"A inclusão social é um legado descomunal", Érico Andrade avalia seu mandato e reflete sobre o papel da Anpof

Mel Ciqueira Santos

Graduanda em Filosofia na Unicamp

03/10/2024 • Entrevistas


Foto: Eric Gomes/Theia Produtores Associados

Érico Andrade, professor da Universidade Federal de Pernambuco, está na posição de presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) até o final de 2024, quando completa o mandato de dois anos, iniciado em janeiro de 2023. O atual presidente da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia, é doutor pela universidade de Sorbonne e realiza pesquisas em torno da psicanálise, com especial atenção às questões ligadas a negritude, racismo e subjetivação das pessoas negras.

Na ocasião do XX Encontro Anpof, o professor concedeu uma entrevista em que avalia o seu mandato e compartilha o que pensa a respeito do papel da associação. Erico revisita suas expectativas de gestão, nos fala sobre os eventos inéditos que realizados durante seu mandato e comenta sobre o papel da Anpof no combate às disparidades de gênero, raça e região que marcam a filosofia.

 

Em entrevista concedida à Anpof na ocasião do último encontro em Goiânia onde se deu a sua posse como presidente da associação, você afirma que esperava que em sua gestão fossem tomadas medidas para consolidar a visibilidade da pluralidade da produção filosófica nacional. Ao terminar o seu mandato, como você se sente em relação a tal expectativa?

Primeiramente eu quero agradecer a possibilidade de revisitar o que eu falei. Eu acho que a Anpof de fato conseguiu uma ampliação mais radical daquilo que são suas temáticas. Várias temáticas que foram historicamente silenciadas e que, portanto, estavam completamente desniveladas em relação às outras foram contempladas na minha gestão. É importante notar que foram várias décadas em que alguns temas eram discutidos em ambientes não filosóficos. Eram temas filosóficos, mas que não tinham chegado a esse ambiente institucional.  Eu acho que essa Anpof de Recife conseguiu contemplar várias temáticas que são centrais hoje para o mundo contemporâneo e que, ao mesmo tempo, a filosofia institucionalmente não estava conseguindo abarcar de forma consistente. Vou dar um exemplo: filosofia da descolonização. Poucas cadeiras nas universidades têm esse tema, no entanto, os eixos temáticos que nós colocamos estão abarrotados de apresentações. Parece que há um anseio de estudantes de forma geral por essas temáticas, como por exemplo, filosofia da deficiência e filosofia oriental. Temáticas que ponham em cena outras culturas que não sejam apenas aquelas de matriz europeia específica com a qual nós estamos habituados a estudar e a lidar.

Eu acho que essa ampliação é uma ocorrência muito consistente com as mesas principais, tendo temáticas importantes e também sendo feitas por pessoas negras. Acho que isso é também um ponto relativamente inovador que a gente está colocando uma vez que estamos tendo essa atenção para essas pessoas que historicamente nunca estiveram na Anpof.

Isso tem, portanto, duas dimensões: uma dimensão epistêmica - estas discussões estão ocorrendo na Anpof - e uma dimensão político-material que eu diria que é o fato da gente isentar as pessoas ou fazer elas pagarem metade da inscrição, por exemplo. Foi toda uma construção que a gente fez no sentido de fortalecer essa pluralidade porque a pluralidade só ganha consistência real quando ela é material. Em outras palavras, quando a gente tem possibilidade de pessoas estarem presentes nos seus corpos e com suas epistemologias concatenadas ou inscritas nesses corpos que nós poderíamos também chamar de territórios.

 

Ainda sobre o seu mandado. O que você considera que será o maior legado de sua gestão da Anpof?

Eu acho que a inclusão social é um legado descomunal e o exemplo é se criar um GT de Filosofia da Deficiência. É óbvio que a Anpof não cria GTs, a Anpof acolhe a demanda da comunidade em relação aos GTS, mas o fato da nossa associação ampliar o debate e as temáticas, encoraja as pessoas a criarem GTS que não estavam de alguma forma em evidência porque estavam trabalhando temáticas que ainda não consistiam ou que não conseguiu formar um grupo de trabalho. O fato da gente ampliar os horizontes, lançar textos, colunas e debates que valorizem as diferenças consequentemente tem um respaldo na própria comunidade que passa a criar GTs que são ligados a novas temáticas e também ligadas às temáticas tradicionais.  Então, de fato se a gente pensa, por exemplo, a criação de GTs que se deram durante o meu mandato ela é um sintoma, ou seja, ela é um perfeito símbolo daquilo que foi o mandato, que se calculou de fato pela pluralidade.

Por outro lado, não dá para ser plural onde há desigualdade, tem que ter um teto básico e tem que ter um chão básico. E como a gente faz isso? Por um processo de inclusão de pessoas negras participando das atividades principais da Anpof. É extraordinário pensar que de três mesas acadêmicas duas delas são completamente compostas por pessoas negras e a terceira mesa por pessoas não binárias, gays ou trans. E por que a gente faz isso? Porque há um desnível histórico. Ninguém está excluindo as outras temáticas, elas sempre foram colocadas em evidências e continuam sendo colocadas em evidências. Uma dessas mesas é a História da Filosofia, mas discutida a partir desse território que é o corpo negro e de lugares diferentes do Brasil. Isso é uma preocupação muito importante, porque além das questões raciais e de gênero, há no Brasil a questão da regionalidade. As regiões têm suas diferenças. Basta ver que esta é a primeira Anpof que ocorreu em Recife. Isso já diz muita coisa. Eu sou o segundo presidente do nordeste da Anpof. Então são várias coisas que vemos que precisamos ainda dar passos.

 

Nesta edição do encontro Anpof, também temos algo inédito acontecendo. Foi aberta a possibilidade de que alunos da graduação participem do evento apresentando suas pesquisas de iniciação científica. Como você enxerga essa mudança?

Essa mudança foi muito pensada. Nós tomamos essa decisão independentemente do governo federal, mas ela está em sintonia com o Plano Nacional de Pós-Gradução: não podemos pensar a graduação sem a pós-graduação. Isso é inviável. A pós-graduação só se sustenta pela graduação. O que que é a CAPES - que financia a pós-graduação? É uma fundação de aperfeiçoamento de pessoas. A sua finalidade principal é qualificar as pessoas no Brasil. A gente ainda tem um déficit de doutores e doutoras no Brasil, em relação a outros países, por exemplo.  Então o que a gente está fazendo é cultivar esse desejo, esse ensejo, essa vontade, da pesquisa desde a graduação para que não haja uma espécie de hiato entre a graduação e pós-graduação. É nesse sentido que a gente fez uma junção e tornou possível, por exemplo, a participação de estudantes da graduação de maneira inédita e que pode ser, sem dúvida nenhuma, um dos legados de nossa gestão. Acho difícil voltarem com relação a estes pontos que estamos criando na Anpof, e espero que não voltem.

 

Em entrevista para o Boletim Lua Nova, você afirma que enxerga três principais desafios na filosofia atualmente: a disparidade de gênero, de raça e a disparidade regional. Qual é, para você, o papel da Anpof no combate a estes desafios?

Eu acho que esse é o ponto central. Eu espero que o que a gente tenha feito como uma política de governo se torne uma política de estado. Em outras palavras, acho que isso que a gente construiu deve ficar seja qual for a gestão que vá assumir em seguida. Deve ficar a preocupação com as diferenças regionais, que são gritantes. Se a gente pensa, por exemplo, a distribuição de bolsas de produtividade é escandalosa a concentração em certas regiões do país. Se a gente pensa que os programas de pós-graduação em filosofia que têm as menores notas são os programas que têm mais gente negra, isso também diz da desigualdade. Então a ideia que é o dinheiro, o investimento público, não pode ser uma espécie de prêmio para quem produz mais, que faz isso ou aquilo. O dinheiro público deve ser uma espécie de incentivo para que haja uma equidade regional, uma equidade racial, uma equidade de gênero. O investimento público tem que visar a qualificação de pessoas e não somente que eles se tornem os melhores pesquisadores em linha reta do universo, mas que elas tenham condições equitativas de poderem fazer as suas pesquisas.

O dinheiro tem que ser distribuído de acordo com as necessidades de cada lugar, acho que isso é um ponto fundamental, além de respeitar as necessidades que envolvem gênero, raça e região. Porque, por exemplo, o Fernando Sá fez um texto maravilhoso mostrando que os programas que têm menores notas, são os programas que têm mais gente negra e os programas que têm as maiores notas são os programas que têm menos gente negra. Como a gente pode pensar um programa sem levar em consideração que ele deveria ser avaliado também pela sua diversidade racial e de gênero e de região. Será que isso não deveria ser um fator de avaliação? Será que os estudantes estarem bem e confortáveis nesses programas também não seria um fator de impacto na avaliação? Não poderíamos criar um índice de felicidade como um índice de avaliação do programa? Porque tem muita gente adoecendo em nome de uma qualidade que muitas vezes é inatingível para algumas pessoas. Elas não devem estar na pós-graduação?  Então, o que que a gente quer com a pós-graduação? Eu acho que o grande desafio que a gente tem é o de inclusão. Inclusão precisa de dinheiro, verba. Eu acho que é esse o projeto fundamental. E todos nós podemos produzir isso várias formas de filosofia que não necessariamente são coincidentes e que não necessariamente podem ser avaliados por um mesmo padrão. Temos que avaliar as pessoas pelas diferenças que elas têm e não por um padrão estabelecido. Acho que isso é um grande ponto para que a gente possa lidar com as questões de gênero, raça e região.