"A humanidade está entrando em convulsão. Não tem nada a ver com revolução", entrevista com Ailton Krenak

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

12/10/2022 • Entrevistas

O pensamento ocidental e o capitalismo guardariam uma base comum? Qual seria a relação presente entre aquilo que Krenak afirma ser o processo de colonização, que destrói habitats e devora mundos, e a própria produção do pensamento filosófico? Em entrevista inédita realizada pela Anpof e publicada em parceria com a CartaCapital, Ailton Krenak nos convida a ampliar o campo atual da filosofia e ao mesmo tempo fazermos um exame crítico da tradição filosófica especialmente na sua relação com o capitalismo. Ele reflete sobre histórias e vivências que delineiam sua visão de mundo, marcando a distinção entre a tradição filosófica e as confabulações que constroem as formas ameríndias de experienciar o mundo e viver a floresta. Krenak é um dos conferencistas do XIX Encontro Anpof e sua fala acontece virtualmente na manhã de encerramento do evento, no Teatro da PUC-Goiás, dia 14 de outubro de 2022, com transmissão ao vivo pelo canal da Anpof no YouTube. 

 

Érico Andrade - Gostaria de compreender por que em muitos espaços você é apresentado como filósofo. O que esse título de filósofo diz em relação ao seu pensamento, às suas questões e às suas inquietações? Em que sentido você poderia ser considerado um filósofo? Aliás, o título de filósofo é condizente com o seu pensamento? Ou outro vocabulário deveria ser mobilizado? 

Ailton Krenak - A minha aproximação desse campo do conhecimento, que no Ocidente já tem essa marca antiquíssima de perceber um campo do pensamento humano que tem pouca relação com o sentido da produção, produção material, não deu solução para questões práticas, como o comer, morar e escapar a todas as armadilhas da existência, mas abriu um imenso universo de subjetividade para que esse animal sapiens pudesse expandir seus horizontes, se imaginar para além da sua própria, do seu casulo da sua casa e corpo. E isso me interessa num sentido muito mais amplo do que é a história da filosofia. A história da filosofia e toda essa imensa construção, desde os gregos, que foi se constituindo no campo da filosofia no sentido amplo, não me interessa. Me interessa a cosmovisão, me interessa a insurgência de um pensamento que, ao longo do tempo histórico, foi desprezado, marginalizado, estigmatizado e, inclusive, taxado de fabulação.

Então, eu venho das fabulações. Eu venho de um universo de seres que fabulam, ou que confabulam. Onde a onça conversa com a jiboia, que conversa com a formiga, ou com a abelha, ou com a árvore, ou com a montanha, ou com um rio. Como diz um querido amigo meu, Nego Bispo, é dessas confluências que se constitui um modo de pensar que eu entendo que é coletivo, implicado. E, por ser coletivo e implicado, foge muito da lógica e daquela razão ocidental que estabelece o lugar do filósofo. 

No Ocidente, para alguém ser reconhecido como um filósofo, implica em fixar uma persona ou uma personalidade e produzir uma crítica a todo o pensamento que antecedeu essa persona, produzindo essa mobilidade do mundo do pensamento ocidental, que eu assisto do lado de fora do terreiro, admirado com algumas performances, mas nunca convertido a essa seita da Filosofia.

Érico Andrade - Quais seriam as linhas gerais do pensamento ameríndio? Quais são os seus pontos centrais e ideias? Como ele poderia contribuir para "adiarmos o fim do mundo"? Existe um pensamento da  floresta? Ela pode nos ensinar?

Ailton Krenak - A compreensão de um pensamento, digamos, original, que contribua para um outro amplo espectro de pensar e de entender o mundo e tudo o que implica, não está presente nesse modo de intuir mundos, pluri mundos, cosmovisões. Então, pela natureza selvagem desse pensamento, ele não pretende colaborar com outros entendimentos ou com outras maneiras de estar no mundo, porque ele entende que esse colaborar pode se transformar também em coolonizar (sic). O Ocidente escorrega rapidamente do lugar de cooperar para o lugar de coolonizar. Cooperar, coolonizar.

Então, a vocação colonial e  missionária do Ocidente impregna tudo. E a filosofia ocidental é impregnada dessa missão catequética. Eles [os filósofos] ficam querendo catequizar o mundo, homogeneizar o mundo, monoculturar o mundo. Se você não quer uma monocultura de mundo, é bom que a gente também não tenha uma monocultura de pensamento. Nossa querida Chimamanda Ngozi Adichie diz que “ai do mundo que tenha uma história só”.

Uma boa maneira da gente escapar dessas capturas que se produzem o tempo inteiro, de consumir nossa subjetividade, é exatamente se manter num certo propósito de origem, digamos assim. Quando a gente diz que o futuro é ancestral, a gente está se remetendo a um lugar de pensar que pode dialogar com qualquer parábola futura, passado, presente, mas que não está capturado por essa linha do tempo, por essa racionalidade que a filosofia do Ocidente institui e procura andar dentro dessas balizas. Mesmo os filósofos, como Nietzsche e outros mais rebeldes, não escaparam das quatro linhas, digamos assim, e eles ficaram dentro disso, dialogando consigo mesmo. Quer dizer, é uma conversa de branco com branco. Não tem preto nessa conversa e nem índio. Então eu acho que quando pretos e índios, se engraçam com essa conversa, eles estão caindo no conto do vigário e estão se encaminhando para a catequese. Um dia, todos eles vão estar rezando de joelhos numa igrejinha para algum Deus que eles mesmo criaram para resolver suas misérias. Eventualmente, vão contribuir com tabletinhos de ouro para as igrejas.

Érico Andrade - Qual a relação entre o capitalismo e a Filosofia Ocidental que, como você coloca de forma muito pertinente, possui uma relação com a colonização? A filosofia de algum modo contribui com o sistema que devora mundos para produzir riquezas? Será que mesmo pensadores rebeldes e críticos do ocidente, acabam por se inscrever nessas quatro linhas, conforme a expressão que você usou, e não conseguem romper com a lógica colonial?

Ailton Krenak - Quando eu fiz uma viagem excepcional, porque eu não sou um turista, fui à Grécia. Foi em uma ocasião muito especial em que eu tinha (sic) condição de receber um prêmio da Fundação Aristóteles Onassis em 1989, 30 anos atrás, por aí. Eu podia levar junto comigo um convidado e convidei o Davi Yanomami, porque nós somos amigos há mais de 40 anos. Eles estavam lutando para tirar os garimpeiros de dentro da floresta Yanomami, como persiste até hoje essa invasão. Hoje tem 27.000 garimpeiros lá dentro. E naquela época tinha 40.000. Nós queríamos denunciar isso e a tentativa de acabar com o povo yanomami, seu genocídio. Eu levei o Davi Yanomami comigo pra Atenas para receber esse prêmio junto comigo e ter a oportunidade de falar com o secretário geral da ONU, que era o Javier Pérez de Cuéllar. Ele era o secretário geral da ONU e tinha a vantagem de ser um peruano. Quer dizer, ele falava castelhano e podia entender o que um yanomami fala e o que eu falo. Nós abordamos ele, contamos o caso e fomos visitar o templo de Zeus. O pessoal do consulado, lá em Atenas, levou a mim e ao Davi para visitar o templo de Zeus, perto do Mar Egeu, num lugar alto, uma colina, um lugar cheio de pedra. Parece o Crato. Parece o nosso sertão. Então lá naquele lugar árido, seco, que só dava oliveira de tão seco, nós andamos naqueles pedregulhos e vimos aquelas colunas gregas caídas, arrebentadas no chão e o mar, lá embaixo daquela colina. Eu olhei aquilo tudo e, lógico, que na minha cabeça passou um rápido filme que me reportou ao Platão, ao Sócrates, esses gregos velhos. O Kopenawa Yanomami que estava junto comigo, me pareceu triste, desceu da colina e ficou perto do carro da embaixada, esperando que a gente embarcasse para voltar para Atenas. Quando nós íamos chegando perto do carro, a nossa anfitriã, guia no passeio, perguntou para o Davi “o que vocês acharam da visita?” e o Davi olhou a paisagem e disse “agora eu sei de onde saíram os garimpeiros que foram fuçar na minha floresta”. Então Platão e Sócrates são garimpeiros e eles fuçam nas florestas. É bom tomar cuidado. 

O livro A Queda do Céu, do Davi Kopenawa Yanomami, finalmente está sendo reconhecido e circulando. É leitura obrigatória nas universidades na Europa também. Aquela monumental obra se chama “uma cosmovisão yanomami”. Por que será que na capa não está escrito uma filosofia yanomami? Porque esse pensamento originário repudia as artimanhas da filosofia produzida por garimpeiros. Uma filosofia que abandona a experiência da vida e prefere produzir representações da vida. Que produz representação da vida. Substitui a vida e são capazes também de, no limite, produzir alguma coisa que vai ser isso que chamo de transhumanidade. O transhumano é uma coisa que nem é mais humano, já é um ciborgue, uma invenção absurda de um ser que não consegue se conter dentro do seu casulo, digamos assim. 

Nós temos um casulo que nos aproxima dos outros seres vivos e a gente quer romper com ele e produzir um outro corpo, um corpo que pode habitar Marte. Então, eu acho isso uma miséria. Posso estar totalmente equivocado na minha perspectiva comum com outros povos nativos, de entender que a terra é a nossa mãe, e de ficar nesse lugar primordial, de entender que a terra é a nossa mãe e que ela pode suprir a gente numa boa. A gente pode viver com prazer, com alegria, contentamento. A gente não precisa inventar nada para isso, porque a gente já nasceu com essa potência de vida. E entender a vida como uma dança cósmica. A vida é uma dança cósmica. Ela não é uma operação racional de produção de sentidos, porque senão ela seria só para alguns. Se a vida fosse uma equação racional da produção de sentidos, só os iluminados estariam vivos. O resto seria esterco. Essa produção de esterco me deixa de cara com a ideia da Filosofia herdada dos gregos que rolou muita pedra, que quebrou muita pedra, que deu pedra no rim e que o Carlos Drummond de Andrade, que é o meu escudo na poesia, diz que essa pedra no meio do caminho, ela deveria ser alguma coisa na qual a gente pensasse, porque ela é persistente. Ela não precisa doer como uma pedra nos rins, mas ela podia só iluminar, sendo o nosso terceiro olho, se a gente quisesse, mas a burrice é ampla, geral e irrestrita e a maldade também.

Tem um pensamento esperto que se erigiu no Ocidente, que é esse pensamento capitalista. Ele come tudo e quem sabe ele já estava engendrado lá nas dobras mais remotas do tempo, quando esses filósofos gregos ficavam curtindo no Areópago, quando eles ficavam perambulando numa paisagem maravilhosa e vivendo às custas da escravidão dos outros. Porque para ter um filósofo passeando no Areópago, tem que ter mil escravos trabalhando em algum lugar. Essa gente que se regozija de rir e conversar em cima do cadáver dos outros, essa bosta da filosofia ocidental. Se você tiver muitos escravos, você pode filosofar à vontade, mas você tem que ter escravo Se você abomina a ideia de escravizar alguém, você vai passar a pertencer a um outro universo de seres que comungam com a montanha, com os rios, com as florestas e que não concebe se quer subjugar uma formiga porque você entende que a formiga tem a mesma dignidade que você e ela tem direito à mesma dignidade que você, mesmo que não seja atribuído a ela. Formigas são formigas, peixes são peixes, patos são patos. É por isso que a gente esmaga todos eles. 

O Homo sapiens é um serial killer. Quando ele surgiu, ele aproveitou e matou os dois ou três possíveis concorrentes que podiam evoluir junto com ele e impregnou a história de uma ideia de criacionista. Ele tinha que matar os outros testemunhos para ele contar uma história só, uma história criacionista. O mundo foi criado. O Homo sapiens é criacionista, é um sacana que não tem coragem de evoluir. A história do planeta é evolução e o planeta evolui, mas o Homo sapiens adora uma história criacionista, então ele inventa histórias criacionistas espalhadas por todo o corpo da Terra para justificar o seu narcisismo. Esse Homo sapiens narcisista só quer reproduzir ele mesmo. Ele odeia o que não é espelho, o que não tem a cara dele, como diz o Caetano. Narciso odeia tudo que não é espelho. 

Então esse pensamento branco que quer impregnar o mundo de fascismo, nazismo, racismo estrutural, como é que ele pode reivindicar uma filosofia? Só se for a filosofia da Klu Klux Klan. Eu fico olhando essa conversa fiada desses senhores ricos brancos e filósofos. A minha avó ia dizer “olha o pé deles”. Os brancos quando chegaram aqui na América e quando também chegaram na África, chegaram pisando em cima da cabeça de todos os povos que viviam nesses continentes. Traziam uma espada e uma cruz. Essa era a marca da filosofia deles. Você pode despistar isso com uma conversa muito sofisticada e erudita, mas a única coisa que o Ocidente faz é assassinar os outros e dominar. Se a gente tivesse que montar um tribunal de genocídio por genocídio, a gente ia condenar a Europa inteira por genocídio. E eles ficam apontando um ou outro dizendo “fulano é genocida”. Agora a gente tem um genocida de plantão. Eles gostam de fazer isso e de vez em quando eles arrumam um bode, colocam o bode na sala e deixam o bode fedendo. Depois eles jogam o bode fora e falam “nossa, como este lugar cheiroso”. A gente até podia dizer que tem um bode na sala da filosofia e ele está fedendo.

Érico Andrade - Morte e vida: o modo como nós ocidentais lidamos com os mortos diz sobre como vivemos cá no Ocidente?

Ailton Krenak - A ideia de que o mundo foi criado, a ideia de uma criação, ela diz para uma compreensão da vida. Aqui nesse catatau (sic) [livro Criação, de Gore Vidal] estão narrativas de criação de tudo que a gente conhece do mundo. A China, a Grécia, a Índia, a África, o continente africano, o continente europeu, tudo, desde a criação abraâmicas do Deus abraâmico, que deu sentido ao Islã, ao cristianismo e ao judaísmo. As três grandes religiões do planeta são criacionistas. O budismo escapa um pouco, mas também não diz muito ao que veio. Então a gente fica derivando no meio de pensamentos muito antigos, mas que não sabem se relacionar com a experiência cíclica de que “existirmos aqui será que se destina, pois quando tu me deste a rosa pequenina”, apenas a matéria vida era tão fina. A matéria vida é tão fina quanto um graveto quanto uma folha que cai. É uma compostagem. Tudo vira vida de novo.

É maravilhoso porque é feito as fases da lua, terra, lua nova, lua cheia. Uma, engendra outra. A vida engendra a vida. E o pensamento da maior parte desses criacionistas é de que a vida foi um evento criado e que depois vai ter que prestar conta a quem criou. E a prestação de conta é um inferno. Então você tem que ficar arrastando corrente a vida inteira para se apresentar num provável julgamento, onde vai decidir se você viveu bem ou mal. Quer dizer, não é você que vai saber se você viveu bem ou mal, é alguém que vai tomar contas com você e saber se você viveu mal ou bem. É uma renúncia ao risco e ao prazer de viver, que durante a pandemia me levou a dizer que as pessoas morrem de medo de morrer. Todo mundo morre de medo de morrer, porque a vida em si não é maravilhamento. Se a vida é maravilhamento, se a vida é uma dança cósmica, imagina que uma experiência dessa vai produzir alguma angústia ou medo com relação ao que virá, ao que será ou não será. E a radical potência de viver o aqui agora que o budismo até abre para essa perspectiva, mas não consegue dar conta de muitas outras questões relacionadas com aqui agora, que é a possibilidade das pessoas terem proteção comer, dormir, viver, coexistir em paz com os outros seres todos.

Quer dizer, resolver a questão do outro. Já se diz há muito tempo que o inferno é o outro. Então resolver esse problema do inferno é que é o outro. Então, tem que ter muita disposição tem que ter uma vontade infinita de produzir sentidos para existência sem se render a essa fúria materialista do mundo, onde tudo tem que ter um peso, onde tudo tem que ter um valor, onde tudo tem que ter uma justificativa para existir, como se a experiência de existir não fosse em si só tão maravilhosa, que ela não precisa de nada. Seria como se alguém pudesse fazer uma pergunta universal: está faltando alguma coisa? E essa resposta universal diz: Não, não falta nada, está tudo em cima. Sem especulação, sem essa conversa fiada sobre passado, presente e futuro, sobre todas essas acusações, sobre todos esses juízos. Tem juízo demais. 

Então, a gente habita um mundo criacionista, cheio de juízo ou de juízes e julgamento e que não vai a lugar nenhum e, curiosamente, começaram a acrescentar a minha biografia esse a esse termo filósofo e isso pra mim não cheira nem fede. Eu não estou nem aí. Se eu passasse pela minha experiência da vida inteira sem nenhum apelido, estava ótimo. E me atribuíram um título de doutor pela UnB, que é uma camada protetiva contra um mundo brutal para alguém que não tem nenhuma patente. É aquela história de “sabe com quem você está falando”, então, com ninguém. Então não estou nem aí também, mas se eu tiver um título de doutor, talvez algumas pessoas passem um pouquinho mais com cuidado por perto de mim, sem sair pisando no meu pé. Tem gente que avalia isso. Você pega um menino negro correndo numa calçada, você dá um tiro nele porque provavelmente ele é um bandido. Então, se esse menino negro tiver um título de doutor talvez o tiro só pegue de raspão. Mas ele não vai deixar de ser um alvo preferencial do imbecil que porta uma arma. Essas imagens todas grotescas que eu estou evocando nessa conversa, que podia ser uma conversa muito mais sutil e inteligente, sem falar em balaços, tiro nas costas, afogamento, prender o sujeito dentro de uma viatura e botar o gás lá dentro, toda essa nojeira podre que esses imbecis dos humanos produzem para dizer que são humanos, são tão humanos e de uma humanidade assim estarrecedora.

Eles metem bomba em cima da Ucrânia, mata todo mundo, arrebenta todo mundo e agora os brancos europeus, que sempre matavam gente de cor escura, resolveram matar os brancos também. Agora estão dando tiro dentro de casa. Antes eu só dava um tiro lá fora. Estão metendo um míssil em cima de outros povos brancos. É assim, financiado por brancos. Nós, os brancos do mundo, estamos perdendo até essa última desculpa de que eles atacavam a gente porque a gente não era iguais a eles. Agora estão mostrando que eles mordem o pescoço dos irmãos e das irmãs deles com a mesma vampiragem. Quando eles estão famintos, mordem o pescoço das mães deles, das irmãs deles. São vampiros. Quando eu digo que o Homo sapiens deu necrose, que ele deu metástase, eu estou falando também disso. Daquela coisa que muita gente gosta de dizer: “E os valores humanos, como vão? Vão bem, graças a Deus”. E que valores humanos? E as tais virtudes? 

Eu estou de cara com o convite para falar na semana que vem sobre coragem. Porque coragem no repertório do acidente é considerado uma virtude. Ora, a beleza é uma virtude. A coragem é uma virtude. A bondade é uma virtude. Toda essa conversa tecida pelo pensamento ocidental, esse auto elogio, é recoberto de sangue, de camadas grossas de sangue. Sangue de gente que é menos do que o humano. Eu costumo chamá-lo de sub humanidade. Tem uma sub humanidade que não participa desse clube bacana, essa espécie de clube de Roma. Eu me lembro que na década de 60, 70, eu soube que tinha uma coisa chamada Clube de Roma. Juntava os caras mais ricos do planeta com os sujeitos mais espertalhões do planeta para decidir como é que o resto da humanidade ia dançar. E o século XX foi aquela quebradeira. O século XX foi um horror e ele ainda não terminou. Ele está contaminando o século XXI com a possibilidade de uma reedição de uma Guerra Fria. E como os idiotas dizem que a vingança é um prato frio, vai ver que eles estão se vingando do século XX no século XXI. É uma revisão histórica e estão transformando o planeta numa birosca, em uma coisa pequena. Esse planeta maravilhoso que levou 4 bilhões de anos para se configurar com tanta beleza, com tanta vida, com tanta diversidade maravilhosa, surpreendente, que a gente podia só curtir esse planeta, mas tem um bando de imbecil disputando ele a bala, a míssil. 

Durante a pandemia, eu, sinceramente, fiquei refugiado aqui na minha aldeia, olhando ao redor e chegando a conclusões terríveis. E uma delas é que o Homo sapiens deu metástase e que ele é a peste do planeta. Que se o planeta não conseguir se livrar do especismo do humano, as outras espécies vão continuar mergulhadas no petróleo na praia, a gente vai encher os oceanos de pet. 

Na Bienal de 2018, uma mulher trouxe uma obra dela para a Bienal de São Paulo, que era a representação da atmosfera do planeta. Acima da camada de ozônio do planeta, antes de penetrar a atmosfera do nosso planeta, tem um imenso campo cheio de lixo espacial, naves, foguetes, cápsulas, pedaços de lata velha, toda essa porcariada (sic), flutuando na órbita do planeta. E agora tem um imbecil que faz passeios em volta do planeta também. Ele gasta milhões de dólares, dá um rolê (sic) e volta e vai falar besteira por aí e multiplicar a fortuna. Então esse tipo de Midas, esses caras que em tudo o que eles põe a mão se transforma em merda, estão botando a mão no espaço, estão botando a mão nas galáxias. Esse bando de monstrengo, são monstrengos. Então esses monstrengos querem governar o mundo e esse mundo somos nós. Então a gente precisa ao menos ser capaz de dizer alguma coisa sobre isso. Não precisa ser filósofo para isso. Basta estar vivo.

Érico Andrade - Certamente será uma das primeiras ou a primeira vez que teremos um pensador dos povos originários como conferencista do Encontro Anpof. O que a comunidade filosófica brasileira pode aprender com os povos originários?

Ailton Krenak - Érico, eu não sei se existe uma expectativa exagerada. Talvez exista uma expectativa exagerada com relação ao que outros mundos pensam ou que outras humanidades cogitam e essa expectativa pode ser o resultado de uma longa jornada do pensamento ocidental, que está ansioso por outros mundos, digamos assim, ou por outras epistemologia, outras ontologias. É natural que a gente esteja chegando no século XXI com essa perturbação ambiental, com o planeta em convulsão, digamos assim, que alguns que alguns sujeitos mais antenados queiram furar a casca do ovo e olhar o que tem lá fora. Tipo: “será que tem outro pensamento que nos ajuda a estar nesse mundo tão perturbado coabitando com a ausência quase que total de uma utopia, tipo fim da utopia”. A gente está escutando sobre o fim da utopia desde o final do século XX. É uma longa despedida. 

Muitos pensadores da Europa mesmo, ocidentais, eles já alertavam que era o fim da utopia, entendeu? Nós estamos entrando numa realidade líquida. A gente vai habitar um mundo sem referências, onde as culturas, as pessoas, os povos vão literalmente boiar feito garrafas jogadas no mar boiando, mensagens codificadas, expectativas totalmente desencontradas e uma espécie de cansaço mesmo. Cansaço em relação ao que poderia ser uma constelação de gente, que a gente caiu na facilidade de chamar de humanidade. A primeira coisa que a gente pegou pela mão a gente falou: “é isso aí, nós somos a humanidade”, mas isso é uma facilidade que já denuncia nossa pouca vontade. A gente embalou esse papo furado da humanidade até ontem e agora ele não está conseguindo mais se manter de pé e tem questionamentos sérios sobre isso, se nós somos mesmo a humanidade. 

Quando Millôr Fernandes estava vivo, o Millôr fazia algumas críticas muito sérias e bem humoradas quando dizia: “sim, nós, os humanos, somos todos iguais. Só que alguns são mais iguais do que os outros”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que nós somos todos iguais, só que alguns são mais iguais do que os outros. Claro, alguns têm 6 bilhões de dólares, alguns têm 10 bilhões de dólares. Esses são muito iguais. O clube de Roma é tudo igual um é igualzinho ao outro, mas a hora que você sai na calçada, você começa a encontrar gente que não é mais igual e a desigualdade vai descendo a ladeira até a gente constituir uma desumanidade, uma vasta desumanidade de gente que come lixo, que dorme e acorda na beira do esgoto E são bilhões de pessoas, bilhões.

Se a gente tem 7 bilhões de habitantes no planeta, você pode considerar que a metade desses estão vivendo no esgoto. Tem que largar de ser hipócrita. Tem que parar de dizer que nós somos a humanidade, quando muito mais da metade de nós não tem sequer a possibilidade de atinar com a ideia de estar vivo, que o sujeito já nasce levando porrada na cabeça. Como a gente pode continuar embalando uma mentira dessas de que nós somos a humanidade? No meu livrinho Ideias para dizer o fim do mundo eu detono com esse papo de humanidade. Felizmente, o livro está sendo traduzido no Japão. Também já foi traduzido na Turquia, na Holanda, na Noruega, na Dinamarca e na França. Está espalhado por aí. Eu estou panfletando essa ideia de que a humanidade está entrando em uma espécie de convulsão. Essa tal de humanidade está entrando em convulsão. Não tem nada a ver com revolução, não tem nada a ver com nenhuma transformação tão visível, mas ela está experimentando um sentimento de auto dissolução. Isso que a gente impregnou de sentido humano, estamos vendo que é mentira A menina que é agarrada pelo pescoço, o menino que agarrado pelas pernas e jogado no buraco, eles descobriram que a humanidade é uma mentira Isso deveria ser mais estarrecedor do que aqueles livros que os franceses publicaram quando eles inventaram o tal do existencialismo. Então, esses clubes geralmente são fechados em famílias: a tradição, a propriedade e a família. Então, esses caras vêm de longe. São cruzados. Eles iam a Jerusalém saquear Jerusalém para liberar o Santo Sepulcro. Depois, eles saqueavam outros lugares do mundo. Estão sempre saqueando. Agora estão saqueando a floresta amazônica, que é uma espécie de último reduto. E quem estiver na frente eles passam o rodo. 

Tem (sic) dez dias que eu voltei da Aldeia do Davi Yanomami. Fui lá encontrar com eles porque eles estão comemorando 30 anos de reconhecimento pelo Brasil, esse estado colonial, da terra deles. Quer dizer, eles são tão gentis que eles aceitam o reconhecimento desse troço colonial para o território deles. Esses caras que chegaram assaltando aqui o litoral, eles se atribuem o direito de reconhecer as terras dos povos originários. Quer dizer, a mentira sobre a mentira. Eles deviam pedir a desculpa, perdão de ter cagado por todo lado, já que eles não vão poder limpar, eles pelo menos deviam pedir desculpa. Então essa mentirada (sic)  histórica se junta muito bem com uma certa tradição filosófica do Ocidente e eu não me sinto familiarizado nem filiado a isso.

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