Uma homenagem ao centenário de Cornelius Castoriadis
Tiago Medeiros
Professor de Filosofia do IFBA
20/10/2022 • Coluna ANPOF
Celebramos, neste 2022, cem anos do nascimento de um filósofo subestimado. O pensador greco-francês Cornelius Castoriadis nunca foi devidamente notabilizado pela profundidade e magnitude de sua obra. Não dá para dizer que sua atuação como intelectual público, desde fins dos anos 1940, tenha sido pouco influente nos círculos intelectuais e ativistas, nem que o brilho e o vigor de seus escritos sejam despercebidos pela intelligentsia ocidental. Mas a sua envergadura é minorada em grande parte dos ambientes de discussão sobre pensamento social.
Castoriadis não é subestimado no que escreveu ou no que disse, mas no que sua produção representou para a interpretação de seu século e para a transição ao seguinte. Na enevoada fronteira em que se fixou, entre o crítico severo do marxismo e o revigorador entusiasmado de Freud, a totalidade de sua obra e sua persona intelectual ficaram demasiadamente associadas à caricatura do estudioso erudito e articulador competente do pensamento alheio, ou então à do integrante de uma dessas gerações de intelectuais rebeldes do século passado. Nem o próprio Castoriadis desmereceria essas atribuições; mas, restringi-lo a tais, não é justo. Pretendo, à guisa de homenagem, explorar o que há de menos discutido nos campos em que Castoriadis se fizera mais competente, isto é, de pensamento social, histórico, político e psíquico.
Podemos classificar a personagem como um crítico do Ocidente não tomado pela sanha antiocidental que pulsava em seu tempo e que hoje se encontra em franca apoteose. Sua atitude intelectual é a de um reformador ambicioso e diligente, não a de um apedrejador compulsivo e desnorteado. Castoriadis sempre atuou como reconstrutor do estado de coisas que o cercava.
Os intelectuais mais ouvidos e lidos de sua época compartilhavam uma mesma mensagem de oposição à civilização ocidental. No geral, as denúncias contra o eurocentrismo, o logocentrismo, o falocentrismo etc., que identificam esse “centro” com o Ocidente, eram variações do mesmo lastro opositor. Elas eram conjugadas a expedientes de desistência e fuga da massa de valores, ideais e instituições cultivados historicamente nos países do Atlântico Norte. Castoriadis reconheceu a pertinência ética e epistemológica das premissas que suportavam as denúncias, mas atribuiu a momentos da própria história ocidental o ideário com que enfrentar esses “centrismos”: o projeto que surgira com a filosofia e com a democracia ateniense e que teria se repetido com corpulência e vigor apenas uma vez após o experimento grego, no Renascimento europeu. Trata-se da autonomia, projeto que, segundo ele, jamais se fez visto em outras civilizações.
Naqueles momentos, o mundo ocidental teria tido seus ápices de construção institucional, criação artística e refinamento intelectual, em favor da prosperidade e do florescimento das pessoas comuns. A conquista desses benefícios era coextensiva à consciência – ou, em seus termos, à “significação social” – de que o mundo que integramos é nossa criação. Para Castoriadis, o mundo social-histórico é criação do humano, e cada indivíduo é um fragmento ambulante desse mundo que ele mesmo cria e reproduz. A autonomia é o complexo de significações que atribuem ao humano a condição de criador e não de paciente de sua circunstância. Na dimensão da psiquê, a psicanálise seria uma avenida de construção da autonomia; na da política, seria a democracia. É que autonomia é, acima de tudo, abertura de possibilidades, rompimento das clausuras cognitivas e organizacionais cerceantes.
A força da autonomia fica mais clara no contraste com seu correlato, a heteronomia: as significações que atribuem à totalidade do mundo, ou às suas partes mais importantes, uma origem exógena ao imaginário humano. Todo o escopo da heteronomia teria por consequência o entrincheiramento das condições de vida, a queda nos níveis de controle, deliberação e juízo, exercidos pelas pessoas. Ora, as montagens herdadas de organização dos domínios sociais, criticadas pelos contemporâneos de Castoriadis, são também significações heterônomas. Contra elas convém o apelo às significações concorrentes. A saída contra um Ocidente carregado de perversões e injustiças estaria em impor a ele o seu próprio projeto de autonomia, não em alvejá-lo precoce e erraticamente, sem fundamentar a crítica numa proposição quanto ao que deverá substitui-lo.
Esse ponto traz um segundo tema. A geração de Castoriadis, de intelectuais nascidos nos anos vinte, como Foucault, Derrida e Lyotard, estava, de alguma maneira, vinculada às insurreições do Maio de 68. Trata-se de uma geração não só mentalmente influente deste fato histórico, como também atravessada por seus desdobramentos. O que unia aqueles e outros autores era um repertório de intuições que enfatizavam os prejuízos gerados por uma mentalidade conservadora alçada ao poder e nele sedentária. Cabia aos intelectuais, especialmente aos filósofos, desafiar o vocabulário conceitual desse conservadorismo; à época, ele aparentava encontrar guarida no paradigma estruturalista de filosofia e ciências sociais.
Às voltas contra os constrangimentos engendrados pela proeminência do estruturalismo, empreendimentos revisionistas e críticos da noção de estrutura ganharam destaque e, com eles, movimentos eloquentes do período, como o desconstrucionismo, o pós-estruturalismo e, mais obliquamente, o pós-modernismo, vieram à luz. A mais contundente e profunda tese permaneceu – felizmente! – privada de um desses “ismo”: a crítica propositiva de Castoriadis.
No centro do pensamento castoriadiano está a noção de criação, o processo contínuo de instauração do novo a partir do nada. O ente do qual toda a criação é possível é o imaginário radical, uma parte da psiquê que atua como um vulcão em atividade constante, expelindo formas (eidos) sem compromisso com o real e com demandas de outra ordem. Dado que o indivíduo, em sua experiência primitiva, de mônada psíquica, pode habitar confortavelmente o mundo de suas próprias representações, as suas faculdades de sobrevivência são relativamente impotentes contra o desgoverno de seu imaginário. O ser humano é simplesmente inapto à vida. Somente o amparo fornecido pela instituição social – instituição em sentido amplíssimo: pacotes de significações que viabilizam a coexistência e que resultam do processo de autocriação da sociedade – o resgata. Ela, a instituição, transmite-lhe as significações da sociedade. Elas interferem na criação incessante do imaginário radical e o amolda ao social.
Mas a própria sociedade é um instituinte de si. A instituição da sociedade é o processo pelo qual ela inventa a si própria. Não havendo experiência histórica em que uma sociedade é a mesma ao longo do tempo ou cópia fiel de outra, a autocriação da sociedade implica sua singularidade. As sociedades só são iguais enquanto agentes instituintes de si. Quase tudo o mais difere entre elas.
O imaginário é a fonte das significações que constituem a sociedade. Logo, chame-as de significações imaginárias. O conteúdo das significações imaginárias da sociedade correspondentes à sua autocriação não pode ser compreendido pela noção totalizante de estrutura. Esta remete a uma certa organização de elementos conectados por elos de solidariedade recíproca disponíveis num espaço virtual graficamente representável, cabendo neste arranjo a distinção nítida entre centro e periferia, base e topo. Isso faz parecer que as sociedades podem ser reduzidas a uma arquitetura elementar, mesmo que meramente formal. E não podem.
O que constitui e plasma a sociedade é um fluxo de representações e fazeres, artefatos tardios da pulsão criadora que os impõem, não como cópias, mas como originais. Para compreender cada sociedade em sua inteireza, admitindo-se sua singularidade incorrigível e sem desmerecer sua incessante criação e metabolização do novo, é preciso introduzir a noção de magma.
Qualquer que seja o conteúdo do que é estruturante numa estrutura, ele é apresentado como elementos incluídos em classes, inseridos em relações e vulneráveis a combinatória. Como na teoria dos conjuntos. Essa apresentação não é boa anfitriã para uma ideia de criação do novo em sentido forte. Não à toa, estruturalistas costumam desprezar a história ou sujeitá-la a esquemas fixos em sucessão – uma forma de conservar o tempo e defenestrar o novo. Um magma, todavia, excede qualquer conjunto pela natureza de sua constituição. Ele contém magmas (ou submagmas) e conjuntos, mas nunca é redutível a um conjunto, nem pode ser reconstituído pela totalidade dos conjuntos que integra. Nele não convém a cardinalidade dos itens, mas os modos de ser que se afiguram aí inexauríveis. As representações em um magma não são nitidamente definidas, pontuadas. São o que elas designam e o que margeiam e às vezes carregam consigo, e são também o destino a que chegam representações que não são originalmente associadas à sua família. O pensamento e a história, as paixões e as artes, os fatores de produção e os processos eleitorais, são significações mergulhadas em magmas.
Essa crítica ao estruturalismo seguida de uma proposição para preencher as falhas que ele deixou compõem um mesmo movimento na direção propositiva de soerguer o Ocidente dos escombros em que se colocou, revitalizando suas conquistas civilizacionais. Nisso, Castoriadis está na outra margem do Maio de 68, a mesma que influenciou o filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger, não aquela que se consagrou como sua verdadeira expressão: a dos autores e movimentos já citados, misturados, hoje, num caldo indistinto de discursos e ativismos identitários. A mensagem que o século XX precisava ensaiar e transmitir ao XXI, e que é o cerne da filosofia de Castoriadis, é a da imaginação no poder. Que, com imaginação, celebremos os cem anos desse admirável emissário!