Filosofias africanas em perspectiva: raízes e diferenciações, entrevista com Severino Ngoenha

Marcos Carvalho Lopes

Filósofo e professor na Universidade Federal de Jataí. Desenvolve a página e o podcast Filosofia Pop.

09/09/2022 • Entrevistas

Entrevista publicada na edição 155 da Revista Humanitas

 


A ideia de que a prática filosófica no Brasil precisa ser descolonizada é um lugar-comum. E é também habitual que as pessoas que se abrigam nessa afirmação como uma “frase feita” sem efeito logo enunciem uma série de filosofias exóticas que mereceriam reconhecimento. Mas na hora de trazer essas autoras e autores para o debate, os nomes que são repetidos são aqueles que têm lugar nas academias do Norte, escrevem em inglês ou francês e ocupam as cotas multiculturais da inclusão segregada (Paul Gilroy).

Essa descrição é mote para propor, a partir do campo da filosofia africana, algumas questões que talvez pareçam óbvias, mas que servem de diapasão retórico para afiar nosso discurso: por que tópicos tão estridentemente presentes no debate acadêmico não geram mudanças de currículo, vagas e concursos? Por que, quando falamos em filosofia africana no Brasil, dialogamos tão pouco com as autoras e autores daquele continente? Por que, apesar da história em comum e das múltiplas influências, não valorizamos e dialogamos com a filosofia produzida em português na África lusófona? Por que não é mera coincidência essa indiferença?

Considerado o mais importante filósofo contemporâneo de Moçambique, com uma produção que tem trazido uma contribuição central para o estudo da filosofia africana, Severino Ngoenha lembra em sua obra Lomuku [1] como a dolarcracia e a submissão aos poderes imperiais das potências do Sul Global são uma espécie de “canto de sereia” que subverte os discursos utópicos e a luta por construção de uma sociedade mais justa, em favor do individualismo destrutivo a autoindulgente. Para sair dessa situação seria necessário um desmame (lomuko), como aquele das crianças que precisam aprender a deixar o peito materno e se alimentar dos frutos locais produzidos pela comunidade. Precisamos que a filosofia no Brasil enfrente esse processo de  lomuko e as dificuldades de ir além de uma concepção retórica e cartesiana (por querer fazer tábua rasa do passado e gestar uma “consciência redimida”) de descolonização.

Como que saudando os participantes do XIX Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof), que acontecerá entre os dias 10 e 14 de outubro, na cidade de Goiânia, Ngoenha concedeu a presente entrevista à Humanitas e trouxe à conversa dois temas muito importantes para que recontextualizemos nossas interrogações, (1) situando as diferenças que inspiram a filosofia na África e no Novo Mundo e (2) o solo comum que a luta pela independência gerou entre os países dos africanos de língua portuguesa. Talvez as respostas causem desnorteamento por falarem de um contexto de diálogo que muitas pessoas não dominam. Caso isso ocorra, tanto melhor para reorientar nossos pensamentos. Confira a seguir, o resumo dessa conversa:

 

Como o senhor avalia a relação do Brasil com a filosofia africana? E que aspectos o senhor percebe convergência e divergência com os desafios que a filosofia em Moçambique tem enfrentado?

Severino Ngoenha - Olha, eu passei por momentos muito difíceis na avaliação do que era a filosofia africana na concepção brasileira. Ela é diferente da concepção que podem ter os americanos e, aliás, não existe nos Estados Unidos uma filosofia africana. Eles vão falar da black philosophy, ou black theology, mas não vão falar de uma [filosofia africana] porque a África, como dizia um grande escritor, James Baldwin: “o quanto a África é longe para nós”. Para ele, havia séculos que separavam os afro-americanos do continente africano. Depois da grande epopéia de Langston Hughes, que chegou a rasgar toda sua obra e entrou em um navio para para a Libéria e, quando chegou lá, não foi reconhecido como africano, isto ajudou a sedimentar a existência de uma diferença profunda entre a África e a América. Quer dizer que nós temos uma mãe comum, uma bisavó comum, que temos raízes comuns, mas os percursos, os caminhos que nós fizemos, acabaram historicamente nos separando.

O Brasil parece ter uma experiência diferente. Ele não quer se separar da África, quer se aproximar. Quero dizer que é o caminho exatamente oposto ao caminho dos afro-americanos, para quem nós somos um lugar de passagem de vez em quando para os mais interessados na África do Turismo, mas que olham para nós de longe, como os antepassados que Darwin chamaria de uma seleção natural ultrapassada. Mas o Brasil, me parece, se alimenta de um outro interesse. O que é particular e que talvez possa criar incompreensões entre, muitas vezes, a visão dos africanos do continente sobre a filosofia africana e a visão dos brasileiros, é que nós todos padecemos dos mesmos caminhos em termos de opressão, mas esses caminhos foram se diversificando. Foram os processos de escravatura que levaram todos a serem retirados do continente africano, mas se sedimentaram de maneiras diferentes. 

Poderia explicar melhor?

Nós, a certa altura, ficamos colonizados e desta colonização militamos para a independência. Ficamos Outros no ocidente e vocês [brasileiros] entraram a fazer (sic) parte de diferentes nações do novo mundo e a vossa verdadeira reivindicação era entrar a fazer (sic) parte desse Brasil, primeiro com direitos iguais, direitos não só políticos, jurídicos, mas também direitos sociais iguais, mas ao mesmo tempo, justamente, com o direito de trazer para dentro da mesa (sic) aquilo que vós cá distinguem como raça e como cultura. 

O que significa trazer para dentro da mesa aquilo que vocês distinguem como raça e como cultura? Se a gente olha para a música americana e pergunta: “o jazz tem origem africana?”, sim, mas qual África? Ninguém é capaz de dizer. A gente pode encontrar um instrumento ou outro, uma dança ou outra, como a capoeira ligando a Angola ao Brasil, por exemplo, mas ninguém pode dizer de qual país o jazz é feito e isso é bom. Quer dizer que há uma espécie de síntese da africanidade, uma recriação da africanidade, uma reapropriação de diferentes maneiras de ser, de que os escravos eram portadores, que criou, digamos assim, uma maneira específica de ser dos afro-americanos e dos afro-brasileiros e essa cultura foi em parte a cultura de autoconstituição. Isso permitiu às pessoas de poderem existir, de se apropriarem de uma maneira indistinta daquilo que provinha de lugares diferentes, para poderem, primeiro, resistir; segundo, criar uma identidade própria; e, terceiro lugar, se afirmar. É este percurso que a filosofia hoje chamada africana no Brasil tenta resgatar e isso é extremamente justo, honesto e pertinente e tem muito a ensinar sobre o percurso que nós fazemos aqui [em Moçambique]. 

O senhor se refere ao percurso da filosofia em Moçambique?

Sim. Nós, quando começamos a criar a filosofia africana, éramos membros do Congo, do Ruanda. Não é por acaso que o [Plácide] Tempels trabalha no Congo. A filosofia ruandesa é ruandesa do ser [de Alexis Kagamé] e depois tudo se faz com o filósofo [Paulin] Hountondji, que é do Benin. No Brasil e nos Estados Unidos esse Benins, esses Hountondjis, não existem como espaços, porque eles existem antes como geopolítica de diferenciação de países, a partir da colonização e da separação do continente em partes. [2]

Na América há uma fusão de pessoas provenientes de diferentes [lugares] e a criação de uma africanidade nova. Eu penso que é aqui que nós temos coisas a aprender uns dos outros e temos [com] que nos alimentar. As historicidades fizeram com que a filosofia africana fosse alimentada de uma diferenciação em África, primeiro entre a língua francesa e a língua inglesa e, mais tarde, a portuguesa. Depois pelas especificidades nacionais que se foram construindo, enquanto que a filosofia africana no Brasil é uma negação exata dessas diferenças e a proclamação de alguma coisa de muito mais alto (sic). Por isso, se a África tem um conceito de pan-africanismo, a vossa filosofia [brasileira] pode alimentar mais a ideia do pan-africanismo, a recriação de uma África como queria  [W. E. B. ] Du Bois, como queria [Marcos] Garvey, como queria Kwame Nkrumah e que nós, exatamente pela divisão do continente africano, fomos criando, vamos chamar aqui, identidades que muitas vezes acabam entrando em conflito, como foi o caso de Ruanda entre tutsis e hutus e uma sedimentação, uma continuação da esfera Colonial e do domínio que nós padecemos. 

Dizendo isto, existe a necessidade de um diálogo maior. Há uma produção sempre mais rica que se faz no continente africano, mas é uma produção também muito rica, ou mais rica ainda do que se produz no Brasil. Mas a questão não é ligada à quantidade, é à qualidade e à prospecção e orientação do pensamento. Existe um ecumenismo africano maior na produção filosófica do Brasil e o Brasil alimenta-se buscando, de uma maneira indiscriminada, de tudo aquilo que vem do continente africano na sua modernidade e na sua tradição, nas suas origens anglosaxônicas, ou francófonas, aquilo que muitas vezes o próprio continente africano não consegue absorver. Por isso mesmo, eu costumo dizer muitas vezes que, se é verdade que, como diria Alan Locke, que “o coração do mundo negro começou a bater no Harlém”, hoje o coração do mundo negro bate no Brasil e talvez, de modo particular, até na Bahia. 

O filósofo bissau-guineense Filomeno Lopes tem insistido na necessidade de pensar a filosofia a partir dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) . Este é um projeto que tem em comum?

Severino Ngoenha - Olha, nós nascemos como filósofos muito preocupados com a filosofia africana, juntos. Nos conhecemos quando éramos colegas de escola na [Universidade] Gregoriana [de Roma], na década 80, e aprendemos a fazer um percurso juntos. Mas antes de nós fazermos um percurso juntos, aqueles que nos anteciparam (sic) tinham uma história comum e que não é para nós a história de uma colonização portuguesa comum. É a história que jovens, 20 a 30 anos antes de nós, que tinham se encontrado também em espaços da Universidade em Lisboa, na chamada Casa do Império. Chamavam-se Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade e decidiram em comum que tinham que militar para um objetivo comum, aquele que tinha sido escolhido, e eles pensaram essa independência como uma independência do conjunto dos países colonizados por Portugal e criaram o CONCP [Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas], uma organização que, antes mesmo de criar os movimentos de libertação, militava intelectualmente para a libertação destes espaços. Eles pensaram juntos e fizeram uma filosofia em comum, um pensamento em comum e transformaram este “pensar em comum” em uma “ação em comum”. Os estudantes da Guiné-Bissau, tornaram-se de Cabo Verde, tornaram-se de Angola, tornaram-se de Moçambique. Não havia uma decisão que era tomada para Moçambique que não fosse concomitantemente tomada para Angola ou para Guiné-Bissau ou para São Tomé e Príncipe. E, muito mais tarde, quando [Eduardo] Mondlane morreu, quem fez o discurso do funeral nos Estados Unidos foi Amílcar Cabral. Quer dizer, quando você pensa, Cabral, um dos criadores do
MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], e o grande pensador da Guiné- -Bissau, Eduardo Mondlane, atravessaram todo esse espaço filosófico.

Quer dizer que, à época do encontro de vocês, na década de 1980, já havia um histórico de uma ideia comum…

... E tínhamos também consciência que essa história comum, de pensar em comum, de lutar em comum, vinha criando uma irmandade forte e que nunca Angola teria sido independente com facilidade se não tivesse estado associada à Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Cabral chegava a dizer que: “se nós deixarmos descansar Portugal, porque a semana em que Angola luta, Moçambique está de férias, eles vão poder concentrar os militares no lugar”. Então era preciso que houvesse uma cooperação de esforços e que fizéssemos ações ao mesmo tempo, porque era esta energia de “pensar em comum” a criação de um espaço de cooperação, no modo de pensar em comum, numa luta, em uma irmandade construída, que permitiu aos nossos países chegarem à independência. 

Quando nós nos encontramos em Roma nos anos 80, nós tínhamos uma irmandade forte que nos protegia. Eu conhecia a Literatura, conhecia o pensamento, conhecia a política e conhecia as canções da Guiné e de Cabo Verde e vive-versa. Havia uma irmandade já construída. E nós somos os únicos espaços da África que passaram por uma luta de libertação para chegar à independência. E fomos capazes de mostrar ao mundo inteiro que, não obstante a separação geográfica, quando os ideais, quando a força, quando os valores de liberdade e de justiça são comungados e vão na mesma direção, é possível ultrapassar as barreiras geográficas e criar alguma coisa de mais forte.

O que mudou de lá para cá?

Hoje eu estou falando contigo. Tu estás no Brasil e eu estou aqui, dialogando no plano da tecnologia. Nós podíamos usar tecnologia para ouvir outras coisas, mas estamos a utilizar para juntos pensarmos e pensarmos em português, pensarmos em um espaço de língua portuguesa como espaço epistêmico possível para a criação de um pensar juntos, para o futuro dos nossos países, povos e das nossas comunidades. Eles fizeram muito antes de nós e quando nós nos encontramos, não inventamos nada, mas prolongávamos uma luta que infelizmente hoje, para as novas gerações, parece esquecida e que é exatamente este esquecimento de uma unidade que se fez antes, durante a luta e depois da luta, para valores que nós comungamos, que faz com que a África se encontre na situação de desespero que nos encontramos hoje. Então, sim, a luta de Filomeno [Lopes] é minha luta, o percurso intelectual dele, o transformar a filosofia como um espaço de pensamento militante pela causa dos nossos povos que vão para além da geografia, que tocam a África inteira, mas que, primeiramente, ligam de uma maneira idiossincrática aquilo que são os nossos países, em uma coisa que partilhamos em comum e sobretudo temos em comum o objetivo. 

Em A Arma da Teoria, Cabral dizia que o objetivo da nossa luta é o progresso, é a paz e a felicidade dos nossos povos. Que não vamos descansar, vamos ter espíritos inquietos enquanto não conseguirmos trazer, pelo menos como objetivo primeiro dos nossos países, a paz, o progresso e a felicidade dos nossos povos; sem evidentemente excluir que, esta paz, progresso e felicidades dos nossos povos, é extensível aos outros povos africanos, aos outros povos afro-diaspóricos e aos povos do mundo inteiro. 


[1] NGOENHA, Severino Lomuku. Maputo: Publifix Edições, 2019.

[2]  O padre Plácide Tempels, que foi missionário no Congo, escreveu o livro A filosofia bantu (1945) que geralmente é apontado como marco inicial da filosofia africana acadêmica; o também padre ruandês Alexis Kagamé desenvolveu através da análise comparada das línguas bantu uma ontologia bantu. Esses trabalhos, embora não restritos a um espaço nacional, foram incorporados a discursos nacionalistas. Mais tarde, as críticas em relação a essas perspectivas etnofilosóficas feitas pelo filósofo Paulin Hountondji e seu apelo a uma perspectiva mais profissional e científica, precisam também ser localizadas dentro de um debate na filosofia africana de língua francesa.


Severino Ngoenha é filósofo, professor e também diretor da Escola Doutoral de Filosofia na Universidade Pedagógica do Maputo, em Moçambique. É considerado hoje um dos pensadores mais influentes dos países africanos de língua oficial portuguesa, tendo publicado livros de referência no campo da filosofia política, filosofia africana, ecologia e arte, como Tempos da Filosofia (2004), Lomuku (2019), Manifesto: Por uma terceira via (2019) e Filosofia Africana: das independências às liberdades (2019). Seus principais trabalhos incluem uma análise crítica dos discursos da filosofia africana, além de críticas da sociedade moçambicana contemporânea. Foi reitor da Universidade Técnica de Moçambique e tem diversas produções em jornais, rádios e televisão, dialogando também com o campo das artes, através do atelier Dialogarte.


 

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