"Filosofar a partir da perspectiva de mulheres pensadoras desafia senso comum moral", entrevista com Christine Lopes
Katarina Peixoto
Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA) e no Departamento de Filosofia (USP)
12/07/2019 • Entrevistas
No mês de junho aconteceu no Rio de Janeiro a I Conferência Internacional Mulheres na Filosofia Moderna, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Foi a primeira Conferência desse porte, dedicada a essa agenda de pesquisa no Brasil, a qual envolve um entrelaçamento incontornável entre método filosófico e história da filosofia com o olhar para a presença e para a voz da mulher. Dra. Christine Lopes é uma filósofa vinculada a uma das escolas que introduziu no Brasil, durante a redemocratização, uma história conceitual da filosofia que utiliza ferramentas analíticas para compreender os textos do repertório clássico do cânone, enquanto mantém uma leitura bem de perto e cuidadosa desses textos.
Lopes, há alguns anos, vive, leciona, e pesquisa filosofia na Inglaterra e optou por se tornar uma filósofa independente. Em 2011 criou o Later German Philosophy project. Lopes participou neste ano de uma conferência internacional em filosofia kantiana na Rússia que celebrou ainda os 295 anos de nascimento do filósofo alemão Immanuel Kant. Ela acaba de integrar um projeto acadêmico internacional em filosofia com base em Lisboa, e ainda em dezembro fará palestras em Berlim e Bayreuth, na Alemanha, sobre sua atual pesquisa sobre ética, moralidade, e afetividade. A filósofa atua ainda como psicoterapeuta treinada e registrada no sistema de saúde público nacional inglês (NHS) coordenando o cuidado e tratamento de pessoas com doenças mentais severas e crônicas.
Você tem uma trajetória como estudiosa da filosofia alemã, especialmente da filosofia kantiana, poderia nos dizer o que a levou a se interessar pelo pensamento de Oliva Sabuco, quem ela foi, e qual a relação, se há alguma, entre o tratamento kantiano dos afetos e o que ela oferece?
Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer o convite para participar desta conferência extrarodinária. Ela é extraordinária do ponto de vista teórico, já que inaugura com força total no Brasil o pensamento crítico acerca do cânone acadêmico androcêntrico. Do ponto de vista prático, esta conferência é tão extraordinária quanto o que ocorre politicamente no país. Enquanto a sociedade mostra sinais de paixão patológica pelos seus piores instintos, esta conferência nos convida a considerar a história de algumas consequências desse tipo de paixão.
Oliva Sabuco foi uma mulher espanhola de Alcaraz. Ela nasceu em 1562 e morreu em 1620. Oliva soube de perto o que é viver em tempos de paixões sociais e políticas patológicas. Seu pai registrou em vida um documento legal onde atribuía a si mesmo a autoria de uma importante obra já bem reconhecida e publicada sob o nome de Oliva. É sobre este livro que vou falar na conferência. Ele também a proibía de se benefíciar financeiramente da publicação sob pena de ser mal-dita. No centro dessa disputa se encontrava o dote de casamento de Oliva.
Do ponto de vista intelectual, Oliva viveu as tensões da Espanha renascentista e inquisitorial. Se por um lado valores e crenças filosóficas e científicas começaram a ser abertamente re-avaliados segundo critérios naturais mais estritamente científicos, ao mesmo tempo era preciso ter muito cuidado para não atrair atenção indesejada da Igreja Católica. Não surpreende que Oliva seja dona de um pensamento cautelosamente audaz.
Ela não questiona a tradicional descrição do ser humano como criatura de Deus. Ao mesmo tempo, ela defende que a função racional da mente humana é inseparável de uma função afetiva, que ambas são reguladas pelo cérebro, que o cérebro possui fisiologia própria, e que a atividade cerebral controla todas as funções do corpo humano. Oliva atribui essas caracteríticas à mente e ao corpo do ser humano em geral, e não apenas à mente e ao corpo dos homens. Deste modo ela atribui também a homens e mulheres uma capacidade de compreender e cuidar da saúde, e de promover o bem-estar social. A responsabilidade por esta capacidade não é apenas ou principalmente dos médicos doutos, cuja autoridade social ela critica.
A saúde das pessoas, bem como a viabilidade ética e política das sociedades, depende da qualidade da vida afetiva. Mais ainda, esta qualidade depende, por um lado, da influência das palavras sobre nós, e, por outro lado, da saúde do nosso organismo. Ela atribui às mães, em particular, uma influência direta sobre a vida afetiva humana através da educação de suas crianças.
Oliva Sabuco e Immanuel Kant tem visões irreconciliáveis sobre a função dos afetos na vida ética. Falando de modo suscinto, para Kant a dimensão afetiva da vida humana é importante mas ancilar na medida em que concerne à implementação de normas morais. Para Oliva, ela não é ancilar mas antes fundamental e constitutiva da vida ética.
Como você compreende a tarefa de fazer história da filosofia diante das descobertas e da literatura recente sobre as mulheres filósofas modernas? Acha que essa é uma questão meta-filosófica cujo valor é indireto, digamos, pedagógico, apenas, ou enxerga aí algum horizonte conceitual promissor?
Para mim, conceito não é uma entidade linguistica ou metafisíca, muito menos psicológica ou lógica, mas uma palavra que a gente usa para indicar uma perspectiva, prática, ou crença geral. Considero a tarefa filosófica de reconhecer e estudar mulheres filósofas de qualquer época como uma tarefa conceitual neste sentido prático, e não num sentido teórico. Para mim, a tarefa de filosofar a partir da perspectiva de mulheres pensadoras é uma tarefa filosófica na medida em que é uma tarefa ética, isto é, na medida em que desafia o senso comum moral que está na base do cânone filosófico.
No seu livro Ontologia Histórica, o filósofo inglês Ian Hacking faz uma observação a respeito de algo que, para ele, é irredutível. Hacking é um historiador da filosofia vinculado à tradição analítica que deu um giro em direção a Foucault. Hacking busca uma maneira de ler a história do pensamento junto com Kuhn e os marcos da história da ciência. No primeiro segmento do capítulo 2 de Ontologia Histórica, entitulado A Família Verde, Hacking escreve:
Há um tempo atrás eu visitei Dresden, a cidade fenix, onde, além da sua coleção de arte européia, se encontra uma admirável coleção de porcelana chinesa [na galeria Zwinger]. Devemos ambas ao homem a quem todo mundo na Saxonia chama de Augusto, o Forte, embora ele seja tecnicamente Augustus II (16701733), às vezes o rei da Polônia, e Frederico Augustus I ... Eu sei pouco de porcelana. Digo sem pretensões de discernimento que em Desdren os meus olhos foram particularmente atraídos pelo estilo chamado A Família Verde ...
O que isso tem a ver com filosofia? ... Eu dava um curso apresentando aos alunos da faculdade os filósofos contemporâneos da família verde e de Augusto, o Forte. Meu herói era Leibniz, e como de costume minha plateia me lançava olhares de aflição. Mas depois da última aula, alguns estudantes se reuniram e começaram com o convencional Nossa, que grande curso. As observações seguintes foram mais instrutivas: Também, não podia ser diferente...com todos aqueles grandes livros...quer dizer, Descartes.... Eles adoraram Descartes e suas Meditações.
Acontece que dou aulas terríveis sobre Descartes, vou murmurando e dizendo que não consigo entendê-lo muito bem. Não tem problema. Descartes fala diretamente a esses jovens, que sabem tão pouco a respeito de Descartes e sua época quanto eu sei a respeito da família verde e sua época. Mas, da mesma forma que a família verde se mostrou para mim, diretamente, Descartes se mostra para eles. Minha lista de leituras tinha a mesma função que a galeria Zwinger: é a porcelana ou a própria leitura que mostra, não a galeria ou as salas de aula. O valor de Descartes para esses alunos é completamente anacrônico, fora do tempo. Metade partia do pressuposto de que Descartes e Sartre eram contemporâneos, ambos sendo franceses. Descartes, ainda mais do que Sartre, consegue falar diretamente a eles. O historicismo ( ) se esquece disso.
Você acha que falar diretamente, nesse sentido que Hacking aponta, é um critério de valor intrínseco da atividade filosófica? Acredita que essa força do texto que Hacking atribui às Meditações tem algo a ver com a disseminação de discussões filosóficas através de cartas nas quais as mulheres Modernas participaram?
Uma coisa é certa: Hacking continua a falar diretamente aqui a leitores acadêmicos ingleses de maioria masculina, cujos interesses constitutem o cânone, e que esperadamente integraram a ele a questão sobre historicismo e analiticidade. Discussões filosóficas por mulheres, seja à época de Descartes ou em nossa própria época, estão ainda muito longe de perturbar o cânone. Este fato é ele mesmo uma resposta à sua segunda pergunta. Quanto à sua primeira pergunta, ao meu ver a força de um texto tem a ver menos com o tempo, e mesmo com o seu conteúdo ou formato, do que com a mente que o toma como objeto de questionamento.
Você acha que as discussões sobre história da filosofia e filosofia tout court algum dia perderão o enjeu? Acha que deveriam perdê-lo?
Acho que essas discussões vão ganhar nova força com a intensificação das reviravoltas conceituais dentro do cânone filosófico (conceituais no sentido prático-ético que mencionei antes). Me refiro às reviravoltas trazidas pelo interesse em tradições de pensamento de origem não-européia, principalmente, no momento, de origem africana e asiática, e/ou contra-européia, da qual são exemplo pensamentos produzidos por mulheres, e cujo valor intelectual tem sido desdenhado, negado, ou relegado a segundoplano desde os primeiros filósofos europeus. Minha esperança é que essas reviravoltas levem a novas considerações sobre a natureza eminentemente ética do pensamento filosófico.
*Katarina Peixoto é pesquisadora de pós-doutorado (CNPq) em Filosofia Moderna na Uerj e organizadora da I Conferência Internacional de Mulheres na Filosofia Moderna.