Entrevista com José Meirinhos - "Em tempos difíceis, é papel da Filosofia também ajudar a evitar o desastre"
Nádia Junqueira Ribeiro
Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof
Alfredo Storck
Professor do departamento de Filosofia da UFRGS
26/10/2019 • Entrevistas
O presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia esteve na última semana no Brasil para participar do I Congresso da Sociedade Brasileira pelo Estudo da Filosofia Medieval, em Porto Alegre. Na ocasião, José Meirinhos, que também é diretor do Departamento de Filosofia da Universidade do Porto e presidente da Sociedad [ibérica] de Filosofía Medieval, defendeu a obrigação de professores e estudantes de Filosofia resistirem ao ataque que a área vem sofrendo. Para o professor, foram a ciência e a generalização da educação que contribuíram decisivamente para vivermos num mundo melhor e responsabilidade dos professores e estudantes de filosofia continuar a trilhar essa via, resistir e contrariar todas as ameaças.
Segundo o filósofo, não há uma receita mágica para o pensamento ser eficaz. Ele defende, contudo, a argumentação clara, a intervenção pública, a defesa das instituições e de valores partilhados como as vias com que filósofos de todos os tempos contribuíram para o seu próprio tempo. “Cabe-nos fazer o mesmo”, disse o professor. Para ele, quem ataca a Filosofia e as Humanidades julga, equivocadamente, que este campo pode ser separados dos demais das ciências. “Quem começa atacando uma parte do saber, acabará tendo medo e tentando fazer o mesmo com todos os outros campos. Os que agora atacam a Filosofia estão bem a tempo de compreender o erro que estão cometendo”, comenta.
Meirinhos também compartilhou sobre a experiência da supressão do ensino obrigatório da Filosofia nos liceus na Espanha, há seis anos, e como reverteram a situação. A comunidade filosófica mobilizou-se e respondeu criando a Red Española de Filosofía. Depois de quatro anos de diálogo com agentes públicos, a rede conseguiu a reintrodução da filosofia no Ensino Secundário. Ele enfatizou, nesta experiência, a importância das cooperações internacionais. Por iniciativa da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof) e de sociedades filosóficas ibero-americanas, em 2017 foi publicada a Declaração de Salvador a favor da Filosofia que, segundo o professor, teve grande importância no sucesso dessa luta da REF em Espanha.
O evento em Porto Alegre foi organizado pela recém-criada Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval. Meirinhos destacou a importância destas organizações ao afirmar como o trabalho individual isolado é hoje insuficiente, dada a necessidade de discussão e difusão das pesquisas. Para o professor, as sociedades científicas estimulam a interligação e facilitam a participação em atividades da comunidade científica. Sem reconhecimento público é muito mais difícil que a sociedade como um todo beneficie e saiba valorizar todos os avanços conseguidos pela pesquisa científica, explicou.
Um dos grandes nomes da Filosofia Medieval hoje no mundo, Meirinhos também opinou sobre o estado das artes dessa área hoje. Segundo ele, a disciplina descobriu uma diversidade cultural que permitiu uma renovação, que tem contribuído para alargar o cânone filosófico. Segundo o professor, há a inclusão, por exemplo, de textos filosóficos ou especulativos escritos por mulheres e por leigos.
1- Qual o papel da Filosofia na Europa e no mundo atual? Como reagir a esse contexto de ataques?
Sim, são tempos difíceis. Muito difíceis, no plano social, econômico, cultural, político, educativo. Mas, também são tempos inigualáveis na história da humanidade no que diz respeito ao acesso a (melhores) condições de alimentação, de vida e de educação para um maior número de pessoas. O aumento de desigualdades é a maior ameaça a um futuro que, com toda a capacidade de inovação e de produção instaladas, deveria ser mais risonho. O autoritarismo crescente é apenas um epifenômeno dessas desigualdades e a tentativa de garantir a sua manutenção. É evidente que foram a ciência e a generalização da educação que contribuíram decisivamente para vivermos num mundo melhor e um maior número de cidadãos tivesse conseguido aceder a melhores condições de vida. Por isso, é nossa responsabilidade continuar a trilhar essa via. Como professores e pesquisadores, temos a obrigação de resistir e contrariar todas as ameaças, em favor desse mundo melhor para todos. Pode ser um período mais ou menos longo, mas também é o que a sociedade espera de nós.
A universidade e a escola no seu conjunto são instituições com responsabilidades acrescidas no mundo atual, pois a sua atividade visa o benefício de todas as camadas sociais. A tarefa da Filosofia, nas suas múltiplas vertentes e correntes, é sempre mostrar que o pensamento vale a pena. O pensamento fundamentado é a melhor ferramenta de que a humanidade ainda dispõe para construir sociedades prósperas e tranquilas. Não há nenhum exemplo histórico de sociedades justas, bem-sucedidas, com bem-estar do maior número que tenham assentado na divisão, na exclusão, na violência. Todas as que o tentaram desapareceram, para alívio da humanidade. Em tempos difíceis, é papel da Filosofia também ajudar a evitar o desastre. Não há uma receita mágica para o pensamento ser eficaz. Mas, a perseverança, a argumentação clara, a intervenção pública, a defesa das instituições e de valores partilhados, foram as vias com que filósofos de todos os tempos contribuírem para o seu próprio tempo, construindo o futuro. Cabe-nos fazer o mesmo.
2- A Filosofia vem recebendo ataques no mundo, em geral, e no Brasil em particular. Por que esses ataques neste momento? Por que à Filosofia?
A Filosofia, enquanto aspiração ao saber fundamentado que realiza o homem, tem a responsabilidade de lutar por ensino de qualidade, universal, inclusivo. Posições políticas mais divisivas e que apostam na conflitualidade social como modo de atuação, só podem ter receio e medo Filosofia e das Humanidades em geral. Depois acabarão tendo receio de todos os outros saberes que ensinem a pensar e que olhem de modo construtivo para tudo o que nos rodeia. De Sócrates a Miguel de Unamuno foram muito os que se levantaram contra todas as formas de opressão e de pensamento único, colocando em risco a própria vida. Mas, eles é que deram o exemplo de humanidade e de sabedoria. É deles que nos recordamos em tempos difíceis.
O curioso desses ataques à Filosofia ou às Humanidades é julgarem que este campo pode ser separado dos restantes domínios do saber e das ciências. Não podem, como 2.500 anos de história do pensamento e das ciências já mostraram. A universidade que não tenha ilusões, se for passiva, todos, sem exceção, perderão. Quem começa atacando uma parte do saber, acabará tendo medo e tentando fazer o mesmo com todas os outros campos. É também por isso que essa atitude sempre saiu derrotada, ou teve que inverter a marcha. E os que agora atacam a Filosofia estão bem a tempo de compreender o erro que estão cometendo.
3- Como o senhor avalia o panorama da Filosofia Medieval na atualidade? Como vê a atual produção na área e o que tem feito de novidade e de relevância para produção filosófica?
Em anos recentes a pesquisa em Filosofia Medieval evoluiu em múltiplos sentidos, tornando-se um campo de pesquisa muito vivo e entusiasmante. Continuam a ser estudados os grandes pensadores e em todos os domínios tradicionais da filosofia, sobretudo antropologia, epistemologia, lógica, metafísica, filosofia da natureza e cosmologia, ética e filosofia da ação, política, estética. Hoje prefere-se entender esse longo período (c. séc. IV até ao séc. XVI) a partir da perspetiva da pluralidade de filosofias, de religiões, de línguas, de tradições e de escolas. Por isso, a disciplina consolidou a capacidade para entender a filosofia em todas as tradições, onde se incluem cristãos, judeus, muçulmanos e as orientações heterodoxas no interior de cada uma dessas religiões. E não se pode esquecer que se escrevia filosofia em grego, hebraico, árabe, latim e nas diversas línguas que nasceram no final da Idade Média.
Ao descobrir esta diversidade, a própria área vive hoje uma renovação visível, que tem contribuído para alargar o cânone filosófico, incluindo textos filosóficos ou especulativos escritos por mulheres, por leigos, e mesmo nas nascentes línguas vernáculas europeias, incluindo também a sua expansão para o Novo Mundo americano ou asiático no final da Idade Média e início da Idade Moderna. A atenção a essa diversidade e à circulação geográfica e intercultural do saber filosófico é um dos resultados mais sensíveis da pesquisa recente. E tem crescente importância o diálogo direto com a filosofia contemporânea, benéfico para ambos os campos: por um lado permite uma outra compreensão das teorizações medievais e, por outro, permite enriquecer a filosofia contemporânea com o melhor conhecimento dos mesmos caminhos já trilhados no período medieval.
4- Qual o significado da criação da nova Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval? Que importância tem essa criação no contexto em que vivemos?
As sociedades científicas desempenham hoje um lugar insubstituível enquanto instituições agregadoras e dinamizadoras de estudantes e de especialistas com interesses científicos ou profissionais comuns. Nos últimos 40 anos, a medievística filosófica brasileira tornou-se plenamente internacionalizada, dando contributos de primeiro plano para o campo de estudos. A criação da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval (http://sbefm.com/), que entre 7 e 10 de outubro teve o seu primeiro congresso internacional na UFRGS em Porto Alegre, prossegue outras iniciativas anteriores e beneficia do impulso dado por diversos GTs da ANPOF e por outros eventos recentes. Por outro lado, a SBEFM permite também aspirar a um outro grau de envolvimento da comunidade científica, de modo a reivindicar o seu lugar próprio no plano internacional, na universidade e nas instituições acadêmicas brasileiras. O trabalho individual isolado é hoje insuficiente, dada a necessidade de discussão e difusão das pesquisas. Já as sociedades científicas estimulam a interligação e facilitam a participação em atividades da comunidade científica alargada, nacional e internacional. Por isso, apesar da dificuldade e do enorme esforço que representa organizar um grande Congresso como este da UFRGS, ele é um serviço inestimável à comunidade filosófica.
Em todas as situações de refluxo de investimento ou de reconhecimento público, as sociedades científicas devem ser também uma voz ativa representando a totalidade dos seus membros junto das autoridades acadêmicas e públicas. Sem reconhecimento público é muito mais difícil que a sociedade como um todo beneficie e saiba valorizar todos os avanços conseguidos pela pesquisa científica, neste caso com o estudo de uma época que viveu longamente as vantagens filosóficas, sociais, culturais e econômicas da circulação do saber entre diferentes culturas, línguas e religiões. Por estas razões, a criação da SBEFM é sem dúvida uma excelente notícia para as sociedades congêneres de outros países. E os colegas brasileiros que a criaram ou dela são membros estão verdadeiramente de parabéns.
5- Como vê a importância e atuação das Sociedades Científicas de Filosofia na atualidade?
As situações são seguramente muito diversas de país para país. Para além da importância das sociedades científicas em geral para o sucesso das ciências nos últimos dois séculos e meio, gostaria de responder citando 3 exemplos da área da Filosofia que conheço bem.
1º reformas de ensino
: em Portugal está em curso um processo de renovação do ensino da Filosofia no Ensino Secundário (2 anos de Filosofia obrigatórios para todos os estudantes). Neste âmbito, o Ministério da Educação de Portugal solicitou a colaboração da Sociedade Portuguesa de Filosofia e da Associação de Professores de Filosofia, que estudaram, discutiram e propuseram uma reorganização dos programas que está a ser testada num grande número de escolas e em breve será generalizado. Foi o próprio Ministério que procurou a colaboração das sociedades científicas em todos os domínios e o processo decorre com normalidade e cooperação, no meio de todas as diferenças de opinião que são enriquecedoras e sempre vêm à discussão.
2º recuperação de ensino da Filosofia: há cerca de seis anos em Espanha foi suprimido o ensino obrigatório da Filosofia nos liceus. A comunidade filosófica mobilizou-se e respondeu criando a Red Española de Filosofía que liderou um processo de diálogo com os agentes políticos que durou cerca de quatro anos e que, no final, conseguiu a reintrodução da filosofia no Ensino Secundário. Sem a persistência da REF, o poder político teria perdido a oportunidade de compreender o contributo positivo que a Filosofia dá para a formação da capacidade de pensar e da cidadania.
3º cooperação internacional: por iniciativa da ANPOF e de sociedades filosóficas ibero-americanas, a 20 de abril de 2017 foi publicada a Declaração de Salvador a favor da Filosofia. Esse documento foi crucial para o sucesso da luta da REF em Espanha. E no diálogo aberto e cooperante com as instituições públicas poderá ter o mesmo sucesso em outros países do nosso mundo euro-latino-americano. Nesse plano a cooperação internacional é indispensável. Ainda na semana passada na IIª Bienal de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, pude assistir ao testemunho de solidariedade e apoio à comunidade filosófica brasileira transmitido pelo Presidente da Société Française de Philosophie (Prof. Denis Kambouchner, da Sorbonne, Paris) e por mim próprio, em nome da Sociedade Portuguesa de Filosofia. As sociedades internacionais também têm a obrigação de sensibilizar as autoridades para a oportunidade que está a ser perdida ao querer dispensar-se a Filosofia e a universidade de dar o seu melhor contributo para o saber, a ciência e a sociedade no seu todo.
Sou, por isso, um otimista quanto ao contributo da Filosofia e das sociedades científicas para a consolidação do ensino e da pesquisa, mobilizando a própria comunidade acadêmica e não deixando de ter um diálogo persistente e construtivo com as entidades que tutelam a ciência e o ensino.
*Nádia Junqueira Ribeiro é jornalista da Anpof e doutoranda em Filosofia Política na Unicamp. Dr. Alfredo Storck é professor do departamento de Filosofia da UFRGS