Entrevista com Mitieli Seixas: a primeira brasileira a receber o prêmio Elisabeth of Bohemia Prize
05/08/2021 • Entrevistas
A professora Dra. Mitieli Seixas da Silva, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, foi a primeira brasileira a receber o Elisabeth of Bohemia Prize, concedido pelo Center for the History of Women Philosophers and Scientists, sediado na Universidade de Paderborn, Alemanha. O prêmio é um reconhecimento do trabalho que Mitieli realiza à frente do Grupo de Pesquisa "Émilie du Châtelet between Experience and Reason in the 18th Century: Studies in the Formation of the Philosophical Canon, Theories of Knowledge, and the History of Women Philosophers". Como nos conta Mitieli nesta entrevista, este prêmio é sobre o futuro da história da Filosofia que está sendo escrita no Brasil.
O Prêmio Elisabeth da Bohemia não é uma competição, mas um prêmio que celebra a história das mulheres na filosofia. Ele é concedido na forma de uma honraria e um suporte financeiro de 3000 euros para mulheres que o comitê considera estarem trabalhando para a revisão do cânone e a consequente inserção das vozes das mulheres na história da Filosofia. O prêmio é concedido desde 2018, sendo a profa. Lisa Shapiro (2018) e a profa. Mary Ellen Waithe (2019), as duas laureadas em anos anteriores. Como no ano passado, por conta da pandemia, as atividades do Centro para a História das Mulheres Filósofas e Cientistas foram adiadas e, com ela, a cerimônia de premiação, em 2020 não teve premiação.
Neste ano, a cerimônia de premiação ocorreu durante as atividades do XVIII Simpósio da Associação de Mulheres Filósofas, cujo tema era "Repensando o passado, definindo o futuro". Assim, em 2021, o Centro decidiu dividir o prêmio de 2021 em duas partes: um ato simbólico honrando o passado, com uma homenagem às criadoras da Associação Internacional de Mulheres Filósofas e o prêmio com aporte financeiro representando o futuro, o qual foi concedido à Mitieli Seixas e ao seu grupo de pesquisa "Émilie du Châtelet between Experience and Reason in the 18th Century: Studies in the Formation of the Philosophical Canon, Theories of Knowledge, and the History of Women Philosophers".
Qual a importância desse prêmio para a Filosofia Brasileira, considerando que poucos programas de pós-graduação abordam o trabalho de Châtelet?
Quando Ruth Hagengruber nos procurou para contar sobre a decisão do board de nos honrar com a premiação, ela disse que essa decisão era sobre o futuro. Isso significa, eu acredito, que o prêmio deste ano, diferentemente dos anos anteriores, não é da ordem de um reconhecimento por uma obra realizada, mas representa uma aposta em um caminho. O caminho futuro da história da Filosofia, como eu o vejo, envolve, principalmente, dois movimentos. Em primeiro lugar, ele já é, mas será cada vez mais, uma construção coletiva, integrada, fruto mais da união de esforços em grupos de trabalho e pesquisa do que, como diz Gisele, de gênios isolados. É desse modo de fazer filosofia em grupo que acredito, com estudo rigoroso, amizade e compartilhamento. Em segundo lugar, essa construção coletiva envolve uma tomada de consciência histórica sobre nosso lugar, as condições de nossa docência e pesquisa, nossas próprias filósofas e nossa responsabilidade com a formação dos estudantes. Essa tomada de consciência deve-se, claro, aos estudos de gênero, que, no Brasil, já avançaram há mais tempo, mas também e, para mim, principalmente, à pesquisa pioneira sobre a realidade das mulheres na Filosofia conduzida por Carolina Araújo.
Como vejo, o modo como fazemos história da Filosofia no Brasil é, reconhecidamente, de excelência. Eu, e muitos dos colegas que estão no grupo, fomos formados em uma escola metodológica, digamos assim, de rigoroso respeito pelo texto. Essa metodologia nos torna fortes como comunidade e é uma marca importante da história da filosofia no Brasil. Mas, nos últimos anos, nossa área avançou com respeito às exigências de diversidade e inclusão e não é mais possível que não sejamos sensíveis a essas mudanças. Novos ventos chegaram e eles não são uma moda passageira, ao contrário, são algo que está mudando profundamente a história da Filosofia numa escala internacional.
Você acredita, então, que temos avançado neste desafio de inserir as obras de filósofas em nossas bibliografias, cursos e eventos?
Sim! Temos eventos periódicos (a I Conferência Mulheres na História da Filosofia Moderna, três edições já do Vozes: Mulheres na Filosofia...), coletâneas, novas traduções, a criação do GT Mulheres na História da Filosofia liderado pela Nastassja Pugliese e uma miríade de iniciativas que surgem todos os dias. E isso tudo tem acontecido a despeito da situação geral de desfinanciamento da pesquisa, o que é especialmente crítico no caso das humanidades e, mais ainda, da Filosofia. Se pensarmos na conjuntura política e social de nosso país, onde a cultura, as humanidades e a filosofia estão constantemente sob ataque, a concessão deste prêmio é ainda mais simbólica. Nós estamos na América Latina, reunidos em um projeto de pesquisa de uma universidade do interior de um país continental e estamos trabalhando rigorosamente, embora muitas vezes sem financiamento, em prol da renovação da história da Filosofia. Eu acredito que isso tenha valor em si e o prêmio serve para lembrar que não temos o direito de abandonar esse caminho.
Você coordena o grupo de Pesquisa e Tradução Émilie du Chatelet. Como é o trabalho do grupo e quem participa? Qual o papel deste grupo nesta premiação? Qual a importância de se realizar esse trabalho de história da Filosofia neste formato.
O Grupo de Pesquisa e Tradução Émilie du Châtelet começou como um projeto de pesquisa vinculado à UFSM para institucionalizar minha pesquisa na obra da filósofa Émilie du Châtelet. Meu interesse por Du Châtelet iniciou no final de 2018, quando Katarina Peixoto volta de um evento em Paderborn e organiza a I Conferência Internacional Mulheres na Filosofia Moderna, junto com Pedro Pricladnitzky. Por ocasião da conferência, que ocorreu em junho de 2019 no Rio de Janeiro, Katarina e Pedro me convidaram para falar sobre Émilie du Châtelet. Desde então, venho pesquisando a obra dela, em especial, o livro Institutions physiques de 1740.
No início desse ano, minha colega Gisele Secco me disse que o prof. Abel Lassalle Casanave (UFBA) tinha traduzido o Primeiro Capítulo do Institutions physiques. Como eu já tinha traduzido o Prefácio, combinamos um encontro online e, em pouco tempo, já tínhamos um grupo de professora/es, pesquisadora/es e aluna/os dispostos a se encontrar quinzenalmente para traduzir a obra inteira. O grupo se reúne desde março para a apresentação e discussão das traduções e através disso nos dedicamos a compreender a filosofia de Châtelet e a cultivar um ambiente de pesquisa e formação para nossos estudantes. Fazem parte do grupo, além do prof. Abel, a profa. Carlota Maria Ibertis (UFBA), Katarina Peixoto (UERJ), Eduardo Ruttke von Saltiél (UFN), Priscilla Tesch Spinelli (UFRGS), Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA), Rafael Bittencourt Santos (IFSul), Pedro Pricladnitzky (UNIOESTE, CONICET), Edgar Marques (UERJ), Gisele Secco (UFSM), dnda. Cinthia Almeida Lima (UFBA), dnda. Maria Helena Silva Soares (UERJ), Luiz Humberto Castro de Freitas Filho (UFBA) e os estudantes de graduação da UFSM: Maria Eduarda Dalla Costa Kuntzler, Vitória Albert Sauzem, Anelise Marmett Pahim e Lucas Rodrigues de Oliveira (bolsista IC do projeto). Todos participam ativamente nas reuniões do grupo e contribuem em pé de igualdade para a tradução.
Quais os próximos planos do grupo?
Além de se ocupar da tradução da obra de Émilie du Châtelet, pois temos planos de traduzir outros textos dela, o grupo irá dar continuidade ao trabalho iniciado por Katarina, Pedro e Edgar com a tradução da Enciclopédia dos Conceitos Concisos de Mulheres Filósofas integrando estudantes de graduação e pós-graduação nessa tarefa. Nos próximos dias lançaremos um edital para chamar estudantes interessados em contribuir (preferencialmente, dentro das universidades vinculadas ao projeto pois esses estudantes serão orientados pelas professora/es e pesquisadora/es vinculados ao projeto). Nós temos muitos planos e projetos de tradução e pesquisa na obra de filósofas, em especial, o que é o ponto forte de nosso grupo, na obra de filósofas modernas. Esse é o modo que, acreditamos, podemos contribuir para a renovação do cânone e a consequente inserção da obra das filósofas em nossas bibliografias, cursos e pesquisas.
Uma das grandes dificuldades de inserção e renovação de bibliografia nos nossos planos de ensino é a falta de traduções. Dado esse diagnóstico, como somos historiadoras e historiadores de Filosofia, as ações do grupo de pesquisa objetivam colaborar para que a comunidade brasileira tenha acesso em língua portuguesa a fontes primárias e secundárias envolvendo o trabalho de filósofas. A longo prazo queremos também trabalhar com versões em línguas estrangeiras de obras de filósofas brasileiras.