Ensino de Filosofia e Raça, entrevista com as professoras Aline Carmo e Franciele Scopetc

Taís Pereira

Professora vinculada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de Filosofia do CEFET-RJ e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UNIRIO).

29/11/2024 • Entrevistas

No dia 14 de novembro de 2024, em uma sessão de videochamada, tive a alegria de ter comigo as professoras e pesquisadoras Dra. Aline Cristina de Oliveira Carmo (Colégio Pedro II) e Dra. Franciele Monique Scopetc do Santos (UNIR) para uma conversa sobre Ensino de Filosofia e Raça. A entrevista a seguir é a transcrição de parte desse encontro afetuoso e de convite à reflexão e ao aprendizado mútuo, algo tão caro à filosofia e ao seu ensino. Que as falas tecidas e compartilhadas sobre as políticas públicas (tais como a lei 10639/2003 e a 11.645/2008), a formação docente, bem como caminhos para o ensino de filosofia a partir de seus múltiplos territórios, contribuam com ampliação do diálogo em nosso campo.

 

Taís Pereira: É difícil começarmos uma conversa sobre ensino de filosofia e raça sem mencionarmos a lei 10.639 de 2003. Eu queria ouvir um pouco de como vocês compreendem esse marco para o campo da filosofia e seu ensino e em que medida também avaliam o modo como estamos nesse momento. Afinal, essa lei já tem mais de 20 anos de promulgação e às vezes ela ainda parece uma novidade no contexto formativo.

Franciele Scopetc: Eu acho que a pergunta é bem complexa, porque uma avaliação concreta já me remete, assim, a muita dificuldade de entender como é que isso está presente em diversos Brasis. Eu já passei por diversos Brasis — eu já morei no Norte, já morei no Sul, morei no Nordeste, no Sudeste. Também já fui professora da Educação Básica em diversos lugares deste país. Acredito que avaliar esse trabalho nos últimos 24 anos é sempre avaliar a iniciativa individual, muitas vezes de pessoas pretas e pardas; muitas vezes de mulheres, que puxam esse trabalho nas escolas, não só em novembro. E elas puxam essa discussão de uma maneira até mais irmanada do que como uma política educacional ou como uma exigência legal.

Acho que tanto a lei 10.639 quanto a lei 11.645 de 2008 são obrigatoriedades deixadas de lado, na maioria das vezes, pela organização do próprio currículo e gestão escolar. Eu acredito que nós temos uma obrigatoriedade e trabalhar com obrigatoriedade nem sempre é garanti-la nas escolas. Então, eu acredito que avaliar é muito difícil, mas pela minha experiência, escrevivências e andanças, vejo que são feitas ações pontuais. Não são ações sistemáticas ao longo do período letivo. Vou falar um pouquinho sobre o currículo escolar e como isso se torna mais presente, pelo menos na minha avaliação.

Nos últimos dez anos, sobretudo a partir das observações que faço no Plano Nacional do Livro Didático, os materiais precisam tocar de maneira direta, com citações, com referências, com filósofas e filósofos que trazem um pensamento mais decolonial, ou ainda vinculado à questão racial, à questão de gênero. Mais uma vez, isso não garante que isso seja apresentado aos nossos alunos e alunas. Assim como as questões de gênero e sexualidade, vejo as questões de raça no ensino de filosofia muito vinculadas à perspectiva individual do colega ou da colega, que tem, sim, um compromisso ou uma responsabilidade, seja ela uma responsabilidade por pertencimento, seja uma responsabilidade ética de trabalhar com esses temas, ou até um compromisso antirracista – lembrando que não é uma questão de culpa, mas de compromisso mesmo social.

Então, é um convite que tem que ser reiterado diversas vezes às escolas, aos sistemas de ensino. Vejo que trabalhar é necessário, mas nós não regulamos esse trabalho. Assim como as macroavaliações, nós não temos um mecanismo que avalie que esse sistema de ensino trabalhe ou não essas questões. E, a depender da territorialidade onde estamos nesses tantos Brasis, isso vai ter mais atenção ou não. E até a exigência do alunado, das meninas e meninos, ou menines, nas escolas. Não acredito que a evolução seja pouca, Taís e Aline, mas acredito que é como a questão da utopia. Sempre avança um passo, vai estar um passo à frente. Dimensionar na exigência avaliativa da política pública, não sei como propor isso, mas dimensionar e cobrar essas discussões, como o Enem vem apresentando, digamos, exigências de repertório, exigências de conhecimento sobre a temática, talvez seja um caminho.

Como a Taís falou, há 20 anos parece uma novidade, a depender da escola que você chega. Infelizmente, você ainda encontra o desfile da beleza negra, no dia 20 de novembro. E não pasmem, porque isso é uma realidade em diversos sistemas de ensino, sobretudo municipais. A história, a cultura constitutiva desse país está aí, o compromisso é nosso e acredito que esse compromisso começa na formação inicial de professores e professoras de filosofia e daqueles que fazem a política, também das Ciências Humanas, das grandes áreas, nos sistemas de ensino. Então, talvez, obrigar, há 20 anos e ainda parecer sempre uma novidade, não seja um caminho. Talvez conscientizar seja um termo exagerado, mas sim um despertar para essa necessidade. Um país racista, misógino, homofóbico, transfóbico como o Brasil precisa entender para quem ele fala, como ele fala, e o que ele fala sobre raça e racismo, e acho que a filosofia é uma aliada para isso.

Aline Carmo: É, sim, uma questão complexa. Considero que é uma discussão importante, sim, de ser feita no campo do ensino de filosofia, sem dúvida nenhuma. Eu vejo duas questões. Quais são? Uma sobre o ensino de filosofia e raça, a outra sobre a questão é a lei 10.639 e como nós vemos o seu cumprimento em 20 anos. Sobre a primeira pergunta qual é o ponto para mim? Entender raça como um problema filosófico, dentro do contexto histórico-político, do Iluminismo, do racismo científico.

Tanto a ideia do racismo como um problema quanto o fenômeno histórico, político e social de longa duração, como sinalizado pelo Carlos Moore. Ele já identifica na Antiguidade clássica, em textos de Aristóteles, sobre a presença de um racismo, um protorracismo nesses discursos. Pautado no fenótipo, na diferenciação, ter uma forma de classificação social, de hierarquização social, visando a limitação, o controle do acesso aos recursos. Então, uma coisa é você pensar essa questão do racismo e da raça como problemas filosóficos. O conceito de raça vinculado à filosofia moderna, dentro desse contexto da razão instrumental da modernidade, visando a estruturação de estados nacionais, repúblicas e estados nacionais, que vão se constituindo e se consolidando até a contemporaneidade. Então, uma coisa é você pensar o ensino de filosofia, a ideia, o conceito de raça como um problema filosófico. Isso ainda, eu acredito, que não é pautado e pensado atualmente no Brasil nesses termos.

Quando o racismo e o antirracismo são discutidos na educação básica, de um modo geral, também na graduação e na pós-graduação, a gente os vê vinculados a outras áreas do conhecimento, como na Sociologia, na História, no campo do Direito, na Antropologia. Mas, não como problema filosófico, como um tema da ética, da filosofia política, um problema fundamental das sociedades modernas e contemporâneas que ainda nos desafia na consolidação democrática. Então, isso eu não vejo e eu entendo que é fundamental.

 A segunda parte da pergunta, que diz respeito à lei 10639 de 2003 e à lei 11645 de 2008. As leis falam em história e cultura dos povos indígenas, das culturas africanas e afro-brasileiras, que é uma prescrição determinada desde a educação básica, em todas as esferas de ensino. Evidentemente, elas impactam a graduação e na pós-graduação, especialmente nas áreas de formação de professores, de formação continuada, que visam a consolidação de uma sociedade antirracista. De forma ainda muito precária, e de 20 anos para cá, especificamente no campo do ensino de filosofia, eu acredito que os tensionamentos permanecem. Acredito que a gente avançou em alguma medida em parte, ou talvez exclusivamente, pela militância, pelo ativismo, daqueles estudantes que entraram pelo sistema de cotas que foram fortalecidos por essas políticas de ações afirmativas no Brasil nos anos 2000, logo após a conferência de Durban em 2001. Então, a gente já tem uma geração de estudantes negros e indígenas formados pela Lei de Cotas em diversas diferentes universidades brasileiras e que hoje já são professores.

 A partir dessas leis, a gente entende, que ainda é precário, que ainda está muito nas mãos disso que a Franciele falou, da iniciativa dos professores e não necessariamente uma iniciativa da instituição, ou programas efetivamente comprometidos a nível institucional e transversal em todas as áreas. Então, a gente ainda tem muito para fazer. Um reflexo disso é como tem aparecido questões com essa temática no Enem. E, de novo, eu observo a mesma coisa. As questões referentes à raça, às africanidades, à indigenidade e às questões da diversidade em geral, vêm fora da filosofia. Está difícil entrar uma filosofia não canônica no Enem. Uma coisa é falar sobre racismo e antirracismo, democracia, diversidade, multiculturalismo. E outra coisa é falar de filosofias africanas, da ancestralidade, filosofias do encantamento, dos povos originários. São outras discussões, embora possam dialogar entre si.

 

Taís: Ainda na esteira da lei 10639/03, bem como da 11.645/08 que vocês abordaram, elas parecem reforçar uma discussão mais profunda a respeito de um currículo ou currículos para o ensino de filosofia. Um debate que não diz respeito apenas à escola, mas também à formação das licenciaturas e mesmo às pesquisas de pós-graduação.  Gostaria de ouvir um pouco sobre as tensões, disputas e/ou confluências que vocês percebem nesta dinâmica.

Franciele: Falar de currículo no Brasil anima os corações de uns e de outros não, né?  Eu sigo na perspectiva da qual bell hooks fala sobre a formação de professores e professoras e, então, dialogo com o currículo. Ele é um espaço de confrontamento, de confrontação construtiva e de questionamento crítico, sobre o que ensinar e por quê. A própria noção de uma encruzilhada de disputa, de quem aparece e quem não aparece, como a Aline bem ponderou no Enem, por exemplo, ainda continua de alguma maneira, sendo uma desvantagem curricular para as questões de raça e para as questões de gênero também, creio eu.

Se o currículo é esse caminho a ser percorrido ou perseguido, é óbvio que existe um currículo para a branquitude, assim como existe um currículo para a heteronormatividade. Isso é um fato. O currículo é um espaço daquilo que a gente ensina na escola, disputado também por campos privilegiados tanto no currículo da formação inicial, quanto nos currículos escolares básicos. Nas diretrizes que a gente tem como referencial para a formação de professores, de professoras ou até mesmo nos PPCs das escolas, nos planos políticos curriculares ou pedagógicos, PPPs, é constantemente evocado uma noção de política, uma noção de crítica, uma noção de aprender algo para que comumente seja realizado uma ação de transformação. Na filosofia, especificamente, o currículo escolar tem essa tendência eurocentrada, independentemente do estado que a gente vai atuar como professor, como professora, e mais uma vez recai na nossa formação a busca de alternativas para trabalhar para além do milagre grego, a superação do mito ao logos lá no primeiro ano do ensino médio, por exemplo.

Eu não acho que seja um debate ou uma disputa perdida por nós mulheres, pessoas pretas, pessoas pardas, pessoas indígenas, travestis, transexuais. Não é uma disputa perdida, mas é uma disputa que a gente precisa se agremiar e reverberar os bons trabalhos que nós temos na educação básica, no ensino superior, nos mestrados de formação de professores e professoras. Constantemente, eu tenho escutado um termo que até me questiona realmente da emergência, que é trazer as questões de raça, gênero e sexualidade como temas emergentes da formação.  O que eu acho interessante discutir em relação ao currículo é, sobretudo, a ideia de que nós não seremos formadas e formados para dar conta do que o currículo apresenta, aquilo que emerge dos nossos próprios alunos e alunas como um debate curricular, e que eu insisto numa noção de confrontamento construtivo. É difícil não ler, escrever e estudar como queria o Paulo Freire, mas é difícil achar que a sua formação inicial vai dar conta do que a molecada precisa.

Então, nesse sentido, as nossas pós-graduações, sejam acadêmicas ou profissionais, vão precisar estar em contato com quem trabalha, como trabalha e com as experiências bacanas que a gente tem em relação à educação básica. Eu tive oportunidade de conversar com algumas e alguns adolescentes que me traçaram o que eles entenderam do último tema do Exame Nacional do Ensino Médio. Uma adolescente me disse que foi interessante que ela pôde falar, por exemplo, da capoeira. Então, veja, uma menina estudiosa, com muita leitura, e ainda assim ela não conseguiu articular com todo currículo que ela consome em tempo integral numa escola privada, o que era a exigência do tema, assim como o tema do ano passado, da tripla jornada de trabalho das mulheres, com ênfase nas mulheres negras. Não é todo mundo que vai conseguir trabalhar isso e não é toda escola que vai conseguir trabalhar. Se nós trouxermos, como a Aline falou, essa dimensão de problemas filosóficos pertinentes, mesmo assim nós não vamos ter a garantia que isso constará nos currículos escolares, sejam nos níveis estaduais e nos níveis municipais, onde ainda temos, talvez, o privilégio de ter filosofia nos municípios, o que é uma realidade pequena.

Eu acho que nós estamos num caminho de tensionamentos. E esse caminho mostra as dimensões multiculturais que nós temos no nosso país. É óbvio que alguns lugares vão estar mais prontos para trabalhar a cultura afro-brasileira, africana, de diversos povos de África, porque se identificam mais e têm um pertencimento político e familiar maior. E vejo pela experiência que não são todos os lugares que vão privilegiar esse tipo de abordagem no currículo escolar. Creio que a obrigatoriedade é um ponto importante, mas espero não ter que viver mais 20 anos para poder estar em um outro momento com vocês, agora um pouco mais grisalhas, talvez, discutindo as experiências que nós acumulamos 20, 40 anos depois dessa obrigatoriedade. A gente é muito tolhido de ver a beleza que somos, a história que temos, de reverenciar as nossas grandes intelectuais, de referenciar os nossos grandes intelectuais. Lélia Gonzalez provocou, e talvez ela esteja correta: em que medida a gente vai conseguir sair da casa grande com os instrumentos da casa grande? Em que medida nós vamos conseguir adentrar esses lugares como currículo escolar a partir de noções que não vão dar conta, porque na graduação não deu conta, porque na formação não deu conta. Então, a gente é uma presença inquestionável, mas não pode ficar nessa seara da individualidade como a Aline reforçou. Tem que existir mecanismos e a partir de políticas públicas educacionais que convoquem esses currículos, essas formações a trabalhar as questões de raça, do racismo e sobretudo, acho que o enfrentamento à violência e pelo bem viver do povo preto.

Aline: A gente tem várias maneiras de começar essa conversa. Tem a maneira legalista e institucional que é começar falando a partir das determinações legais e as obrigações institucionais. O fato de as instituições de ensino cumprirem o que define a lei, reformar os currículos. E nem sempre os profissionais de educação têm acesso a essa discussão. Isso, de fato, é desafiador.

Agora, se a gente quiser entrar nessa discussão de uma maneira séria, para além dessa discussão institucional, é a realidade existencial, subjetiva, de estudantes negros e indígenas do Brasil. Dessa juventude negra, dessa juventude indígena, que entra na educação básica. O que eles vão acessar em termos de conteúdo para a sua formação, e o que pode contribuir ou não para a sua permanência, para a sua formação na escola? Eu acredito que falar sobre o currículo não envolve necessariamente olhar no sentido não capacitado, mas no sentido de perceber e reconhecer a existência dessas vidas, dessas juventudes e dialogar com temas que respondam em alguma medida, ou que dialoguem no mínimo, com as suas necessidades, com as suas realidades locais, com os seus anseios. Então, eu acredito que para confrontar esse currículo hegemônico que a gente estava falando, do ensino de filosofia, ainda 20 anos após a lei, permanecendo majoritariamente branco, masculino e europeu, a importância de a gente questionar as ideias de neutralidade e universalidade.

Acredito que isso ainda permanece sendo fundamental para você pensar o currículo como uma escolha pedagógica. Todo currículo é uma questão de escolha, ele é político, porque ele é uma escolha. Você pode escolher ensinar filosofia por diversos caminhos. Então, as escolhas que você faz, considerando a impossibilidade de dar conta de 5 mil anos de existência, no mínimo, de história da humanidade, portanto, de produções filosóficas, sempre serão feitas essas seleções, você vai sempre escolher. E a escolha que você vai fazer é uma escolha política. Nesse sentido me parece fundamental entender e reconhecer que todo currículo é político, sendo político ele é uma questão de escolha deliberada, não é uma escolha leviana, não é uma escolha superficial. É uma escolha deliberada que deve estar comprometida com, sim, as suas obrigações legais enquanto profissional da educação, atuante, seja na educação básica, na graduação ou na pós-graduação. Existe um sistema normativo que orienta esse fazer e, nesse sentido, a gente pensar esse ensino de filosofia para além de uma suposta neutralidade.

Essa filosofia universal com questões universais que atravessam a toda subjetividade, resistência, independentemente da sua raiz. E a gente aqui assume, em oposição, em confrontação, uma perspectiva contracolonial para dialogar com o Nego Bispo, que propõe as confluências com as filosofias indígenas, africanas, afrodiaspóricas. Então, em confronto com essa ideia do currículo neutro e universal da filosofia, defender um currículo pautado pelas pluriversalidades e pelas territorialidades. Entender que todo conhecimento, toda filosofia se faz a partir de um determinado lugar, a partir de determinados sujeitos, determinados corpos inseridos no tempo e no espaço. E, reconhecendo essa territorialidade da prática filosófica, fazer, então, dos nossos currículos um reflexo das nossas territorialidades, dos nossos anseios pluriversais. Eu acredito que esse caminho pode dialogar de maneira muito rica, tanto com estudantes da educação básica, quanto da graduação, da pós-graduação, das licenciaturas no sentido de mobilizar, de atravessar existencialmente, subjetivamente, dar sentido ao fazerem o ensino de filosofia no Brasil. E, só para completar, um último comentário, nesse diálogo que eu venho fazendo com ainda poucos, quero muito mais, professores e pesquisadores de filosofias africanas, é a respeito da diáspora e do continente. É muito angustiante quando a gente começa a dialogar, quer dialogar sobre as nossas filosofias ancestrais africanas, dos povos indígenas, e a nossa discussão fica reduzida, ou à repetição dos ditos universais canônicos, ou a crítica a eles e a dificuldade que a gente tem de entrar mesmo na discussão em termos de conteúdo, de vivência, de memória, de troca ancestral das nossas filosofias e práticas ancestrais, de autocuidado pessoal e coletivo, enquanto filosofias do bem viver.

 

Taís: A realidade das professoras e dos professores de filosofia nas escolas acompanha a situação docente em geral: muitas turmas e pouco tempo para planejamento e estudo. Inclusive, estamos em um cenário de precarização tal que a composição da nossa carga horária é dividida com outros componentes ou temas, como projeto de vida, por exemplo. Em uma realidade em que a presença da filosofia nas escolas tem diminuído, como podemos pensar estratégias de ensino-aprendizagem comprometidas com as discussões étnico-raciais de forma filosófica? Acho que, de alguma maneira, vocês já apontaram caminhos, mas fiquem à vontade para acrescentar o que mais julgarem importante.

Franciele: Acho que o principal ponto da pergunta são as estratégias.  A minha primeira ideia em relação a essa estratégia são duas metáforas possíveis. A primeira metáfora é aquele texto, acho que de 1995, da professora Nilma Lino Gomes, que diz “A mulher negra que eu vi de perto”. Então, a minha primeira metáfora é “o ensino de filosofia que eu vi de perto”. Não foi um ensino de filosofia comprometido, por exemplo, com as EREAS, com a Educação das Relações Étnico-raciais. Pelo contrário, era um ensino e foi um ensino que trabalhou as EREAS por 60 horas na graduação, ou 80 horas, e nesse trabalho eu precisava acionar condições sentimentais, epistemológicas, de trazer isso para a realidade do meu magistério, da minha escola e da minha docência. Ao longo dessa trajetória, já na pós-graduação, outra metáfora possível é aquela do texto da professora Megg Hayara de Oliveira, que trabalha a posição política das mulheres travestis e transexuais no movimento negro, intitulado “Por que você não me abraça?” E eu pergunto aos colegas, os nossos intelectuais da palavra, por que vocês não abraçam os professores e professoras de filosofia? Qual é o medo de abraçar o professor que está na educação básica? Qual é o medo de também ver a nossa limitação, de formar sem nenhuma identidade política, comprometida com uma transformação radical dos nossos alunos e alunas citados pela Aline?  São esses milhares de jovens nas escolas de educação básica e pública nesse país que estão lá.

Óbvio que é maravilhoso eles ouvirem sobre o Aristóteles, mas talvez seria maravilhoso ouvir sobre a Sueli Carneiro também. Então, por que a gente não abraça essas pessoas e essa filosofia que a gente viu de perto nos sistemas de ensino? Talvez a principal estratégia seja entender a interseccionalidade. Será que a gente consegue trabalhar um ensino de filosofia interseccional de maneira a promover a educação para as relações étnico-raciais? A obrigatoriedade nos mostra contradições, mas o compromisso formativo, a gente acabou de ter aí uma nova resolução de formação de professores em 2024. Será que a gente consegue, para além aí da normatização, abraçar uma estratégia de compromisso interseccional, de entender, de abraçar nossos professores e professoras nas suas identidades plurais, multiculturais, e colocar esse eixo na educação para as relações étnico-raciais como uma estrutura fundamental na formação do professor e da professora de filosofia? Obviamente, não são os 20 anos da educação da obrigatoriedade da lei que vai confrontar essa formação bacharelesca, masculinista e que a Aline bem citou. É uma presença diminuta da filosofia, cada vez mais diminuta. E é uma ausência extensa em termos de tempo. Quando a gente pega aqueles primeiros textos lá da Marilena Chaui, que virou o livro, ou o texto do Franklin Leopoldo e Silva, lá do início dos anos 1990, de filosofia para o segundo grau, essas presenças e ausências colocam para nós um desafio hoje de presenças afirmativas como no projeto de vida. E será que essa estratégia citada anteriormente pode estar colocada perante essa demanda que foi colocada para o nosso magistério agora? Porque agora é o projeto de vida, mas há oito, nove anos atrás, era o ensino religioso. Era uma demanda que nos era colocada, empurrada. Hoje, na formação geral básica, com a filosofia bem delimitada talvez ter uma para uma estratégia mais vinculada às questões de raça, gênero, classe, dentro desse aparato da educação das relações étnico-raciais, para fomentar essas discussões de um projeto de vida dessas vidas que a Aline falou: de pessoas pretas, de pessoas pardas, de pessoas pobres, de indígenas, de mulheres.

Eu acho que pelo menos conhecer o que nós temos produzido no Brasil, sobretudo a partir do pensamento das nossas mulheres, seja uma primeira estratégia. Perceber que não é tanta perfumaria. Não é perfumaria. É necessário edificar uma condição de estratégia na educação das relações étnico-raciais, a partir de posturas e compromissos de docentes que atuem de maneira interseccionalizada nas questões de gênero, raça e sexualidade, e que não achem isso perfumaria ou questões de segunda ordem. Porque, afinal de contas, é uma emergência que grita nos nossos corpos desde que o Brasil é Brasil. Quero frisar que talvez essa estratégia venha a partir do domínio desse instrumental para o pensamento das posturas interseccionais. Elas podem estar no projeto de vida, na formação geral básica, e elas podem estar como compromisso social com a educação básica, com a escola pública e com a nossa juventude.

Aline:  Muito bom te ouvir, as suas contribuições e reflexões, Franciele. Há muita coisa para dizer e para trocar sobre essa realidade das professoras e dos professores, mas eu queria começar por isso que a Franciele falou do ponto de vista da interseccionalidade. Eu quero falar do ponto de vista existencial, cosmológico, que é como a filosofia pode dialogar tanto com essas outras disciplinas da reforma do ensino médio quanto com a realidade da sobrecarga mesmo de vida dos professores. No contexto da reforma do ensino médio, eu acho que a questão fundamental que a gente pode trazer como questão filosófica e de obrigatoriedade, na esteira do que define o artigo 26A da LDB, incluído com as alterações da 10.639 e da 11.645, é a questão do bem viver. Filosofias do bem viver. Em que medida eu posso desenvolver esses conhecimentos que estão sendo propostos pelas disciplinas que estão sendo trazidas nesse contexto de sobrecarga, nessa ideia de um currículo mínimo? Então, seja na perspectiva de uma disciplina como projeto de vida ou uma disciplina como brigadeiro caseiro, ou na própria disciplina de filosofia, e se for o caso, outras, um diálogo com a perspectiva existencial, filosófica, que é a ideia de bem viver. Pode ser entendido enquanto um conteúdo obrigatório da educação básica, da educação profissional, tecnológica, de graduação e pós-graduação, vinculada à ética, à ética profissional, à ética cidadã.

Pensar sobre as filosofias do bem viver que ultrapassem essa dinâmica capitalista racial que predomina hoje. Eu acredito que seja impossível defender – algumas pessoas ainda defendem – a possibilidade de um capitalismo racial com o bem viver. Me parece que não, que isso já está posto há algumas décadas, para não dizer séculos. Então, em que medida a gente pode pensar essa realidade das professoras e professores na perspectiva das filosofias do bem viver? E aí, nesse sentido, vinculando a ética do cuidado biocósmico do qual fala o professor Bas’llele Malomalo, que vai pensar justamente esse nosso ser, da sua redução ao trabalho, para a sua redução a um tempo que te engole, e aí, então, falar sobre filosofias do tempo, em que medida a gente pode dimensionar?

Estou pensando aqui em estratégias de ensino-aprendizagem, eu estou propondo essas estratégias através de conteúdos programáticos inicialmente, que a gente pode trabalhar e dialogar com outras disciplinas. Essa também é uma estratégia, porque a outra dinâmica, uma perspectiva é o conteúdo e outra perspectiva é a atitudinal, né? Os sentidos de filosofia que eu tenho buscado desenvolver com os meus alunos de educação básica, dentre eles, o sentido existencial da filosofia como modo de vida e o sentido atitudinal, de atitude, de como é que você pratica aquela filosofia. Nesse sentido, a prática do ensino de filosofia, como uma estratégia, pode ser o aquilombamento, a construção de redes. A Franciele falou algo nessa direção também.

Acho que a gente não pode atuar sozinho. Essa ideia de você ser o herói, atuar de maneira isolada, você se sente frustrado porque tem uma estrutura que te engole. Mas, se você identifica as parcerias, as confluências possíveis que podem te fortalecer nesse processo, a travessia se torna mais prazerosa e mais viável, mais possível. Então, uma vez uma professora me disse, a Cláudia Miranda, que a gente só sobrevive em rede. Então, esse encontro, essa entrevista, é um diálogo em rede de fortalecimento de alimentação, de amadurecimento mútuo, é um momento de formação continuada para a gente. Porque para mim é um prazer estar aqui conversando com vocês, Taís e Franciele, e todas as outras pessoas que vierem dialogar a partir dessa entrevista, dessa publicação, dessa comunicação e propósito de confluência. Acho que as estratégias são essas, é a gente pensar em que medida a gente pode lutar politicamente, por políticas do bem viver, que envolvem a redução da nossa carga horária, que envolvem o respeito à nossa subjetividade, que envolvem o respeito à nossa saúde mental, física, profissional, à nossa não redução à mão de obra. Uma compreensão nossa enquanto sujeitos integrais que merecem e devem ter cuidado mutuamente uns aos outros para tematizar nas escolas, no diálogo com professores e profissionais de diferentes disciplinas e setores das instituições que a gente estiver atuando.

DO MESMO AUTOR

O ensino de Filosofia diante do 'novíssimo' Ensino Médio

Christian Lindberg

Professor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFS e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFPE).

13/08/2024 • Coluna ANPOF