"A filosofia precisa se diversificar, se pluralizar. Ouso dizer metaforicamente que a filosofia precisa tirar o mofo", entrevista com Aline Matos da Rocha
Luís Thiago Freire Dantas
Professor da UERJ e integrante do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana
26/11/2024 • Entrevistas
A edição de 2024 do Prêmio CAPES de Tese teve 49 teses premiadas. Na área da Filosofia a tese premiada foi "Corpo-orí-idade: uma investigação filosófica sobre ontologia relacional no pensamento de Oyèrónké Oyèwùmí", de Aline Matos da Rocha, orientada pelo Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento, no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília. Neste novembro negro, o prof. Dr. Thiago Dantas (UERJ) entrevistou Aline Matos sobre o seu trabalho. Dantas teve a primeira tese sobre Filosofia Africana defendida em um departamento de filosofia e conquistou menção honrosa do Prêmio Anpof de Tese em 2018.
Nesta entrevista, Aline Matos explica sobre o conceito chave de sua tese “corpo-orí-idade”, que permitiu a investigação filosófica sobre ontologia relacional no pensamento de Oyèrónké Oyèwùmí. Ela defende que, para Oyèwùmí, e também para ela, não é possível construir filosofia sem vivências comunitárias e espirituais.
Thiago Dantas destaca a importância da tradução feita por Matos da conferência com Oyèrónké Oyèwùmí. realizada na UnB em 2016 e a pesquisadora indica que há muito o que aprender com a tradução desta fala. Ela destaca, por exemplo, que nesta conferência Oyèwùmí alerta para a armadilha colonial de colocar o homem branco como o centro das nossas teorizações, conceituações e referências.
Sobre a importância e necessidade de se ampliar o espaço para a filosofia africana nos departamentos de Filosofia no Brasil, Aline compartilha sobre as acusações externas de que ao trabalhar-se com filosofia africana, iremos abrir mão da filosofia ocidental. “A minha tese está aí para provar de forma clara e distinta que esse não é o ponto. A gente precisa desaprender a pensar no “ou isso ou aquilo” (filosofia ocidental ou filosofia africana), mas pensar, comunitariamente e não individualmente, no “e isso também”. Leia a entrevista na íntegra abaixo.
Thiago Dantas: Aline, começo registrando a minha felicidade em saber da sua premiação. Justamente por fazer desse prêmio uma contemplação aos grupos de pessoas que fazem da atividade filosófica um diálogo com as nossas vivências mais íntimas. Por essa linha da vivência que a primeira pergunta se trata de você nos explicar, isso pensando na construção de uma tese, como a temática da "corpo-orí-idade" lhe apareceu como central para pensar uma tese filosófica? Ou ainda, como essa temática lhe propiciou uma problematização da pesquisa filosófica?
Aline Matos da Rocha: Obrigada, Thiago! Agradeço o convite para poder (reme)morar na memória como a temática da “corpo-orí-idade” surgiu como um conceito fundamental para pensar o trabalho da filósofa iorubá Oyèrónké Oyèwùmí e costurar uma tese filosófica. Oyèrónké Oyèwùmí nos chama atenção que a presença do gênero na sociedade Oyó-Iorubá, do sudoeste da Nigéria, é uma marca de imposições coloniais que provocaram mudanças profundas numa organização sociocultural filosófica assentada na senioridade, a qual não foi feita em função do tipo de corpo e disposição dos órgãos sexuais, mas em função da senioridade que se constitui de forma relacional e fluida. Ao desmembrar a palavra sênior-orí-idade (sem, contudo, separá-la), tive como chave de leitura a ideia de “corpo-orí-idade”. Esta se tornou um conceito na tese e me permitiu pensá-la e escrevê-la como uma investigação filosófica sobre ontologia relacional no pensamento de Oyèrónké Oyèwùmí. Cabe ressaltar que o que me inspirou a pesquisar, especificamente, esse tema foi a concordância com a filósofa sul-africana Azille Coetzee, que reconhece que o horizonte fluido, móvel, situacional e relativo da senioridade exprime uma ontologia relacional no pensamento de Oyèrónké Oyèwùmí.
A primeira vez que tive contato com a filosofia de Oyèrónké Oyèwùmí foi assistindo uma comunicação sua em um evento em 2014 na PUC de Goiás. Na época, chamou-me atenção a cunhagem "anasex" para ratificar uma construção anatômica do gênero. Você traz em seus trabalhos as advertências de Oyèwùmí sobre as determinações generificadas pelo ocidente, impondo uma visão de mundo a toda e qualquer cultura. E na leitura da sua tese há um aprofundamento sobre essa situação a partir do “medo do corpo”, ou como você escreve uma somatofobia. De que maneira a corporeidade pode ser um elo para a produção do conhecimento e quanto nós, no limite da generificação, também hierarquizamos as nossas epistemologias?
Uma das primeiras coisas que precisamos questionar é: é possível produzir conhecimento sem corpo? Há um corpo hegemônico produzindo conhecimento, só que este é o não-marcado, o não dito que figura entre nós como a experiência (sub)entendida que abarca universalmente todas as pessoas. É por isso que a preocupação com o corpo é o ponto nevrálgico de Oyèwùmí, porque é o corpo que serviu e serve como superfície de generificação, racialização, dominação, exploração, etc. Ao mesmo tempo que há essa presença massiva do corpo (a somatocentralidade), por outro lado, existe o “medo do corpo” (a somatofobia). Precisamos reconhecer que a filosofia ocidental trabalha com essa dicotomia entre somatocentralidade e somatofobia. E é nessa dicotomia de matriz binária, no limite da generificação e racialização, que também hierarquizamos nossas epistemologias e fazeres filosóficos. De modo que retomar o corpo e trazer as discussões sobre corporeidade para o centro do debate filosófico é fundamental para problematizarmos e lutarmos contra a prática de inserir determinados corpos na zona do não ser, e justificar através disso o seu extermínio.
Um dos elementos que mais me chama atenção da filosofia da Oy?wùmí é o uso das vivências comunitárias e espirituais para fundamentar os seus argumentos epistemológicos. Comento isso, pensando na figura de Oxum que é uma divindade iorubá, e para autora é também uma condição de organização social (Iyá primordial). Mas também se distancia daquilo que, Deleuze por exemplo, denomina como "personagem conceitual". Por isso, Aline, gostaria que comentasse como Oxum articula-se à ontologia relacional que você entende na obra de Oyèrónké Oyèwùmí?
Para Oyèwùmí, e para mim também, não é possível construir filosofia sem vivências comunitárias e espirituais. Oxum é Ìyá primordial e a encarnação do conhecimento. Não é de modo algum um “personagem conceitual” à semelhança de Deleuze. Nesse sentido, não foi difícil, na tese, pensar uma ontologia relacional através das águas fluidas e relativas de Oxum, a qual está no centro da senioridade que nos comunica uma ontologia iorubá em relação e não como algo isolado e excluído da comunidade, que não pode ser tematizada sem Oxum. Ou seja, não existe comunidade sem Oxum, e não existe Oxum sem comunidade. É Oxum que dá o tom e mobiliza a ontologia relacional iorubá.
Uma das coisas importantes da sua tese é a tradução da conferência de Oyèwùmí na UnB em 2016. Nessa palestra, a autora ressalta o quanto nós precisamos atentarmos para armadilha colonial em nossas referências, por causa das dicotomias ocidentais que fundamentamos em uma “centralidade no homem branco”: o “androcentrismo”. Assim, que lições de descolonização podemos ter com Oyèwùmí acerca da branquitude?
Gosto muito de pensar em algo que aprendi com a escritora e poeta camaronesa Nathalie Etoke, quando ela diz que a tradução constrói pontes entre os(as) africanos(as) do continente e os(as) da diáspora. Temos muito o que aprender com a tradução dessa conferência (e as porvir), que de fato está nos alertando para a armadilha colonial de colocar o homem branco como o centro das nossas teorizações, conceituações e referências. Oyèwùmí chama isso de patologia do homem branco moderno, a qual ansiamos fervorosamente alcançar mesmo quando buscamos decolonizar nossas teorizações, conceituações e referências. Uma das primeiras lições de descolonização que podemos aprender com Oyèwùmí é que precisamos ter a audácia de nomear o elefante na sala. Ou seja, a supremacia branca. Para Oyèwùmí, só existe o que tem nome, e precisamos reconhecer, nomear e falar que a branquitude está diretamente implicada no empreendimento colonial, que hoje se constitui como diferentes aspectos da colonialidade: a colonialidade do saber e a colonialidade do ser.
Por fim, eu gostaria de agradecer o aceite em entrevistá-la e compartilhar um pouco dessa bela pesquisa. Não poderia deixar de fazer a última pergunta referindo ao cenário do quanto as pesquisas em filosofias africanas no Brasil é algo mais visível, apesar de ainda pequeno em relação ao todo, com potencialidades para desenhar outras propostas filosóficas. Por isso, como você enxerga esse cenário e como a filosofia de Oyèrónké Oyèwùmí amplia esse caminho para outras produções?
Tendo a enxergar esse cenário de modo positivo, apesar disso não me eximir de lançar críticas. Apesar da potencialidade filosófica indiscutível da filosofia africana, ela ainda não é uma realidade concreta em muitos departamentos de Filosofia brasileiros, tampouco faz parte das suas ordens discursivas. É uma alegria ter uma tese sobre filosofia africana como vencedora do Prêmio Capes de Tese na área de Filosofia, a qual precisa refletir sobre o continente africano, o colonialismo, a decolonialidade e a relação entre gênero, raça e classe, a fim de confrontar e descolonizar desigualdades na sociedade que habitamos. Não podemos simplesmente abstrair essas temáticas do campo da Filosofia. Reconheço desde a graduação, mestrado e doutorado que a filosofia de Oyèwùmí é um abre-caminhos, e que o conhecimento africano e seus conceitos devem ser um fator na produção da filosofia e teoria social, as quais não precisam prescindir do pensamento euro-estadunidense. Um dos cansaços na lida com a filosofia africana são as acusações externas de que iremos abrir mão da filosofia ocidental. A minha tese está aí para provar de forma clara e distinta que esse não é o ponto. A gente precisa desaprender a pensar no “ou isso ou aquilo” (filosofia ocidental ou filosofia africana), mas pensar, comunitariamente e não individualmente, no “e isso também”. Produção de conhecimento emerge em relação. E em relação com outras vozes, conceitos, epistemes, ontologias, etc. A filosofia precisa se diversificar, se pluralizar. Ouso dizer metaforicamente que a filosofia precisa tirar o mofo.