Bate-papo feminista: Yara Frateschi (Unicamp)
Yara Frateschi
Professora Livre Docente do Departamento de Filosofia da Unicamp
07/03/2017 • Entrevistas
“Por quais razões as mulheres têm a tendência de não permanecer nos ambientes de pesquisa filosófica? Chegou a hora de pensarmos sobre isso”
Sobre a escrivaninha dela estão três filósofas: Seyla Benhabib, Nancy Fraser e Hannah Arendt. A escolha não foi deliberada, segundo a professora da Unicamp. No entanto, todas se perguntam pelas condições do aprofundamento da democracia. Para Yara Frateschi, não é mais possível que as teorias da democracia desconsiderem os obstáculos à emancipação da mulher. Assim como não é mais possível nos furtarmos, no Brasil, a uma investigação das causas da sub-representação feminina nos Departamentos de Filosofia e na pesquisa.
“Por quais razões as mulheres têm a tendência de não permanecer nos ambientes de pesquisa filosófica?”. Para Yara Frateschi, esta é uma pergunta que devemos fazer às próprias mulheres: são elas que têm que dizer. “A escuta nos permitirá compreender os efetivos obstáculos materiais e simbólicos ao desenvolvimento da pesquisa filosófica por mulheres e à ocupação de cargos de docência”. Frateschi, contudo, é otimista: para ela chega na Universidade um movimento organizado de mulheres que reivindicam políticas públicas e ações afirmativas que corrijam a histórica desigualdade de gênero.
“O que acontece hoje na Universidade é muito positivo a esse respeito: uma tendência e uma série de reivindicações que nascem na sociedade, tomam corpo nos movimentos sociais e invadem o ambiente acadêmico”. Ela aposta que o feminismo chegou para ficar na academia, sem acreditar, contudo, num modo “feminino” de fazer filosofia. Veja abaixo entrevista da professora Yara Frateschi, especial para Anpof nesta semana das mulheres. Yara é professora da Universidade Estadual de Campinas, graduada, mestre, doutora e pós-doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Também foi pesquisadora visitante na Columbia University (2000), na ENS de Paris (2006), na Yale University (2016).
1. Qual importância você vê em discutir a presença da mulher na Filosofia?
Viva! Chegou a hora. Eu acho fundamental. Temos avançado no Brasil nesse sentido. Um dos sinais disso é que pela primeira vez se tematiza a sub-representação feminina nas instituições de ensino e pesquisa em filosofia. Algo que sabemos existir, mas de que não falamos explicitamente, como um tabu. Um fator muito alarmante é que as mulheres vão sendo progressivamente expulsas da carreira ao passo que os homens resistem mais ao ambiente filosófico. Esse é um dado produzido pela professora Carolina Araújo (UFRJ). É muito importante o que ela fez: quando os dados aparecem, não temos mais como fugir do problema ou esconder a desigualdade entre homens e mulheres. Surge a pergunta: por quê? Quais fatores, quais causas e o que leva a essa sub-representação feminina? Este é o primeiro passo para começarmos a pensar em como corrigir essa desigualdade e, finalmente, traçar um plano de ação.
Na minha opinião a coisa mais importante nesse momento é que as mulheres possam falar e ser ouvidas, e não decidir de antemão (de acordo com qualquer teoria) o que as afasta daquilo que elas querem fazer, da pesquisa filosófica. Que as mulheres possam falar e ser ouvidas é um momento fundamental no processo de combate à sua dominação, em qualquer âmbito que seja. Este é um momento de auto-compreensão, de compreensão mútua, de conversação ede construção de uma narrativa. Quais são as causas materiais da nossa sub-representação? Quais são as causas simbólicas? O pensamento abstrato sempre foi identificado com o masculino, não é mesmo? Este é um obstáculo simbólico que eu enfrentei, claro. Maria Isabel Limongi fala sobre isso em artigo na Coluna da ANPOF. Me identifico com ela a esse respeito. Precisamos falar sobre isso entre a gente e com as nossas alunas.
Mas há mais do que obstáculos simbólicos. A mulher enfrenta enorme dificuldade de permanecer na pesquisa quando se torna mãe, por exemplo. Não que ela não possa dividir o seu tempo entre a maternidade e a pesquisa e, aliás, o faz com garra, como sabemos. Mas é evidente que um bebê ou uma criança pequena, que exige cuidados extremamente delicados, afeta o trabalho da mulher, seja lá ele qual for. Não é que a maternidade diminui a nossa capacidade de reflexão! Ela toma tempo, ela toma atenção, por isso precisamos de apoio material, precisamos de creches, precisamos de prazos estendidos de bolsa (que corresponda a uma licença maternidade), sem isso, fica muito difícil, precisamos de mais tempo para produzir artigos, resultados, teses. O mundo com o qual eu sonho é um mundo de cooperativas, de restaurantes coletivos, de espaços comuns para o cuidado das crianças e dos adolescentes. Aí sim nós teríamos melhores condições de fazer filosofia e o faríamos com menos sofrimento. Sem isso, a lâmina recai sobre a mulher e principalmente sobre a mulher mais pobre, essa é a verdade. Resiste, compatilibilizando a carreira de pesquisa com a maternidade, quem tem condições financeiras de arcar com a creche e a estrutura toda que uma criança requer.
2. Você acredita existir uma filosofia feminina ou feminista e o que ela deve abranger?
Tenho muita resistência com relação à ideia de uma filosofia feminina, no sentido de haver uma epistemologia feminina ou um modo propriamente feminino de pensar e de refletir. Isso é alarmante porque pode nos levar a reforçar estereótipos de gênero, o que o feminismo busca combater. Quando a questão da emancipação da mulher se torna também uma questão filosófica, aí sim temos espaço para uma filosofia feminista, que é uma filosofia política e crítica da dominação da mulher, que investiga as suas raízes na sociedade e que pode, evidentemente, ser empreendida por todos. Tenho uma perspectiva universalista a esse respeito, mas que não descuida das particularidades das formas de desrespeito e violência. Me interessa o aspecto ético e político desse problema: a mulher se encontra sub-representada nas instâncias de poder, que deveriam ser mais democráticas, se encontra em desvantagem nas instâncias de construção e produção do pensamento filosófico, que também precisam de democratizar. E não podemos mais fazer essa reflexão sem nos perguntamos a respeito dos enormes obstáculos que se impõem às mulheres negras. Não dá mais para fazer filosofia política no Brasil hoje sem eleger esta como uma questão central.
3. Quais perspectivas vê para a discussão sobre o tema?
Eu vejo perspectivas extremamente positivas. Acho que o Brasil nunca esteve numa posição tão favorável para tematizar a questão do feminismo, em todos os âmbitos. É muito significativo que a gente tenha hoje, desde a redemocratização de maneira muito contundente, uma proliferação consistente de movimentos de mulheres, com distintas reinvindicações e muitas delas voltadas para políticas públicas. Temos no Brasil, do Oiapoque ao Chuí, movimentos de mulheres reivindicando e lutando por políticas públicas que corrijam o desrespeito e a exclusão que a mulher sofre neste país, seja a mulher branca, a mulher indígena, a mulher negra.
Desse modo, vem da sociedade um movimento muito favorável de organização e reivindicação das mulheres, e é isso que a gente vê chegando hoje na universidade. Isto se dá tanto no sentido de mulheres organizadas dentro da universidade lutando por condições melhores para seu ingresso e permanência na pesquisa e na vida acadêmica quanto, ao mesmo tempo, se reflete no próprio pensamento, no próprio âmbito da pesquisa em nosso país, na medida em que o feminismo passa a ocupar um lugar de destaque nas nossas próprias pesquisas e passa a figurar como ponto de investigação que chegou para ficar. Esse é um aspecto mais do que positivo: vem dos movimentos sociais, da organização real e efetiva das mulheres no Brasil, uma tendência que chega na academia e nos provoca uma reflexão que tem consequências filosóficas extremamente interessantes. Nós, pesquisadoras e professoras de filosofia temos que assumir o papel que nos cabe, conversar, refletir sobre a nossa posição na academia, desenhar políticas e lutar pela sua implementação.
4. Quais filósofas inspiram seu trabalho com a filosofia?
Isso é muito curioso. Porque nunca procurei mulheres filósofas de maneira deliberada. Mas o fato é, e isso é muito relevante, que hoje em cima de minha escrivaninha estão três mulheres. Eu estudo, dedico meu tempo, sobretudo, a três mulheres: Hannah Arendt, Seyla Benhabib e Nancy Fraser, que de maneira distintas, estão todas se perguntando sobre as possibilidades reais e efetivas da vida democrática. Sendo essa a pergunta, não é possível deixar de se perguntar da inclusão da mulher em todos os aspectos da vida democrática.
ANPOF (biênio 2017-2018)
07 de Março de 2017