"Filosofia Pop" e a construção de outros cenários filosóficos no Brasil

Marcos Carvalho Lopes

Filósofo e professor na Universidade Federal de Jataí. Desenvolve a página e o podcast Filosofia Pop.

Luís Thiago Freire Dantas

Professor da UERJ e integrante do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana

Adilbênia Freire Machado

Professora (UFRRJ)

19/11/2021 • Entrevistas

Há 139 episódios o professor de Filosofia da Unilab, Marcos Carvalho Lopes, leva a filosofia para o podcast em conversas livres, sem roteiros, sem tempos determinados, propondo temas e questões silenciadas ou não reconhecidas. Nesta entrevista, a segunda da série “Teias Ananseanas de Filosofias Africanas no Brasil”, ele compartilha sua experiência com a iniciativa, os desafios de construir filosofias africanas (sem africanas e africanos) e mostra como as entrevistas expressam a diversidade de posições e debates na filosofia africana, assim como na filosofia afro-brasileira, e que isso é parte de sua riqueza e potencialidade. Ele também aponta o que a maioria silenciosa da academia brasileira não reconhece a filosofia africana como filosofia e indica a urgência de haver concursos e mudanças de currículos como forma efetiva de “representatividade” na academia brasileira.  

Acompanhe abaixo a entrevista feita por Adilbênia Machado e Luís Thiago Freire Dantas. Esta série é uma iniciativa do Eixo Filosofia Africana e Afro-Diaspórica da Associação de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e do GT Filosofia da Libertação, Latino-Americana e Africana da Anpof, dos quais Adilbênia e Thiago são coordenadores e integrantes, respectivamente. 

Como o Podcast Filosofia Pop constitui-se como instrumento de divulgação e construção de outros cenários filosóficos do/no Brasil?

Neste caso, como diriam os antigos teóricos da comunicação, o meio já modifica a mensagem: levar a filosofia para o podcast, a partir de uma conversa livre, foi uma quebra com o lugar comum da academia e uma abertura para desenvolver temas sem os limites de tempo das mídias tradicionais. A autonomia para montar as pautas fez com que, desde o princípio (em 2015), propuséssemos uma agenda que se esquiva tanto da academia, quanto a das mídias tradicionais. Isso significa que as pessoas que convidamos para conversar não eram, em sua maioria, àquelas que ocupavam espaços centrais no palco acadêmico, mas sim, as que desafi(n)avam o coro dos contentes, por propor temas e questões silenciadas ou não reconhecidas.

Quero fugir da descrição de que o trabalho com o podcast significa somente um caminho de divulgação da filosofia. Comparado com o modelo comum de comunicação filosófica, preso a leitura e sem diálogo, as conversas com pauta, mas sem roteiro fechado, funcionam como ensaios de diálogo filosófico. Se a filosofia é um jogo de pedir e dar razões, o podcast pode ser uma possibilidade de resgatar essa dimensão socrática do teatro da razão.

Quais desafios, dificuldades e perspectivas da série de entrevistas Tcholonadur?

Em 2020 criei dois projetos complementares: (1) uma série de entrevistas chamada Djemberém (cabana de conversação) no podcast filosofia pop com pessoas que desenvolvem a filosofia africana nos países lusófonos[1];  e (2) uma série de cerca de 40 entrevistas com questionário fechado (de 8 questões), com pessoas que desenvolvem a filosofia africana fora do contexto da lusofonia, no projeto que denominei Tcholonadur (uma espécie de mediador entre disputas, um tradutor intercultural).[2]

Sobre os desafios e dificuldades de estabelecer um diálogo mais efetivo com a filosofia africana dos países lusófonos podemos listar: (1) da ausência de uma tradição de diálogo filosófico em língua portuguesa; (2) a diferença de pressupostos, já que a filosofia africana no Brasil tem sido impulsionada em grande medida pelo diálogo com formas de religiosidade afro-brasileiras, no contexto da África lusófona a formação das pessoas que se dedica a filosofia africana parte de seminários vinculados à Igreja Católica (como é o caso da escola de Roma); (3) no contexto dos países dos PALOP as interrogações em torno dos projetos de construção da nação (moçambicanidade, angolanidade etc.) tem um lugar privilegiado, enquanto no Brasil é preciso destruir o discurso da brasilidade baseado no mito da “democracia racial” e construir outra narrativa que recrie um “nós”.

Nas entrevistas da série Tcholonadur (1) as questões fechadas limitanm as possibilidades de conversação, já que muitos autores não trabalham com "filosofia", mas com uma perspectiva mais ampla de pensamento africano (que rompe com as fronteiras disciplinares). (2) As fronteiras linguísticas são severas e as possibilidades de conversação são limitadas. Há autores que defendem o uso de línguas indígenas, mas é um pressuposto comum o desconhecimento de interlocutores na filosofia africana dos espaços lusófonos (é uma dificuldade explicar o lugar do Brasil e da diáspora africana neste diálogo). (3) A adjetivação de "africana" gera tensões entre quem pode fazer ou faz parte da filosofia africana (por exemplo, a argelina Seloua Bolbina fala pelo norte da África e sua exclusão; o espanhol Antonio de Diego Gonzales, trabalha com as tradições muçulmanas do sufismo negros etc.). (4) Há grande dificuldade para abordar questões de gênero, diferenças sexuais e o um número pequeno de mulheres que trabalham com filosofia africana (principalmente, em África). (5) O limitado interesse dos (afro)brasileiros (e dos diaspóricos de modo geral) de dialogar com textos e autores do continente africano. O que se justificaria por conta dos dilemas de autenticidade/inautenticidade. De forma provocativa posso dizer que estamos confortáveis em construir uma filosofia africana sem africanas/os!

Como as entrevistas com filósofas e filósofos africanas/os e afro-brasileiras/os pode contribuir para o ensino de filosofia?

As entrevistas caminham no sentido inverso a qualquer “guetificação” e procuram mostrar que na filosofia africana há diversidade de posições, debates e que isso é parte de sua riqueza e potencialidade. A mesma argumentação vale para a filosofia afro-brasileira: as entrevistas desmistificam e dessacralizam o trabalho filosófico. Em resumo: ajudam a ensinar a filosofia como um verbo. 

Como a filosofia africana, em seu âmbito de pesquisa, contribui para repensarmos a filosofia produzida no Brasil?

As leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que regulamentam o ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” na educação básica, não “pegaram” nas academias brasileiras de filosofia. Não modificaram disciplinas, não criaram postos de trabalho especializados e não promoveram pesquisas por parte dos programas de pós-graduação em Filosofia.

Levar a sério a filosofia africana significa também ter que pensar a filosofia de modo contextualizado, porque isso quebra o discurso que pressupõe o universalismo da filosofia europeia, põe em xeque as práticas coloniais de fidalguia e subserviência e, com isso, traz a necessidade de dar espaço para vozes que foram injustamente desconsideradas. Se você sabe que o cânone da filosofia foi moldado e institucionalizado a partir de modelos racistas e sexistas, reconhece a existência de outras perspectivas filosóficas e não faz pessoalmente nada para modificar o quadro geral, vale a conclusão de Jay L. Garfield: ainda que passivamente, você é racista e/ou sexista. O problema deste argumento é que a maioria silenciosa da academia brasileira não reconhece a filosofia africana como filosofia. Nesta situação, o impasse se mantém e a maioria dos trabalhos de pesquisa continuam sendo feitos fora dos departamentos de filosofia; as pessoas que trabalham com o tema também estão na maioria fora destes departamentos (na educação, antropologia etc.) e as que têm formação linear em filosofia e buscam dialogar com a filosofia africana/afro-brasileira são vistas com reservas e reticências justificadas.

Não é suficiente colocar o mês de novembro como uma espécie de carnaval epistemológico em que se dá voz para estes pesquisadores, se estas vozes não são ouvidas: temos então a “invisibilidade segregada”.  Stuart Hall fala de "visibilidade segregada", mas isso vale para "representatividade" que cumpre as metas de mercado etc. No caso da academia, representatividade deveria significar "concursos" e mudanças de currículo. A "invisibilidade segregada" é mais eficaz e mais brasileira, porque resolve (ou melhor dissolve) a questão de modo cordial: fazem uma mesa, uma micareta, que inverte as coisas para que permaneçam como são.... o mais visível se torna invisível, porque efetivamente não é parte do jogo. Essa entrevista serve para isso?

 


[1] O episódios com Severino Ngoenha (Moçambique), Filomeno Lopes (Guiné Bissau), José Paulino Castino (Moçambique) e Luiz Kandjimbo (Angola) e Arminda Filipa (Angola) podem ser acessados aqui: https://filosofiapop.com.br/tag/djemberem/  Indico também a série de entrevistas sobre a COVID-19 em África do podcast Vozes da UNILAB, com episódios com Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Elisio Macamo e Maria Paula Meneses: http://vozesdaunilab.unilab.edu.br/index.php/tag/covid-19/.

[2] Veja em:  https://filosofiapop.com.br/category/texto/tcholonadur/