Mais dignidade, menos desigualdade: Monalisa Carrilho de Macedo entrevista Nastassja Pugliese sobre Nísia Floresta
03/07/2023 • Entrevistas
No início do século 19, a filósofa da educação Nísia Floresta criticava o colonialismo a partir do feminismo usando o princípio da equidade natural como fundamento da análise da sociedade brasileira.
Quando uma editora que nasceu com o aval de Henrique VIII e possui o peso de um catálogo que conta quase 500 anos decide publicar uma obra de sua autoria, é difícil não sentir um frio na barriga. É assim que Nastassja Pugliese, professora de Filosofia da Educação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora da Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura descreve a dor e a delícia de ter seu nome gravado na capa de um livro, de título Nísia Floresta, da coleção Elements - Mulheres na História da Filosofia da prestigiosa Cambridge University Press. O livro já está disponível para download gratuito neste link - somente até o dia 14 de julho.
"Estou animada e um pouco tensa com o lançamento de meu primeiro livro. Na verdade, estou como aquela expressão em língua inglesa: 'com borboletas no estômago'. Espero que elas voem livres em breve", fala a filósofa. O interesse da editora pelo trabalho produzido do lado de cá do mapa global se justifica. Pugliese se debruçou sobre os principais trabalhos da brasileira Nísia Floresta, conhecida como filósofa da educação, entrevendo em seus escritos uma crítica ao colonialismo fundada em princípios feministas.
Nesta entrevista concedida à profa. Dra. Monalisa Carrilho de Macedo (UFRN), uma colaboração da Anpof para a Humanitas, Pugliese explica como nasceu o projeto de seu livro, e como identificou fundamentos cartesianos nos textos de Floresta, especialmente suas reflexões sobre razão e gênero, nível de civilização e sua relação com a equidade expressa por meio de direitos sociais. Veja o PDF da revista neste link.
Que tal começarmos pelo percurso que te levou até Nísia Floresta?
Nastassja Pugliese: O que me levou até Nísia Floresta envolve amizades filosóficas, pesquisa interdisciplinar e conversas entre mulheres filósofas sobre mulheres filósofas. Foi a professora da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), Gisele Secco, quem falou sobre Nísia Floresta para mim pela primeira vez. Terminei meu doutorado no final de 2016 e, ao longo dos meus estudos nos Estados Unidos [pleno na Universidade da Geórgia com bolsas de estudos da própria universidade], a Profa. Secco e eu colaboramos em diversas pesquisas sobre ensino de lógica. Em 2019 eu tinha acabado de ter meu filho quando houve, em junho, a Conferência de Mulheres na Filosofia na UERJ, organizado pela Katarina Peixoto e Pedro Pricladnitzky e estávamos todas nós: a Ana Rieger, a Mitieli Seixas, Yara Frateschi, a Gisele Secco, enfim, quase todo o GT de Mulheres na História da Filosofia [risos] da ANPOF e professoras do mundo inteiro: Lisa Shapiro, Sabrina Ebbersmeyer, Natalia Strok, Teresa Rodriguez, Silvia Manso, Ruth Hagengruber, Sarah Hutton. Foi um grande evento. Conversávamos sobre as dificuldades de resgatar as mulheres filósofas, sobre os entrecruzamentos próprios a cada lugar, a cada país. Eu não gosto de falar de filosofia nacional, então eu me via refletindo com elas a partir de uma certa interpretação da geopolítica da história da filosofia. E ninguém sabia muito bem dizer quais eram as mulheres filósofas brasileiras do começo da modernidade. Aí a Gisele falou “tem a Nísia Floresta, mas não tem muita coisa dela não, parece que ela foi uma tradutora da Mary Wollstonecraft, mas não exatamente”.
Essa referência parte da filosofia da educação?
Sim, a Gisele já tinha lido o livro do Margutti, porque ela leu tudo de filosofia da educação e ensino de filosofia produzido no Brasil. Ela é uma pequena enciclopédia nesse tema, bem aluna do Prof. Ronai Rocha, sabe? Mas o tom era mais ou menos assim: “ah, mas não tem muito o que dizer”. Aí eu lembro que a Ruth imediatamente falou assim: “É o quê? Vocês têm uma Wollstonecraft brasileira? Só isso?!” A Gisele e eu nos olhamos e decidimos ali estudar tudo o que podíamos sobre Nísia Floresta. Lemos o Opúsculo Humanitário e destrinchamos a história da pseudotradução que é Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Deste momento surgiu um texto que a gente escreveu juntas, mas que está demorando muito para ser publicado que se chama Teaching Nísia Floresta: mapping the philosophical grounds. O texto vai sair como capítulo do livro Ensinando conceitos de mulheres filósofas, organizado pela Ruth Hagengruber (Springer). Fizemos todo um mapeamento de alguns argumentos do Opúsculo e nesse texto a gente demonstra que ela está dentro da tradição que a Elsa Dorlin chama de feminismo lógico. A Dorlin coloca nessa tradição diversas figuras, por exemplo, o Poulain de la Barre e a Marie de Gournay.
E como foi o processo de produção do livro?
Eu peguei Covid no auge da pandemia e a história do livro nasceu assim: eu achava que ia morrer e não queria fazer nada a não ser ler e escrever sobre Floresta antes da minha hora chegar. Dramático, mas foi meio assim mesmo. Eu estava com um filho bebê de um ano de idade em casa. Eu não podia ficar com a minha família para eles não pegarem a doença. Eu saí de casa e fui me hospedar em algum lugar. Para não morrer de tristeza e de pânico, eu fiz um esforço para direcionar meus pensamentos e mergulhei nessa missão de escrever um trabalho para o seminário Work in Progress do Extending New Narratives (projeto canadense de resgate das obras de filósofas no mundo). Meu trabalho tinha sido selecionado para o encontro e eu ia apresentá-lo em um mês. Eu propus este trabalho porque tive um estalo: o que a Dorlin estava chamando de feminismo lógico, era no caso de Poulain de la Barre, o cartesianismo prático. Essa compreensão me trouxe uma hipótese de trabalho que eu precisei enfrentar sozinha, como historiadora da filosofia não como professora de lógica, então escrevi a proposta para o Work in Progress. Doente, eu saí de casa e deixei meu marido com o bebê. Eu ficava medindo meu nível de oxigenação, lendo, resumindo, rascunhando e escrevendo, noite e dia, durante uma semana. E me veio uma coisa assim como uma espécie de comprometimento do tipo “a última coisa que eu vou fazer vai ser esse paper. Eu vou entender a influência do cartesianismo em Nísia Floresta nem que seja a última coisa que eu vá fazer na vida”. Eu queria transformar a história da filosofia no Brasil mesmo, queria abrir um espaço para a filosofia brasileira na narrativa da história da filosofia no mundo. Para mim, isso era uma missão intelectual. Conseguir fazer essa conexão entre Floresta e Descartes, e demonstrá-la, era uma necessidade. Eu precisava ocupar a cabeça e fugir da tristeza, não é? Mas também queria mostrar às pessoas uma visão que eu tive, uma hipótese e uma interpretação: que a Nisia Floresta é uma filósofa de inspiração cartesiana e que o começo do feminismo no Brasil recebe essa influência do cartesianismo social ou prático, inaugurado pelo La Barre. Fiquei cinco dias mergulhada nisso, lia Nísia e o panfleto de Sofia, disponível na internet, na biblioteca digital da UPenn.
Como surgiu a oportunidade de publicar na série Elements da prestigiosa editora Cambridge?
Após a apresentação no evento do projeto canadense surgiu um convite para que eu escrevesse um projeto de livro. Escrevi, foi aceito e cá estamos com Nísia Floresta na série Elements da Cambridge. Houve outras dores de cabeça pelas noites que eu passava em claro escrevendo o livro, porque não escrevi a obra nesses cinco dias que fiquei doente, é claro, foi só um momento muito marcante. Mas já deve estar completando três anos que o trabalho começou a ser gestado e o livro nem foi lançado ainda. Mães acadêmicas precisam de muito apoio e muita rede para feitos como esse - um livro publicado. Tenho o privilégio de ter ao meu lado alguém que acredita no meu trabalho: meu marido é um grande parceiro, divide a vida de pesquisa, de academia, de um ponto de vista mais elevado, mais leve, de modo que a gente cuida um do outro. Nem todo mundo tem essa sorte, e é por isso que a academia precisa de políticas de gênero bem estruturadas.
Como se deu o trabalho de pesquisa para essa empreitada que é escrever um livro?
Tive de viajar para terminar de escrever. Fui ao Canadá como professora visitante com apoio do PPGE-UFRJ, CAPES, FAPERJ, Extending New Narratives, e aí foi outra loucura. Mas conto só uma parte: ao mesmo tempo em que eu estava escrevendo os capítulos finais, estava também coordenando a escrita da entrada de Nísia Floresta para o Project VOX, um projeto da Biblioteca da Duke [University] com o Departamento de Filosofia. Vejam lá, lançou em abril de 2023. Ficou um material pedagógico digital de primeira grandeza. Eu fiquei um semestre dando aulas sobre Floresta para o grupo que estava fazendo a pesquisa para o VOX, remotamente. Depois passei duas semanas na Simon Fraser University dando palestra e coordenando com a Lisa Shapiro os workshops de escrita com os alunos de graduação e pós-graduação. Neste processo, eu me tornei uma entusiasta das humanidades digitais, da pesquisa com fontes primárias em bibliotecas digitais. E, bom, isso trouxe clareza sobre a grande missão da Cátedra UNESCO para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura, que é a preservação da memória e do legado das mulheres intelectuais brasileiras. Eu aprendi demais nessa experiência de ensino e pesquisa. É muito ainda para elaborar. Mas, resumindo, foi assim: quando eu entendi que a primeira publicação de Nísia Floresta era um texto de inspiração cartesiana eu falei “isso é uma chave de leitura para a obra da Nísia Floresta”, e eu me senti em uma missão intelectual que eu tinha que cumprir com coragem, assumindo os riscos.
Como essa chave de leitura foi utilizada na organização dos capítulos?
Eu lembro que quando eu fui chamada para escrever o livro, senti uma responsabilidade tão grande, fiquei refletindo se era eu mesma que tinha que escrevê-lo. E aí, sabe o que eu fiz para reconhecer esse meu lugar? Porque resgate da obra de filósofas brasileiras é sobre isso, sobre essa coisa da dificuldade de assumir um lugar, aí eu pensei: só vou conseguir escrever esse livro se conseguir falar com todo mundo que já escreveu sobre Nísia Floresta. E fui atrás, liguei para Constância Lima Duarte, para a Peggy Sharpe, para Maria Lúcia Pallares-Burke para ouvir as histórias delas. Alguém tem ainda que fazer uma conferência juntando todas elas de novo. Mas então, da chave de leitura do cartesianismo prático ou social para a construção do livro, foi outro longo processo. Porque eu precisei ler praticamente toda obra da Nísia Floresta para verificar se a chave de leitura funcionava. E eu fui costurando o livro a partir da minha hipótese. Vocês têm que ler meu livro agora para saber mais, não é? Mas o que é que isso quer dizer, esse cartesianismo social? A tese principal e que a Floresta adota é a de que a inteligência não tem sexo, e aí infere também que a inteligência não tem raça, a inteligência não tem cor, que a inteligência não tem pertencimento nacional. Porque se a mente, no pensamento cartesiano, é independente do corpo, se ela tem uma natureza outra e, nesse sentido, ela não depende das particularidades do corpo, isso implica que as diferenças entre os corpos não interferem na capacidade racional essencial aos seres humanos.
Isso é muito potente, porque gera uma certa naturalização da igualdade...
Isso mesmo, o cogito cartesiano é essa afirmação de uma igualdade natural entre todos os seres humanos. Porque se o ser humano é definido pela sua capacidade de pensar, pela sua razão, se você é ser humano, isso não tem nada a ver com o que seu corpo é, não tem nada a ver com as particularidades da cultura, você é um ser racional. Isso gera uma igualdade natural da capacidade racional e toda a desigualdade social se torna produto da cultura e, neste sentido, não essencial e resultado de dinâmicas de poder e dominação. Esse argumento está em Direitos, o panfleto Sofia traduzido por Nísia Floresta. E ela se apropria dessa visão e usa esse princípio da igualdade natural para analisar a sociedade brasileira em todos os seus livros. Claro que usando diferentes métodos e muitas vezes tendo outras questões filosóficas em mente como a questão das virtudes femininas. Mas, por exemplo, em Lágrima de um Caeté e mesmo no Opúsculo, ela considera que a cultura dos indígenas brasileiros é fruto de sua racionalidade. O índio não é um selvagem que precisa de uma cultura exterior para tornar-se civilizado, aquela formação social dos indígenas tem uma racionalidade própria.
Talvez aí você esteja extrapolando um pouco. Não há dúvida que Nísia considera a igualdade da inteligência entre homens e mulheres mas não tira – e dá para entender – as consequências sociais disso...
Ah, eu superextrapolo, você vai ver. O livro é todo argumentado, eu demonstro com excertos e eu levo muito a sério o fato de que eu tenho um princípio de interpretação da obra. Mas aí o que a gente pode fazer além disso? Posso dizer, por exemplo, que em certos momentos ela se afasta mais do cartesianismo social quando ela defende, em algumas obras, que há virtudes propriamente femininas ou que deve haver um uso feminino da racionalidade, o que acontece no texto A Mulher presente no livro Cintilações. Se ela está operando com esse princípio de que a razão não tem sexo, não tem gênero, isso quer dizer que homens e mulheres têm as mesmas capacidades racionais, isso está no Opúsculo. Daí se segue que as diferenças na nossa percepção das capacidades racionais dos homens e mulheres se dá pela cultura, pelo fato das mulheres não terem tido a educação que elas precisariam ter para que a sua inteligência fosse expressa, para que elas pudessem vivenciar plenamente sua inteligência. Então o problema é um problema da educação, que se resolve ao fazermos um certo esforço para a educação intelectual de meninas e mulheres. Mas ela se posiciona sobre como essa educação deve acontecer e fala em coisas como educação do coração, ela olha a mulher como se as mulheres tivessem uma disposição natural para o cuidado e aí, nesse sentido, ela também argumenta que há virtudes que são propriamente femininas. Isso não está em muitos lugares mas em A Mulher está.
O seu argumento não é que ela é uma cartesiana e só, mas que ela é influenciada por ele e, ao mesmo tempo, oferece uma crítica do cartesianismo prático?
Sim, porque, cá entre nós, Descartes também não chegou a falar de igualdade natural neste sentido político, de reconhecer a racionalidade da formação social indígena como ela faz. Descartes não faz análise da colonização. Mas Floresta faz. Ela chama os europeus de déspotas, e diz que os iluministas são meio hipócritas porque defendem os ideais da Revolução Francesa, igualdade, fraternidade, mas são colonizadores. E ela está nesse lugar de colonizada, assim, no sentido de que ela não é europeia, ela é uma brasileira, embora ela tenha inspiração nesses ideais, porque também ela está vivendo num Brasil pós independência e pré-república. Então, ela está ali numa reflexão política e ela está se alimentando da filosofia política da sua época, que é uma filosofia que está vindo da Europa, mas que também está vindo da escola do Recife. Ela se apropria do pensamento político que vem da Europa, mas também do pensamento político que está em voga no Brasil, na formação do Brasil independente, do século 19. E isso a coloca num lugar muito especial porque ela consegue falar com essas duas tradições. Ela fala para o Brasil mas ao mesmo tempo ela fala para a Europa, criticando-a a partir do ponto de vista do colonizado. Então, nesse sentido, eu não estou argumentando que ela é uma cartesiana e ponto.
Parece ser algo muito mais complexo.
Sim. Ela é uma cartesiana, mas, ao mesmo tempo, é uma brasileira consciente da sua brasilidade. Ela é Madame Brasileira. Ela não se pensa como uma mente sem corpo. Essa é uma coisa interessante do cartesianismo de Floresta. Ela não pensa as pessoas como mentes sem corpos. Ela verifica os efeitos da cultura e diz que a educação das mulheres é como um norte das civilizações. O direito à educação é o que de alguma maneira indica a civilização. Segundo a Floresta, sociedades que dão às mulheres direito à educação são sociedades realmente civilizadas. O lugar que as mulheres ocupam na sociedade é o norte da construção política. Então Floresta vai do argumento pela igualdade natural para uma demanda crítica de uma situação política social. Eu poderia dizer que, neste sentido, ela é não é exatamente cartesiana, eu poderia dizer que isso é cristão. E ela se coloca como pensadora cristã. Porque Deus deu uma alma de modo igual para todo mundo. Não tem diferença entre almas, todo mundo é filho de Deus...
Daí ser importante salientar o papel do cartesianismo...
Mas primeiro porque ela diz nominalmente “Descartes abriu uma nova era para as mulheres”... Uma nova era na filosofia! Ainda que ela não tenha consciência da existência de um cartesianismo social, ela tem consciência dos efeitos práticos do cartesianismo! Ainda que ela não saiba do Poulain de la Barre e da Sofia, ela tem consciência de que essa tese da separação mente e corpo tem uma tração política, é uma tese que dá um clique que outras teses não deram naquele momento. Eu acho isso importante como um momento do feminismo. Então, eu tenho uma hipótese, que é radical, de que a Nísia Floresta é marcada profundamente pelo cartesianismo social e que o panfleto de Sofia é uma chave de interpretação de toda a obra dela. Eu gasto muito tempo no começo do livro tentando mostrar porque que Direitos, tradução de Nísia Floresta, foi confundido com Reivindicações de Wollstonecraft. Conto também toda a novela e as disputas interpretativas: a hipótese da Constância Lima Duarte de que a obra teria sido inspirada na Wollstonecraft mas escrita originalmente por Floresta, a leitura da Maria-Lúcia Pallares-Burke de que o texto não pode ser considerado de modo algum tradução livre de Reivindicações, pois é tradução do primeiro panfleto Sofia, e depois de como Floresta poderia ser entendida, no sentido amplo, como uma “Wollstonecraft brasileira”. Porque no final das contas o texto de Direitos é uma tradução para o português a partir de um volume que é também uma tradução para o francês do primeiro panfleto de Sofia, escrito originalmente em inglês. Esse volume em francês é a tradução de César Gardeton e foram duas pesquisadoras estrangeiras que fizeram essa descoberta. Mas eu saio disso, eu não fico nisso não. Retomo a ideia da pseudotradução por essa evidência histórica e porque ajuda a gente a entender o lugar do cartesianismo prático na obra da Floresta. A realidade é que Direitos é uma tradução do panfleto de Sofia via uma tradução francesa, isso é inegável, não tem como ser tradução cultural, não é uma apropriação, é um trabalho de tradutora. E nesse sentido é também uma obra de Floresta! Uma obra enquanto tradução, não no que diz respeito ao conteúdo teórico. Por outro lado, a Dedicatória que Nísia escreve às brasileiras e aos acadêmicos é totalmente original. Então…
Pois é, isso é fundamental. Da mesma forma que a Olympe de Gouges fez a Déclaration des droits des femmes, Nísia escreveu essa Dedicatória que, para mim, tem peso de manifesto. Uma dedicatória me parece ter mais força ainda que uma declaração na medida em que se dirige a um outro, no caso, às brasileiras e aos acadêmicos, dando uma direção e expressando um desejo: educar as mulheres.
Sim, a Dedicatória pode e deve ser considerada o texto fundante do feminismo no Brasil e na América Latina. E isso quando Nísia tinha somente vinte e dois anos, já que a primeira edição, de Recife, é de 1832. Hoje em dia temos apenas a edição de 1833, recentemente digitalizada pela Fundação Biblioteca Nacional.
Além de você deixar isso claro, sua obra é um livro fundador, e não só pela coleção onde ela está inserida, mas pelo seu trabalho de pesquisa. Quando você fala sobre a sua coragem de trabalhar o tema, ela também se configura em um risco enorme…
O livro que eu escrevi é curto, é um escrito de introdução. Mas não deixa de ser interessante porque abre a possibilidade para que alguém diga que estou errada, sabe? Estudem Nísia Floresta, estudem Poulain de la Barre, estudem Sofia, estudem Mary Wollstonecraft e digam que eu estou errada, isso é tão interessante. É um risco enorme oferecer uma tese tão radical, mas para as pessoas dizerem que eu errei, elas precisam estudar essa filósofa brasileira tão negligenciada na nossa historiografia da filosofia, e se fizerem isso, já é uma grandíssima conquista. Porque foi muito difícil escrever esse livro em vários níveis. E eu penso assim: você escreve um livro para ajudar o outro a compreender mais do que o que você compreendeu. Você chega até o certo ponto, você oferece ali uma coisa a seus leitores para que eles possam ir mais longe. E aí o resto é um processo natural, é assim que funciona a história da filosofia, é a crítica. Agora sabe o que me impressiona? A Jaqueline Broad, editora da série Elements, estuda os panfletos Sofia. Ela descobriu a tradução de Floresta e se interessou pela recepção de Sofia no Brasil. Quando ela soube que tinha alguém escrevendo sobre a filosofia de Nísia Floresta tendo como chave de leitura o panfleto Sofia e o cartesianismo, ela foi atrás. Não é que Nísia Floresta é um nome exótico, e ela não está nessa coleção da Cambridge porque se trata de um nome diferente para alimentar uma história da filosofia absolutamente não-canônica, alternativa. É a mesma história da filosofia, só que expandida, incluindo mulheres, mulheres de outras nacionalidades, de outros contextos. Mas o doido é isso: a Nísia Floresta é conhecida nos círculos de pesquisadores internacionais por ter feito uma tradução do panfleto Sofia para o português no Brasil do século 19. Isso é muito importante pois o panfleto Sofia é uma obra central para o cartesianismo prático. Ou seja, a Nísia Floresta é conhecida no cenário internacional mais do que os brasileiros a conhecem.
Isso é lamentável, não é?
Eles conhecem Nísia Floresta porque fazem estudos de recepção, porque estudam Mary Wollstonecraft, a influência do pensamento europeu no mundo. E eu acho que a tradição intelectual brasileira é muito marcada por aquele livro de 1959 do Antônio Cândido, a Formação da literatura brasileira, sabe? No prefácio ele diz que a literatura brasileira é um galho secundário da literatura portuguesa que por sua vez é um arbusto de segunda ordem no jardim das Musas. Ora, se alguma coisa a gente tem certeza que faz bem é música e literatura, certo? Clarice Lispector, João Guimarães Rosa. Isso mostra a defasagem entre como a gente se vê e como a gente se coloca no mundo mesmo. Em 1878, Sílvio Romero publica a primeira história da filosofia do Brasil onde ele pede praticamente perdão por estar fazendo uma história da filosofia no Brasil. Na dedicatória ele diz mais ou menos assim, “me desculpem por estar falando sobre filosofia no Brasil” porque ele compartilha com o seu leitor o pressuposto que tem algo de ridículo ao se falar “filosofia no Brasil”, porque selvagens não civilizados, colonizados, não podem ter uma filosofia. Filosofia é uma coisa propriamente europeia.
É por isso que é tão importante para você inserir Nísia na história canônica da Filosofia?
É exatamente aí que eu quero chegar: a gente faz filosofia, ponto. Filosofia não é uma prática europeia e mostrar Nísia nesse contexto geral da história das ideias e colocá-la como uma crítica ao Iluminismo europeu é revolucionário do ponto de vista do modo como a gente conta a história da filosofia, do modo como a história da filosofia é contada para a gente. É a Nísia Floresta como uma filósofa fazendo filosofia a partir do Brasil, no Brasil, com o Brasil e mais todas as preposições que imaginarmos para qualificar e descrever essa relação entre a pensadora e o seu contexto. É inserir na história canônica para libertar a nossa narrativa, abrir espaço no pensamento, fazer respirar. E aí eu trago o Antônio Cândido em uma outra chave: é sobre o direito à Filosofia! Essa prática também é nossa.
Então, seu interesse por Nísia encontrou eco em uma anterior inquietação sobre a filosofia brasileira?
Sim, eu tive filosofia brasileira na graduação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com Luiz Alberto Cerqueira. A gente ficava na aula dele lendo sobre Farias Brito, Tobias Barreto e a escola de Recife... E me marcou muito a maneira como a filosofia brasileira, o que existia de filosofia brasileira no currículo, se reduzia a esse recorte muito específico: uma filosofia do direito feita por esses homens da Escola de Direito de Recife que faziam comentários à Kant, Aristóteles, Tomás de Aquino. Aquilo me marcou porque eu tinha certeza que alguma coisa estava faltando nessa história, que tinha um pano de fundo por trás, tinha mais coisa acontecendo. No ensino médio eu tive professores de história muito bons que falavam dos panfletos subterrâneos, das publicações ilegais que aconteciam no Brasil pós independência, essa coisa subversiva da circulação de ideias no Brasil pré-republicano, do primeiro e segundo reinados. Então eu sabia que tinha toda uma literatura subterrânea. Eu estudei muito Spinoza e a recepção dele também é marcada por essa circulação silenciosa de ideias por conta da censura. É interessante porque, num certo sentido, Direitos está nesse paradigma, na medida em que é uma pseudotradução que chegou até Floresta e não passou por censores ou controles de qualidade na França antes de chegar ao Brasil. Quem ia saber que aquele texto na verdade estava sendo atribuído a uma autora errada? Também podemos perguntar de modo mais capcioso: quem ia ter interesse em demonstrar o erro, afinal quem lê mulheres filósofas?
As aulas de filosofia, então, plantaram uma semente...
Então, é isso e mais, né? As aulas de filosofia brasileira na graduação fizeram que eu soubesse que havia algo mais; eu sabia que a história da imprensa, do pensamento, no Brasil, não era uma coisa assim que acontecia só nas universidades. Pelas nossas experiências culturais, a gente sabe que o pensamento não acontece só na universidade, que é um modo de pensar específico, né? A experiência do pensamento é uma coisa muito mais ampla. E aí, então, depois de um tempo, eu fui estudar a literatura brasileira e fiquei com essa concepção arvoral da literatura brasileira do Antônio Cândido na cabeça e pensando, ao contrário, na formação do Brasil como sendo uma formação que a gente precisa se apropriar e responder, na verdade, o que que é o Brasil. E aí o Silvio Romero também sedimenta esse tipo de abordagem. A visão da literatura brasileira, da filosofia brasileira como uma coisa menor, como uma coisa incompleta, como uma incapacidade, como se tivesse uma certa imperfeição intelectual aqui que nos impedisse de fazer a verdadeira filosofia. Ou seja, há traumas que precisam ser curados, e um aspecto do nosso trauma fundador pode ser revisitado pela historiografia, pela história da filosofia quando feita de forma mais complexa, rica e potente. É isso, acho que eu acredito muito no poder transformador da filosofia.
Quem é Nastassja Pugliese
Professora de Filosofia da Educação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde coordena a Cátedra UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para a História das Mulheres na Filosofia, Ciências e Cultura. Ela atua no Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, bem como no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição.