A ética da vacinação
Maria Clara Dias
Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ
10/02/2021 • Entrevistas
Para a professora Dra. Maria Clara Dias (UFRJ), vacinar-se contra a Covid-19 é uma questão ética. É o que ela argumenta nessa entrevista concedida ao professor Dr. Érico Andrade (UFPE), diretor de comunicação da Anpof. O que Kant diria sobre a vacinação? Para ela, quem decide não tomar a vacina não pode querer universalizar sua máxima de ação, sem incorrer em alguma contradição. Segundo a professora, o mero medo de efeitos colaterais não é uma atitude razoável e não justifica uma posição antivacina. Nesta conversa, ela argumenta que os cientistas devem ter consciência de que a investigação de uma vacina adequada não pode se deixar contaminar por pressões ideológicas.
Esta entrevista faz parte da campanha da Anpof, ao lado da SBPC e de outras centenas de entidades acadêmicas e de pesquisa, em defesa da vacinação. Leia a entrevista abaixo.
Tomar a vacina é uma questão ética?
Sim, em qualquer hipótese, trata-se de uma questão ética que envolve uma decisão que pode ser justificada de acordo com diferentes perspectivas morais. Utilizando a perspectiva kantiana, por exemplo, podemos dizer que não tomar a vacina não é uma atitude que possa ser universalizada, por conseguinte, envolve uma ação que não pode ser justificada moralmente, com base em uma norma compatível com o princípio de universalização. A justificativa se assemelha à utilizada para justificar o não pagamento de imposto como uma atitude não moral. Ou seja, trata-se de mostrar que quem decide não tomar a vacina não pode querer universalizar sua máxima de ação, sem incorrer em alguma contradição. A aplicação da vacina tem por objetivo a imunização da população contra o vírus. Tal objetivo só se cumpre, quando uma boa parte da população toma a vacina. Quem decide não tomar a vacina pretende buscar criar para si uma exceção: quer o benefício da imunização de rebanho proporcionado pela vacina, mas quer, também, estar isento de “possíveis efeitos colaterais” da vacina. Tal pessoa sabe que se todos agissem assim, não haveria imunização de rebanho e ela mesma seria prejudicada. Enfim, para os que gostam de Kant, este seria o modelo argumentativo.
De uma maneira menos formal, podemos dizer que a pandemia envolve uma ação coletiva, na qual cada um de nós deve assumir seu próprio compromisso e sua responsabilidade frente ao corpo social. Tomar a vacina, assim como usar máscara e manter o isolamento social não é uma decisão que envolve apenas nossos interesses individuais. Ao recusar qualquer uma destas medidas, estamos colocando em risco outros indivíduos. Indivíduos que talvez não tenham, como muitos de nós, alternativas de proteção, que são obrigados a sair de casa para trabalhar, pegar conduções cheias e que, caso adoeçam, terão que disputar os escassos recursos de saúde públicos disponíveis. Se aspiramos fazer parte de uma sociedade na qual os direitos, interesses e/ou os funcionamentos básicos de todos os indivíduos sejam respeitados, então tomar a vacina é, até o momento, a única atitude coerente com este ideal. Tomar a vacina é para nós uma obrigação que assumimos, ao aspirarmos pertencer a uma sociedade moral, sermos reconhecidos e nos compreendermos como indivíduos morais.
O risco dos efeitos poderia justificar uma desconfiança com relação à vacina e, por conseguinte, uma posição anti-vacina?
Qualquer posicionamento minimamente razoável deveria estar embasado em aspectos científicos e ser passível de justificação, num fórum público de argumentação. O mero medo de efeitos colaterais, sem que se saiba dizer ao certo quais seriam estes efeitos e qual a real probabilidade dos mesmos, não é uma atitude razoável e não justifica uma posição, minimamente sustentável, anti-vacina. Acho um erro tributar ao movimento anti-vacina a responsabilidade pela recusa que temos presenciado em muitos brasileiros da vacina contra o Covid19.
Não há uma contra corrente, não hegemônica, mas coerente e estruturada de saberes. O que vejo é bem mais uma manipulação de indivíduos mal informados. Um diagnóstico, ao meu ver mais acertado, responsabilizaria os representantes do governo brasileiro pela forma ambígua e ideológica com que a questão da pandemia e, consequentemente, da vacina vem sendo tratada, de forma a gerar insegurança e cetismo com relação ao saber científico.
O governo estaria respaldado eticamente para obrigar a população a se vacinar?
Sim. O governo deveria agir de forma a preservar os valores da constituição brasileira e a proteger nossos conacionais. Cabe não apenas aos governantes, mas à toda estrutura básica da sociedade zelar pelos direitos, interesses e funcionamentos básicos de todos que integram a nossa sociedade. Na atual conjuntura, a vacina representa a única forma coletiva de vencermos a pandemia. Achar que a liberdade de escolher “não ser vacinado” é um direito que possa se sobrepor ao risco que tal atitude imputa aos demais é defender um liberalismo hipócrita, para o qual apenas a liberdade, e faça-se entender, dos privilegiados que já a possuem, é um valor a ser considerado.
Qual seria a responsabilidade ética da ciência na produção da vacina?
Os cientistas devem ter consciência de que a investigação de uma vacina adequada não pode se deixar contaminar por pressões ideológicas. Paralelamente, devem assumir o compromisso de informar a população de forma palatável, clara e transparente, acerca dos tipos de vacina e suas respectivas formas de atuação, no combate ao vírus. A ciência deve assumir o compromisso ético de zelar pelo bem-estar, pela minimização de danos e pelo florescimento de todos os indivíduos.
A produção de conhecimento científico exige uma expertise, mas sua comunicação exige uma forma de expressão adequada aos diversos segmentos da sociedade. A impossibilidade de compreender o modo de produção do saber científico leva parte da população a procura de verdades absolutas, dogmáticas, as quais atribuem o mesmo valor, ou um valor superior, às construções científicas que não conseguem compreender. A razão pública deve ser capaz de ser transmitida de forma transparente e com recursos que amplo alcance. O academismo e elitismo dos ambientes universitários e dos pesquisadores distancia vários segmentos da sociedade do saber científico e os torna presas fáceis de propagadores de falsas verdades, ou crenças irrefutáveis, dogmáticas.