Vidante: um filosofar de candomblé

Adeir Ferreira Alves

Doutor em Metafísica (UnB)

25/02/2025 • Coluna ANPOF

Sob a orientação do professor Dr. Wanderson Flor do Nascimento (UnB), desenvolvi uma pesquisa de doutorado (Vidante: um filosofar de candomblé) no Programa de Pós-graduação em Metafísica (UnB, 2021-2024), cujo tema aborda o filosofar de candomblé e os contornos da “política de vida” que esse segmento informa para a identidade das pessoas negras e também das pessoas que circulam nesses espaços de base africana.

A pesquisa consistiu em uma revisão bibliográfica – cuja base teve predominância na literatura afrodiaspórica, africana e decolonial – e também contou com um campo empírico (etnográfico), sendo ele composto por entrevistas e rodas de conversas com pessoas negras candomblecistas de duas casas distintas (uma do tronco Angola chamada Bakiso N’Gunzo Ria N’Zazi e outra casa de candomblé do tronco Ketu chamada Egbé Onigbadamu Sun Omi Tutu Logunedé, da qual sou membro), ambas as casas são situadas no Novo Gama-GO. A pesquisa de campo também entrevistou as lideranças das respectivas casas, sendo uma sacerdotisa (Mameto Languanji de N’Zazi, também conhecida como Mãe Geni, in memoriam) e dois sacerdotes (Tata Tawareci de N’Gongombila e Babalorixá Júlio César de Logunedé, meu babalorixá).

Vidante é um termo próprio, criado na referida pesquisa, que significa “vida diante do modo de vida do candomblé”. Vidante protagoniza, ensaia e inaugura um movimento ontológico em que o fazer, o pensar, o ser, o “estar com” expressa, pela poética e pelo encantamento, algumas questões sobre a vida de pessoas negras candomblecistas para pensar além de postulados binaristas dos paradigmas ocidentalistas e anti ocidentalistas sobre vida e morte.

Quando digo que “inauguro” algo nessa pesquisa não significa em hipótese alguma que criei algo necessariamente novo sobre o filosofar de candomblé, mas apenas imergi num ancestral campo filosófico do candomblé – até o momento não tratado pela filosofia como uma área de conhecimento estabelecido. Pelo contrário, o candomblé é considerado pelo pensamento ocidental como uma cultura religiosa africana meio autóctone, porque o candomblé assim é geralmente considerado pelas narrativas racistas.

Portanto, o filosofar para o vidante aciona um tipo de “caminho” e “caminhada” em diferentes espaços em que o ser da pessoa negra vai rompendo com as formas do cativeiro existencial, político, cultural, estético, epistêmico, religioso e social para poder se curar dos grilhões do racismo. Já o espaço privilegiado que o caminho aponta como chegada é o candomblé. O candomblé é indicado pelo vidante como esse centro curador e repatriador da identidade da pessoa negra, cuja identidade costuma estar fragmentada pelo racismo – por causa da atuação da política de morte. Já no candomblé, o encantamento aparece representado na figura de Logunedé – um dos orixás do panteão iorubano –, porque Logunedé é capaz de insurgir contra as formas prementes e fechadas dos sentidos fixistas do pensar, do ser, do fazer.

Logunedé é o orixá encantado. Para o candomblé, o encantamento nada tem a ver com o racismo epistêmico que considera o encantamento como uma antítese da cultura racional, cuja modernidade é ação desencantadora de um mundo supostamente primitivo, analfabeto e selvagem.

Eu poderia considerar as diferentes maneiras de ser do encantamento no candomblé, mas o vidante enfatiza pela poética Logunedé como o orixá que emprega o encantamento como um conhecimento libertador, emancipador, fortalecedor da identidade e confluente com diferentes aspectos do seu ser, tais como: vida, luta, gênero, senioridade, cura, dentre outras.

Na pesquisa que realizei, as figuras do orixá Exú (do panteão iorubano) e do Saci Pererê (figura mítica do folclore brasileiro), ao lado de Logunedé, também atuam como potências ontológicas capazes de criar e recriar o nomos, ou melhor, o estatuo das leis é repensado e reposicionado a partir da atuação ontológica de Exú e de Saci quando eles rompem de modo encantado com todas as cargas de conceitos e (pré)conceitos eivados nas narrativas ocidentalistas. Exú e Saci são figuras irresignadas, insubmissas e criativas. A vida que ambos expressam aponta para uma dinamização da verdade e da justiça, em que o fazer exuísta e sacizento informa o encantamento e o filosofar de candomblé como um lócus de saber amplo, múltiplo, distinto, vivo capaz de romper cativeiros, de rodear armadilhas, de traduzir diferentes sentidos dos signos sobre a vida.

O candomblé é uma organização social afro-brasileira de matriz cultural africana e também indígena. Nos termos formais e populares, o candomblé é denominado como religião e já nos termos antropológicos esse segmento, identitariamente africano, recriado no Brasil é categorizado como Povos Tradicionais de Matriz Africana. Porém, o candomblé é muito mais amplo do que essas categorias ocidentalistas reducionistas – e quiçá, racistas – procuram categorizá-lo e expressá-lo por narrativas colonialistas. O racismo e a branquitude são ideologias dominantes das narrativas sob as quais tudo o que escapa dos paradigmas ocidentais do poder, do saber e do ser são subalternizados, e, com efeito, considerados como primitivos, incultos, alternativos, paralelos, anti modernos, antiquados, identitaristas, essencialistas, fundamentalistas.

As narrativas coloniais subjugaram o candomblé à categoria de análise de comunidades primitivas já inquiridas pelos estudos sócio-antropológicos brasileiros eurocentrados e por causa da relação que fazem do candomblé com o escravismo. Mesmo sendo o candomblé um segmento em que as pessoas brancas estejam presentes, e muitos membros são intelectuais, e por ter também pessoas ricas, os diferentes tipos de racismo (cultural, epistêmico, religioso e de classe) atuam como um invólucro em que tudo o que provém do candomblé seja, a reboque, adornado na malha da questão racial desse segmento formado por precursores/as africanos/as e afrobrasileiros/as que saíram da condição de escravidão.

Inclusive, fora dos paradigmas ocidentalistas hegemônicos e homogêneos preconizados pelos racismos (culturais, epistêmicos e também religiosos), o candomblé é centrado em um filosofar imanente em que, ontologicamente, o fazer, o estar com, o ser, o pensar e o falar, por exemplo, expressam memórias, histórias e saberes (práticos, teóricos, hipotéticos, estéticos, espirituais, curadores).

O candomblé é, para todos os efeitos, um modo de vida centrado em diversos elementos da cosmopercepção africana, tais como, ancestralidade, senioridade, espiritualidade, axé, vida, vivência, encantamento, oralidade, trabalho, território, tradições, história, memória, ritos, imanência, troca de saberes (como forma básica de transmissão do conhecimento), saberes, cuidado com a natureza, cuidado com as pessoas e louvação a orixás/inquices/voduns (a depender da matriz cultural africana da qual cada segmento é signatário), bem como louvação e reverência à vida.

Por todas essas razões é que o filosofar de candomblé expressa, em sua identidade cultural, uma política de vida, mas política essa que não significa necessariamente antítese à política de morte. A política de vida do candomblé também pode ser considerada uma resposta à política de morte, porque aquela verte da vida e para ela se orienta, porém o candomblé é um berço mítico cultural africano e afrobrasileiro que não está subordinado à cultura ocidental e aos seus mandos, embora em muitos aspectos o ocidentalismo costuma constranger a dinâmica do candomblé.

A capacidade de insubmissão do candomblé à colonialidade é uma pauta de luta de fato, e esse segmento pode ser lido igualmente como organização social autônoma, mas, para todos os efeitos, e, antes de tudo, o candomblé se inscreve como uma postura anticolonial, porque ele cultiva as suas raízes na cosmopercepção africana. O filósofo e antropólogo Eduardo Oliveira inclusive diz que podemos compreender esse filosofar de candomblé “a partir” da cosmovisão africana. Esse giro epistêmico faz todo sentido quando pensamos em um filosofar que se orienta por outra matriz cultural e epistêmica.

A pesquisa de doutorado aqui apresentada mostra o vidante como um movimento ontológico que privilegia o estar com a partir de diferentes contribuições, a corporeidade e identidade negras da minha pessoa enquanto pesquisador, bem como o meu vínculo com o candomblé. Mas essa pesquisa não é autobiográfica, ela desafia os métodos etnográficos porque se inscreve como uma espécie de observação participante na qual conclamo as duas comunidades de candomblé e os indivíduos em confluência a filosofar, e a partir daí faço alguns registros.

Por fim, a pesquisa de doutorado que digo ser encantada, se recusa a ser descritiva para ser viva, bem como, testemunhal, participativa, imersiva, poética, o que faz com que a ontologia do estar com mobilizado pelo vidante seja de fato aquilo que diz ser, ou seja, imanente, vivencial.

A tradição de candomblé reverencia quem chegou primeiro, reverencia a comunidade, reverencia os seus, por estas razões, agradeço a todas as pessoas que participaram direta e indiretamente dessa pesquisa: Babalorixá Júlio César de Logunedé (sacerdote do Egbé); Mãe Geni (antiga sacerdotisa do Bakiso, que Zambi a tenha em seu reino); Tata Tawareci (Pai Tawá, atual sacerdote do Bakiso); Kissumbure, Kota Nkendamulenje, Muzenza Mukiala e Makota Diasambú (filho e filhas do Bakiso); e filhas do Egbé: Egbome Natashe de Ogum e Valdenice de Nanã (Val, agora já é Yaô/iniciada, na ocasião da pesquisa era abian/não iniciada), bem como o Yaô Ijô Danilo de Ogum (ex-membro do Egbé). E agradeço também ao admirável Wanderson Flor do Nascimento pela rica orientação, bem como a banca de avaliação Denise Botelho, Leandro Bulhões e Pedro Gontijo.


Referência

ALVES, Adeir Ferreira. Vidante: um filosofar de candomblé. (Tese de doutorado), Programa de Pós-graduação em Metafísica. Universidade de Brasília, 2024. No prelo.


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