Uma história contada pelo colonizador - o 'ser mulher'

Aline Karen Cristina Canella

Doutoranda e mestre em Filosofia (PPGFIL/UCS)

09/05/2025 • Coluna ANPOF

A forma como narramos a história importa. Não apenas porque ela molda nossa compreensão do passado, mas porque ela opera como um instrumento político poderoso no presente. A história da chamada "civilização ocidental" é um exemplo claro disso: ela é construída sobre uma narrativa que desloca e silencia múltiplas vozes para afirmar uma origem supostamente superior, racional e europeia — uma origem que encontra na Grécia Antiga o seu berço idealizado. No entanto, como nos lembra Uiran Gebara:

[...] A Antiguidade é uma forma da História que organiza o passado do Mediterrâneo e arredores como passado “da” Europa. Ela é uma fronteira que recria aquelas sociedades antigas como uma etapa na evolução histórica da Europa; ela fez dos gregos e dos romanos, europeus. E isso mesmo quando eram gregos e romanos de regiões nada europeias, como, por exemplo, os gregos de Alexandria, ou os romanos de Antioquia. É por causa dessa incorporação e criação de fronteiras europeias sobre as sociedades antigas que ela é eurocêntrica. Porém, o estudo das sociedades antigas não precisa necessariamente ser eurocêntrico, mesmo porque aquelas sociedades não poderiam ser europeias se não havia ainda uma Europa. A narrativa do Ocidente moderno constrói o seu passado e a sua identidade incorporando alguns aspectos dessas sociedades e ignorando muitos […]

A história contada a partir do ponto de vista do colonizador recria as sociedades antigas como uma etapa evolutiva da Europa moderna, mesmo que os gregos de Alexandria ou os romanos de Antioquia jamais tenham se reconhecido como europeus.

Essa narrativa eurocêntrica não é apenas uma questão de delimitação geográfica, mas sim de colonialidade do saber. Ela seleciona o que importa para construir a identidade do Ocidente moderno, ignorando as histórias milenares da África, da Mesopotâmia, da Ásia ou das civilizações originárias do continente que hoje chamamos de América. No Brasil, essa valorização do passado europeu foi reforçada por um processo de colonização portuguesa que impôs, pela violência e pelo genocídio cultural, uma negação sistemática das raízes indígenas e africanas que compõem nossa identidade real. Em nome de uma história "civilizada", embranqueceu-se o passado. Tornou-se europeia a nossa origem simbólica, mesmo que a terra onde pisamos e os corpos que habitamos falem de outros começos — mais antigos, mais plurais, mais nossos.

A história foi, assim, transformada em uma ferramenta de poder: ela serve para justificar hierarquias, normalizar violências e construir subjetividades. Um dos principais alvos desse processo é a forma como o Ocidente construiu o gênero e, principalmente, o lugar da mulher. A pólis grega, exaltada como a matriz da democracia e da racionalidade, é também o cenário onde se inicia uma sistemática representação da mulher submissa.

Tanto o é, que o papel feminino na pólis grega tem sido, nos últimos anos, objeto de reavaliações críticas por parte da historiografia. Embora as mulheres fossem, em termos legais, consideradas pessoas livres — especialmente em comparação com os escravizados —, sua liberdade era profundamente limitada pela mediação masculina. Sua presença na esfera pública era sempre condicionada à figura de um tutor: pai, marido, irmão ou mesmo filho. Como observa Cuchet (2021, p. 283), sua participação em assembleias ou decisões políticas estava restrita a assuntos que lhes fossem diretamente concernentes, e mesmo assim, de forma indireta e representada.

Esse modelo de organização social reflete, desde então, uma dicotomia fundamental que atravessa toda a tradição ocidental: a separação entre o mundo público, político e racional — reservado aos homens — e o mundo privado, doméstico e emocional — atribuído às mulheres. Platão, em A República, mesmo ao admitir a possibilidade de que mulheres também possam governar, condiciona essa reflexão à sua função biológica de gestar e cuidar, o que já evidencia uma limitação essencialista do papel feminino. A mulher, ainda quando elevada ao plano da racionalidade, permanece prisioneira do corpo que pare.

A associação entre marido e mulher parece ser aristocrática, já que o homem governa como convém ao seu valor, mas deixa a cargo da esposa os assuntos que pertencem a uma mulher.  Se o homem governa em tudo, a relação degenera em oligarquia, pois ao proceder assim ele não age de acordo com o valor respectivo de cada sexo, nem governa em virtude da sua superioridade. Às vezes, no entanto, são as mulheres que governam, por serem herdeiras; e assim o seu governo não se baseia na excelência, mas na riqueza e no poder, como acontece nas oligarquias (EN, VIII, 10, 1161a, 35)

Essa visão profundamente enraizada explica por que, ainda hoje, figuras femininas relevantes do passado são envoltas em disputas simbólicas sobre seu lugar e sua reputação. Aspásia de Mileto é um exemplo emblemático: companheira de Péricles e presença marcante nos círculos intelectuais de Atenas, em revisões históricas, ela foi tanto acusada de prostituição quanto reconhecida como uma filósofa e exímia retórica.

A desconfiança em relação à presença feminina no espaço público é um sintoma persistente do projeto patriarcal ocidental. As mulheres que ultrapassam os limites impostos são frequentemente sexualizadas, desacreditadas ou silenciadas. Aspásia, como tantas outras, representa não apenas uma exceção, mas também uma ameaça: sua existência desafia as dicotomias fundantes da pólis e, por isso, precisa ser constantemente reinscrita como desvio.

Reescreve-se assim o ser mulher para ser um corpo impuro, um ser irracional, sexualmente perigoso. A mulher é marcada, desde então, por uma dualidade que permanece até hoje: ou santa, ou puta; ou mãe, ou devassa. A sua sexualidade deve ser controlada, silenciada, higienizada — e o corpo, domado.

O mito de Pasífae é uma ilustração emblemática dessa construção. Mãe do Minotauro, ela teria se apaixonado por um touro enviado por Posêidon e, com a ajuda de Dédalo, entrado em uma vaca de madeira para consumar a união com o animal. Desse ato de bestialidade nasce a figura do Minotauro.

No entanto, estudos contemporâneos sugerem que Pasífae, descendente do Sol e oriunda da Cólquida, foi originalmente uma deusa ligada à fertilidade e ao ciclo da vida — e que o touro era uma representação sagrada de Poseidon em sua forma arcaica (GOODISON, 2001, p. 77-88). Ou seja, o que era mito fundante, rito religioso, foi transformado em emblema de bestialidade feminina. A mulher, outrora deusa, vira símbolo de perversão sexual.

Essa releitura grega — e posteriormente europeia — de mitos arcaicos é exemplo de uma redução simbólica: mulheres poderosas são transformadas em monstros, sua agência é patologizada, sua sexualidade, demonizada. É parte de um processo mais amplo de dominação patriarcal que exige transformar a mulher em objeto — objeto a ser explorado, consumido, violado. A história do Ocidente, quando lida criticamente, revela que a opressão de gênero não é um acaso cultural, mas um projeto político.

Desfazer essas narrativas — romper com o mito fundador eurocêntrico e patriarcal — é uma tarefa urgente. Significa devolver às mulheres seus múltiplos passados e às sociedades colonizadas suas histórias negadas. Significa, sobretudo, recontar o mundo a partir de outras vozes e outros corpos. Porque a história, afinal, também pode ser território de luta.


Referências

CUCHET, Violaine Sebillotte. Quais direitos políticos para as cidadãs da atenas clássica?Disponível: https://periodicos.uff.br/helade/article/view/13280/8514.Acesso em: 22 set. 2021

CUCHET, Violaine Sebillotte. Cidadãos e cidadãs na cidade grega clássica. Onde atua o gênero? Disponível em: https://www.scielo.br/j/tem/a/wKZ3nkdNP833CgcBJ8c5kXs/?format=pdf&lang=pt.Acesso em: 22 set. 2021

GOODISON, L. From tholos tomb to throne room: perceptions of the sun in Minoan ritual. In: LAFFINEUR, R.; HÄGG, R. (org.). Potnia: deities and religion in the Aegean Bronze Age. Liège: Université de Liège, 2001.

GUEBARA, Uiran. Uma Antiguidade fora do lugar? Mare Nostrum: Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, São Paulo, n. 9, p. 57–76, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/marenostrum/article/download/138858/134202. Acesso em: 9 abr. 2025.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 9.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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