Especial 8M: Imprensa periódica oitocentista e a filosofia política de mulheres ilustradas, entrevista com Bárbara Souto

Nastassja Pugliese

FE/UFRJ - PPGLM/UFRJ

Yasmim Pontes

Mestranda pelo PPGE/UFRJ e aluna de graduação em Filosofia na UFRJ

04/03/2025 • Entrevistas

Em colaboração com GT Mulheres na História da Filosofia e Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciência e Cultura

Nossa pesquisa sobre filósofas brasileiras do século XIX, realizada junto à Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura e que conta com apoio da FAPERJ e da CAPES, nos levou a investigar acervos digitais de bibliotecas brasileiras em busca de textos de cunho filosófico publicado por mulheres. Temos realizado um cuidadoso trabalho de mapeamento de jornais, folhetins e periódicos pré-republicanos no Brasil para reconstruir o contexto de emergência do pensamento político das mulheres ilustradas da época (Pugliese & Pontes 2023, Pugliese no prelo). Há diversas questões metodológicas e teóricas que surgem deste encontro com material inédito e primário, que se mostrou fundamental para a reconstrução da história da filosofia no Brasil. Mas a recuperação das obras de filósofas brasileiras oitocentistas acompanha não apenas uma necessidade de exercício hermenêutico em relação aos textos, ainda crus de interpretação filosófica, como também exige um esforço de cooperação interdisciplinar. Afinal, apesar dos historiadores da filosofia terem demorado para se debruçar sobre esse material, o estudo de fontes primárias presentes nas Hemerotecas nacionais é uma prática comum em disciplinas como a História, a Letras e a Educação (Duarte, 2016).

Nesta entrevista gostaríamos de apresentar o trabalho de Bárbara Figueiredo Souto (2019, 2021, 2022), professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Montes Claros (Unimontes). Em 2022, ela publicou, pela editora Luas, o livro Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e Buenos Aires que foi o resultado de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. A obra de Souto investiga a atuação de mulheres na imprensa feminista oitocentista no Brasil e na Argentina, comparando os periódicos Jornal das Senhoras (1852), La Camelia (1852) e Album de Señoritas (1854). O primeiro foi um importante periódico voltado para o público leitor feminino, publicado no Rio de Janeiro e dirigido, primeiro por Juana Paula Manso e, posteriormente, por Violante Atabalipa. O segundo, La Camelia (1852), é um período que foi publicado em Buenos Aires, na Argentina, e dirigido por Rosa Guerra. Juana Manso também atuou na redação do La Camelia. Já o Album de Señoritas (1854), é uma reinvenção do Jornal das Senhoras, desta vez em língua espanhola, publicado em Buenos Aires e dirigido por Manso, depois que sai do Brasil e volta a morar na Argentina. O trabalho de Souto mostra o percurso da pensadora argentina, naturalizada brasileira, Juana Manso e é um exemplo da riqueza de fontes que ainda temos por descobrir nos arquivos do Brasil e da América Latina.

A entrevista com Bárbara Souto permeou assuntos sobre a imprensa oitocentista: os principais desafios encontrados para mulheres que ousaram publicar no século XIX, a dificuldade de pesquisa em fontes primárias, as intercessões entre o Brasil e a Argentina do século XIX e as estratégias comunicativas utilizadas por essas mulheres para manterem seus periódicos em circulação. Nossa entrevista ocorreu por Zoom e foi posteriormente editada para facilitar a leitura, no entanto, mantivemos os traços de oralidade próprios de uma conversa.

 

Quais foram os principais desafios que as mulheres enfrentaram no período no século XIX em relação à possibilidade de participação política e social?

Elas tinham essa noção de que só conseguiriam uma emancipação, que é o termo que elas utilizavam, se elas tivessem uma educação de qualidade e acesso a um letramento, a livros, a disciplinas como, por exemplo, história, geografia, que não eram disciplinas previstas como parte da educação das mulheres. Elas só renasceriam com consciência do lugar de sujeito subjugado ali naquele contexto. Então, eu entendo que para essas mulheres de letras, — e é importante dizer que eu estou trabalhando com mulheres da elite, que tinham esse privilégio de serem alfabetizadas no contexto de tantas mulheres e homens analfabetos, — elas lutavam por isso, pelo reconhecimento intelectual, porque a produção delas não tinha o mesmo valor que a dos homens, justamente porque tinha ali uma suposta separação dos espaços. E aí era atribuído às mulheres o espaço doméstico, às mulheres brancas da elite, e aos homens, o espaço público. Então é assim que eu compreendo essa luta por reconhecimento.

 

Em sua dissertação, você destaca a imprensa como veículo fundamental para os projetos de emancipação feminina. Quais estratégias comunicativas foram usadas por essas escritoras para alcançar seus objetivos?

Então… a gente tem esse orgulho das nossas feministas, as pioneiras, porque elas eram professoras. Lembrando que o magistério era, digamos, uma carreira aceitável para as mulheres, até porque entendia-se que seria uma extensão da maternidade, do cuidar do outro. Existia uma ideia de que as mulheres seriam “educadoras da humanidade”, como se tivessem uma virtude natural, um dom do cuidado. Então, acho que essas mulheres, em alguns momentos, elas até subvertem esse discurso, elas aproveitam desse espaço que lhes é atribuído e aproveitam disso para lançar uma proposta de emancipação. Já que nós somos educadoras da humanidade, nós precisamos de uma educação de qualidade. E realmente, por exemplo, o jornal Sexo Feminino, que eu estudei, é um jornal mineiro, foi publicado no sul de Minas, em Campanha, inicialmente, e depois vai para o Rio de Janeiro; esse jornal era da Francisca Senhorinha da Mota Diniz, que também era uma professora; ela fazia isso: lançava tarefas no jornal, algumas anedotas, algumas pegadinhas, de adivinhação, e a desculpa dela é realmente que a mulher precisava trabalhar o intelecto, trabalhar o raciocínio lógico. E ela tinha uma peculiaridade, principalmente no momento que ela estava em Campanha, em Minas Gerais, porque ela é professora da Escola Normal, e aí ela aproveitava o espaço do jornal para deixar a tarefa para as suas alunas, e era uma forma de vender jornal. Se a tarefa está no jornal, você precisa ler esse jornal. Então, isso é bem interessante, esse trânsito didático, usar o jornal também como um recurso pedagógico.

 

Qual foi a recepção do público e das autoridades em relação aos artigos e às ideias que elas defendiam?

Em geral, essas mulheres não eram bem vistas, porque não era uma característica, uma atribuição dessas mulheres expressarem o seu pensamento. A mulher devia ser mais calada, ficar mais reclusa. Então, em geral, a gente não vê uma boa recepção desses jornais, tanto é que as tiragens são baixas, tem pouca venda. Mas é claro, alguns órgãos da imprensa apoiavam os jornais, tanto é que a gente encontra algumas permutas, o que significa que esses jornais são enviados para alguns órgãos da imprensa, e lá eles os divulgam, eles os vendem. Então, eu encontrei algum tipo de parceria feita por alguns órgãos da imprensa e esses jornais escritos por mulheres. Porém, também tinham os órgãos da imprensa que debatiam diretamente com eles. Tem um debate bem instigante entre o  jornal Sexo Feminino e o jornal Colombo, também de Campanha, que ele vai criticando as ideias da Francisca, e a Francisca vai rebatendo. Então, é interessante a gente ver essa construção. Eles discutem, por exemplo, a questão da República e da Monarquia. É bem interessante, porque a Francisca, como era professora, homenageou o imperador em uma publicação sua. E o Colombo vai e replica: um jornal que defende a emancipação das mulheres defendendo a monarquia? E a Francisca fala que, enquanto uma funcionária pública, ela não pode ir contra o governo, mas responde: “me falem qual republiqueta que as mulheres também têm liberdade”. Para além da imprensa, eu consegui mais informações em relação à recepção de Juana Manso: ela foi uma pessoa não grata, principalmente na Argentina. Aqui, no Brasil, ela teve mais receptividade, sabe? Mas quando ela foi para a Argentina, ela se envolveu muito em fundar bibliotecas públicas, porque defendia uma educação popular. E quando ela fazia falas públicas como, por exemplo, inaugurações de bibliotecas, as pessoas jogavam coisas nela. Então, ela realmente não foi bem vista, porque tinha um pensamento muito ousado como mulher na época. Além dos ideais feministas, ela era protestante, daí ela criticava abertamente a igreja católica.

 

Quais são os paralelos entre o que aconteceu no Brasil e na Argentina no século XIX.  Quais as diferenças e semelhanças nos processos?

Eu acho que tem muito mais comunicação do que a gente imagina. A minha orientadora do doutorado, a Kátia Bádio, ela até, na tese, faz uma reflexão sobre isso, como que a gente, muitas vezes, vê o Brasil fora da América Latina, e na verdade, quando a gente vai olhar com mais cuidado, nós temos bastante conexões, não são países iguais, mas a gente consegue conectar muita coisa. No caso da imprensa feminista, o elo que eu encontro de comunicação é justamente a Juana Manso. Porque ela consegue fazer um trânsito pela América, que acaba propiciando esse compartilhamento de experiências. Ela sai de Buenos Aires muito nova, tem que passar uma temporada no Uruguai, por conta de perseguição política, e chega no Brasil. E, aqui no Brasil, ela é a primeira mulher a fundar um jornal feminista, ou um jornal feminino com pautas de emancipação. É interessante porque ela consegue trazer temas argentinos para o jornal brasileiro, e quando ela volta para Buenos Aires, ela leva temas brasileiros para o jornal argentino. Primeiro, acho que temos que entender a trajetória da nossa imprensa, por mais que a imprensa, em geral, na América Hispânica, comece antes porque não tinha toda proibição que tinha aqui no Brasil. Mas, se a gente acompanhar, é um movimento de desenvolvimento muito semelhante, sabe? Não teve um grande avanço maior na Argentina, se a gente for comparar ao Brasil. Em termos de abertura, principalmente, de inserção social e política das mulheres. Então, eu observo que a participação das mulheres tem essa característica muito semelhante entre o Brasil e a Argentina: mais ou menos na mesma época que essas mulheres começam a entrar na imprensa, e conseguiram, de alguma maneira, se posicionar. Outro ponto é a questão da educação. Se a gente for pensar, a Argentina vai ter um desenvolvimento maior do que a gente, mais para o final do século, de 1860, a gente tem, infelizmente, parâmetros educacionais muito próximos. Então, a questão de uma dificuldade de letramento, de acesso, é muito semelhante. Acabamos compartilhando a experiência dessas mulheres, de mulheres subjugadas, que quando a gente pensa na construção da nação, o lugar delas ainda é um espaço doméstico: elas seriam as mães da pátria, a mãe republicana lá, e a imperial aqui. Ou seja, lugares atribuídos à mulher fora do espaço público. Quando eu penso a Juana Manso enquanto esse elo, eu acho que ela é muito importante, porque ela instiga uma imprensa feminista no Brasil, e depois ela vai para Buenos Aires e também instiga essa imprensa feminista lá. Aqui, ela critica o governo argentino, que era um governo ditatorial,  ou seja, levanta essa pauta para a gente pensar a política. E quando chega na Argentina, ela lança o romance criticando a escravidão aqui, no Brasil. Criticando o fato de que o governo apoia a escravidão, que a igreja católica aceita a escravização dos negros e das negras, e  isso para além da questão das mulheres. Então, eu acho que essas experiências compartilhadas de sociedades patriarcais, conservadoras, acabam contribuindo para esse trânsito.

 

Como foi o processo de acesso e análise das fontes primárias utilizadas? Houve algo surpreendente ou desafiador na análise dos documentos?

Naquele contexto que eu estava estudando, por volta de 2007, 2008, a gente ainda não tinha um volume tão grande de trabalhos. Na verdade, era uma escassez de trabalhos sobre essa temática nesse recorte. Porém, eu fui em obras mais clássicas: eu via esses jornais mencionados nessas obras, e fui atrás. Só que, naquele momento, a gente não tinha essa maravilha que é a Hemeroteca da Biblioteca Nacional com tudo digitalizado. Eu tive que ir à caça, digamos assim, desses jornais. Na época, a gente mandava e-mails para várias pesquisadoras para saber quem tinha acesso. Até que eu tive a alegria de encontrar a professora Constância Lima Duarte, da UFMG, e ela tinha recebido de presente da Miriam Moreira Leite, há bons anos atrás, o microfilme do jornal A Família que ela gentilmente me emprestou para eu digitalizar. Na época, a gente contratava uma empresa, que passava para um CD, e aí conseguia ter acesso. E o Sexo Feminino, eu consegui contato na Biblioteca Nacional, porque ele estava nas obras raras, e eu consegui comprar o microfilme. E aí, eu estudava em Viçosa, e lá eu consegui ler esse jornal numa máquina de microfilme. Então, foi assim, a partir do meu interesse, eu encontrei a bibliografia. Foi uma coisa de vasculhar, mas hoje, felizmente, a gente tem muito mais acesso, a gente tem um olhar muito mais amplo sobre a produção das duas e de outras, tão importantes quanto elas. Eu tive, também, desafios em relação à Argentina: lendo biografias mais antigas dessas mulheres eu fiquei sabendo que tinha o jornal Album das Señoritas, da Juana. Eu vasculhei a Biblioteca Nacional da Argentina e não achava, já na época do meu doutorado, já tinha parte do acervo digitalizado, mas eu não encontrava. Fui até Buenos Aires para tentar ver se eu encontrava mais material, só que mesmo dentro da biblioteca quase voltei sem o jornal, porque os funcionários não sabiam da existência do jornal. Porém, eu dei a sorte de uma funcionária falar para eu vasculhar na seção de obras raras. Lá, consegui encontrá-lo e fotografar, mas tem esse desafio de que, às vezes, nem os acervos dão a relevância necessária ou não acondicionam bem esse material, não está na fila prioritária de digitalização, então quase que eu vou a Buenos Aires e volto sem o documento.


Bibliografia

DUARTE, Constância Lima. Imprensa Feminina e Feminista no Brasil: Século XIX – Dicionário ilustrado. Belo Horizonte: Autêntica, 2016

PUGLIESE, N.; PONTES, Y. “Staël et la philosophie : La réception de Germaine de Staël dans le Brésil du XIXe siècle”. Cahiers staëliens, n° 73. Disponível em: <https://classiques-garnier.com/cahiers-staeliens-2023-germaine-de-stael-et-le-groupe-de-coppet-n-73-stael-et-la-philosophie-la-reception-de-germaine-de-stael-dans-le-bresil-du-xixe-siecle.html.>  Acesso em: 1 fev. 2025.

PUGLIESE, Nastassja. (no prelo)  Republicanism in the Mirror: the case for equality after colonization.  

SOUTO, Bárbara. Mulheres e imprensa no século XIX: projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Belo Horizonte: Editora Luas, 2022.

SOUTO, Bárbara. “As mulheres e suas tramas impressas: um repensar historiográfico das produções sobrea sociedade carioca e portenha dos anos iniciais da segunda metade do século XIX.” Estudos Ibero-Americanos, 47 (1), e38157. 2021. 

SOUTO, Bárbara. Mulheres e ideias impressas : projetos feministas de emancipação em periódicos do Rio de Janeiro e Buenos Aires (1852-1855). 2019. 320 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2019. Disponível em <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/33432/1/SOUTO_Barbara_Tese_vers%c3%a3oCapes.pdf>. Acesso em 26 de fevereiro de 2025.