

2 As citações são do referido Ofício 01/2015/GR de 9 de Novembro de 2015, dirigido pelo Grupo de Trabalho sobre Currículo da ANPED ao Conselho Nacional da Educação.

01 de Novembro de 2016.