Mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia: entrevista com Maria Lúcia de Arruda Aranha e Edgar Lyra
Joana Tolentino
Doutora em filosofia pelo PPGF-UFRJ
13/10/2021 • Entrevistas
Ensinar a filosofar no Brasil tem uma trajetória e vem constituindo sua história, da qual a ANPOF é parte importante nas últimas décadas, com a expansão da pesquisa, programas de pós-graduação, departamentos de filosofia e a respectiva formação de professoras/es e, em especial, com a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar (2006). Quem são as mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia? Sua história e a relação com a filosofia se entrelaçam com a história (recente) da presença da filosofia nas escolas e universidades do Brasil – algumas quase centenárias, mas muitas jovens instituições. Nas últimas décadas, a presença da filosofia nas políticas públicas oscilou entre a expansão universitária, vinculada à obrigatoriedade na educação básica e a demanda associada por formação docente em filosofia (inclusive formação continuada) e ataques ao fazer filosófico (científico e intelectual, em geral), com foco especial contra as ciências humanas, área a qual a filosofia é mais imediatamente associada e encontra-se articulada nas políticas públicas para a educação.
Os últimos tempos marcam transformações nos currículos universitários e na formação docente – antes predominava o modelo bacharelesco clássico, em que a/o licencianda/o se formava no bacharelado, cursando todas as disciplinas de Filosofia e, em separado, cursava as disciplinas pedagógicas e a prática de ensino que, associada ao estágio (mas muito dissociadas do filosofar), garantiam a titulação de licenciatura em filosofia. Mas e a formação dessa pessoa que está em processo de tornar-se o/a professor/a de filosofia, como se dava? Nesse cenário, muitas vezes o livro didático foi o principal parceiro da/o docente de filosofia quando, após a graduação, adentrou à escola (tantas vezes a/o única/o prof/a de filosofia naquele espaço). Usado como suporte ao trabalho docente no ensino médio, auxiliava nas propostas metodológicas, escolha dos temas, problematização, oferta de recortes acessíveis de textos originais de filósofos (infelizmente, pouco de filósofas).
Livros como o Filosofando: introdução à filosofia, de Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Pires, merece destaque por ser largamente usado para subsidiar o trabalho de ensinar a filosofar no ensino médio, tendo sido o livro de filosofia mais adotado pelas escolas públicas no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Isso justifica o convite à sua autora, Maria Lúcia de Arruda Aranha, por sua contribuição para o ensino-aprendizagem de filosofia na educação básica, para ganhar a cena com a sua obra longeva, que esse ano completa 35 anos – além de outros livros que publicou sobre filosofia e educação: queremos saber um pouco mais sobre a autora por trás da obra e suas vivências de décadas com a filosofia e seu ensino nas escolas. Convidamos também para esse encontro, o professor Edgar Lyra, que, desde a universidade e a pós-graduação se entrelaçou com as questões de filosofar e ensinar a filosofar, com a formação docente em filosofia, supervisionando estágios, orientando a iniciação à docência, pesquisando sobre estratégias didáticas e metodologias, aproximando escola e universidade. Participou, assim, das recentes mudanças na formação docente em filosofia, que aproximaram teoria e prática num entendimento do filosofar como problema filosófico - parafraseando outro mestre também presente em nossa formação, Alejandro Cerletti.
Foi uma tarde deliciosa, em que conversamos (virtual e afetuosamente) sobre filosofar e ensinar a filosofar. Edgar falou sobre o seu trabalho para o componente curricular de Filosofia nas primeiras versões da BNCC e as últimas e drásticas mudanças no ensino médio, além de ter publicado, esse ano, um livro que é fruto de suas pesquisas sobre filosofia e ensino: O Esquecimento de uma Arte – retórica, educação e filosofia no século XXI. Maria Lúcia nos brindou com relatos de décadas de chão da escola, da dificuldade em acompanhar o mestrado na PUC/SP, junto com o trabalho de professora e os dois filhos pequenos, que passavam entre ela, o livro e o vão da cadeira em que estava sentada (muitas mulheres da nossa comunidade filosófica hão de se identificar com essa cena – ao fim e ao cabo, não titulou-se), ao mesmo tempo em que falou de metodologia do ensino de filosofia e da profunda alteração nos livros didáticos na última versão do PNLD, elaborados por áreas, já em acordo com a reforma do EM. Delicioso registro que eu agradeço por ter sido veículo.
Peço que vocês se apresentem, falem de suas trajetórias: a formação, o trabalho, sintam-se à vontade para pontuar elementos marcantes na infância ou juventude. Como foi o encontro com a filosofia? E a profissionalização? Como se dá ainda hoje a relação com a filosofia e seu ensino?
Maria Lúcia: Tive uma infância e adolescência bastante atípicas, em razão do trabalho de meu pai, funcionário público que passou por diversas cidades do interior de São Paulo. Por isso para a formação nos cursos primário e ginasial (que correspondem ao Ensino Fundamental), a aprendizagem foi fragmentada e às vezes incoerente, pelas lacunas deixadas pelo caminho. No Ensino Secundário público, ainda eram vigentes as Leis Orgânicas do Ensino promulgadas em 1942 por Gustavo Capanema, ministro do presidente Getúlio Vargas. No então chamado curso colegial optei pela alternativa do curso clássico (com foco em humanidades), descartando o curso científico (focado nas matemáticas e nas ciências da natureza). Essa divisão, criticada por pedagogos em razão de compartimentar a aprendizagem em um período em que o currículo deveria ser mais abrangente, arrisca ser a preferência do momento atual. Resta lembrar que sempre cumpri as tarefas escolares e tive tempo para outras atividades, além de consultar livros da biblioteca de meu pai, de preferência os de história geral, psicologia, sociologia e filosofia, ampliando os recursos de argumentação em dissertações escolares, ao mesmo tempo que reforçou a inclinação para ciências humanas.
Ao finalizar a última etapa de estudos, em 1959, chegara o momento de decidir sobre os rumos para o ensino superior. Não me lembro de ter uma opção diferente do que a carreira de professora e a escolha pela filosofia talvez por identificação com as leituras. E assim aportei na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras São Bento, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Por que não a Universidade de São Paulo (USP)? Na verdade, eu não tinha noção da importância da USP, por isso devo a meu pai a opção mais adequada à sua visão cristã e conservadora. Dei início a meu curso de filosofia em 1960. Desde então vivo em São Paulo, cidade que apreendi a acolher no coração. O curso de Filosofia na PUC de São Paulo não foi satisfatório em razão do paradigma doutrinal, com predomínio da orientação tomista e pouco interesse por filosofia contemporânea. O mais antigo professor foi Alexandre Correia, nascido em São Paulo e que, entre diversas obras, traduziu do latim a Suma Teológica, de Tomás de Aquino. Vieram outros, formados na Bélgica, como Leonardo Van Acker e o padre Michel Schooyans.
Na década de 1970 o governo militar implantou o programa de pós graduação de mestrado e doutorado. Matriculei-me em Filosofia da Educação na PUC/SP, onde cumpri quase todos os créditos, até interromper o curso em 1976, em razão de diversas dificuldades profissionais no magistério escolar e de obrigações da vida doméstica, com filhos ainda pequenos. Este último curso valeu muito mais do que o anterior, em razão do posicionamento dos professores dispostos a refletir sobre o pensamento filosófico contemporâneo e a compreensão dos fenômenos da educação, como Dermeval Saviani e Antonio Joaquim Severino entre outros igualmente mais jovens. Naquele período entrei em contato com autores como Marx, Heidegger, diversos filósofos da Fenomenologia, Paul Ricoeur.
Vale lembrar que o ofício de professor representa um fator significativo de continuidade da aprendizagem de filosofia. Expandi minha biblioteca pessoal, comprando livros sugeridos na bibliografia daqueles já comprados por mim. Diante dessas “descobertas” solitárias e “garimpadas”, reforço a importância da formação continuada de professores.
Edgar Lyra: Nasci em Ipanema, mas fui criado, desde criança muito pequena, no Rio Comprido, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Fiz minha primeira graduação em Engenharia Química na UERJ, de 1977 a 1981, portanto ainda durante a ditadura militar. No ambiente em que cresci, escolhia ser professor quem não fosse suficientemente inteligente para fazer coisa mais sofisticada ou rentável. Trabalhei até 1987 na Refinaria de Petróleo de Maguinhos, de onde pedi demissão por falta de motivação, apesar de bastante bem remunerado. O dinheiro poupado me permitiu ficar sem trabalho fixo durante bom tempo. Dediquei-me à pintura e aos estudos de história e filosofia da arte. Cheguei a comercializar minhas pinturas e desenhos numa galeria de arte do Rio de Janeiro e a atuar como carnavalesco em escolas de samba de Teresópolis (Rainha do Alto e Gaviões da Colina), cidade para onde me mudei após a demissão da refinaria e onde chegaria a ser secretário municipal de cultural, entre 1991 e 1992. Estive também nesse período muito envolvido com a prática e a história da capoeira. Apenas em 1996, por sugestão de um amigo artista plástico, apliquei e fui aprovado no mestrado em filosofia da PUC-Rio, onde posteriormente fiz doutorado e me fixei como professor do programa de pós-graduação.
Sobre a presença da Filosofia no ensino superior, em especial a formação de professoras/es: Como vocês entendem a relação entre teoria e prática na formação docente em filosofia no Brasil?
Edgar Lyra: Tive minha primeira chance como professor do ensino superior em 1998, ao final do meu mestrado e, como grande parte de nós, sem qualquer formação docente. Rapidamente me dei conta de que havia uma lacuna a ser preenchida, um saber a ser explorado, saber, todavia, muito pouco valorizado na academia, seja porque tido como intuitivo, seja porque depreciado como medida de produtividade. Importante mesmo era a pesquisa, como ainda hoje, por razões que seguem sendo objeto de minha aberta reflexão. Essa hipertrofia da valorização da pesquisa em detrimento da docência tem decerto outras consequências, entre elas um grande distanciamento entre o que se faz nos programas de pós-graduação e o ensino de filosofia na educação básica, enfim, a falta de investimento nos diálogos com a pólis em geral. Esse distanciamento é, inclusive − em parte, sejamos justos −, responsável pela insólita possibilidade de vermos acolhida no Brasil, por jovens e adultos, com pretensões de profundidade filosófica, narrativas conspiracionistas e demonizações do pensamento crítico das mais alucinadas. Por óbvio, são coisas muito diferentes coordenar reuniões de grupos de pesquisa, onde as competências hermenêuticas costumam bastar, e dar aulas para estudantes de ensino médio, fundamental ou infantil. Mesmo as atividades de extensão e a conversa interdisciplinar carecem de competências retórico-pedagógicas que garantam sua qualidade. Essa foi, aliás, a percepção que levou à elaboração e publicação do meu escrito mais recente, de título O Esquecimento de uma Arte – retórica, educação e filosofia no século XXI.
Sobre a presença da Filosofia na educação básica, falem um pouco da relação com a filosofia no chão da escola, quais elementos seriam indispensáveis para ensinar a filosofar e depois façam uma breve análise da história recente, com a obrigatoriedade da Filosofia nas três séries do Ensino Médio, a partir de 2008, e o atual contexto de reforma do Ensino Médio, com a lei 13.415/2017, que se entrelaça à Base Nacional Curricular Comum (BNCC), ambas estruturadas por áreas de conhecimento e não mais por componentes curriculares.
Maria Lúcia: Iniciei a profissão de professora em 1965, lecionando em escolas públicas nos cursos Clássico e Científico, período em que era vigente a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1961, que tornara a Filosofia disciplina complementar. Sempre em São Paulo, lecionei na Escola Estadual de Segundo Grau Brasílio Machado e, posteriormente, fui removida para a Escola Estadual de Segundo Grau Carlos Augusto de Freitas Villalva Jr.
Precisei abandonar o magistério nas escolas públicas em razão da assinatura da Lei 5.692/71 para o 1º e 2º graus, que implantou o ensino profissionalizante, com declarada participação dos Estados Unidos. Além da excessiva burocratização do ensino e da imposição de uma metodologia externa aos interesses da educação e à liberdade de professoras/es, deu-se o desmantelamento do currículo com a diminuição da carga horária de disciplinas fundamentais, além da exclusão definitiva da Filosofia. O projeto de profissionalização resultou em meta não cumprida, até porque o governo não se interessou por torná-la viável. Migrei para escolas particulares (Santa Cruz, Palmares, Galileu Galilei e Nossa Senhora das Graças) que não cumpriam à risca as diretrizes oficiais, continuando, ao contrário, a oferecer formação integral e crítica, o que garantiu a permanência da Filosofia em mais de uma dezena de escolas, apenas na cidade de São Paulo. Vale destacar a importância das reuniões semanais de professoras/es, facilitadoras da integração entre disciplinas, quando necessário.
Quanto aos procedimentos metodológicos, desde o início optei pela centralidade de temas filosóficos para, a partir deles, seguir buscando as referências da história da filosofia, com o cuidado de apresentar a história de maneira filosófica, ou seja, interpretando os conceitos criados, enfim, dialogando com o pensamento da/o filósofa/o no seu tempo e com as ressonâncias no momento presente. Esse trabalho era enriquecido com o recurso a passagens de obras filosóficas para aprender o processo de leitura analítica (composta de análise textual, análise temática, análise interpretativa e problematização). Concomitante à leitura analítica, a dissertação ocupa um lugar importante na tradição filosófica por aperfeiçoar a competência discursivo-filosófica e, portanto, a autonomia de pensamento. Um caminho para o plano da dissertação costuma atender a três procedimentos - a introdução, o desenvolvimento e a conclusão -, com destaque para o segundo momento, calcado no rigor da argumentação.
Preciso, ainda, esclarecer o fato de que pisei “no chão da escola” até 1994, embora eu continue trabalhando com filosofia no setor de produção de livros didáticos. O primeiro deles foi a obra Filosofando: introdução à filosofia, publicado em 1986, fruto do trabalho docente. As frequentes revisões permitiram sua constante atualização, além da oportunidade de apresentar outros filósofos que se ocuparam com a metodologia do ensino de filosofia, criando novos paradigmas.
Edgar Lyra: Coordenei a licenciatura e supervisionei os estágios curriculares na PUC/Rio durante mais ou menos 10 anos. Vivi a aprovação da Lei 11.684/2008, que tornou obrigatório o ensino de filosofia e sociologia nos três anos do Ensino Médio brasileiro. Foram enormes e múltiplos os esforços empreendidos pela comunidade filosófica, de construção de interfaces com o novo segmento de ensino e de dignificação da formação docente, entre eles a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, de mestrados profissionalizantes e o advento da seção ANPOF - Ensino Médio. Fui também durante 6 anos, a partir de 2013, coordenador do PIBID de Filosofia da PUC/RJ. Esse programa foi crucial para o crescimento e consolidação das licenciaturas em geral; mas, infelizmente, foi sendo alterado ao longo dos anos numa direção que dificultou a participação das licenciaturas em filosofia. O revés maior viria, já no governo Temer, com a aprovação da Lei 13.415/2017, que, entre outros prejuízos, revogou a lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino Médio. Participei como consultor do MEC da elaboração das duas primeiras versões da BNCC, que vi serem inteiramente transformadas após a promulgação da referida lei. A filosofia figurava nas primeiras versões como “componente curricular” e a proposta da equipe por mim coordenada era a de construir um documento participativo, regido por um espírito “minimalista” que deixasse livres as/os professoras/es para mobilizarem o melhor da sua formação em busca da materialização de “experiências de pensamento” com suas/eus alunas/os. Resguardadas prescrições mínimas, que deveriam garantir uma “base comum” para todo o país, cada docente, estado ou rede poderia curricularizar essa base de modo a aumentar a chance de trabalhar qualitativamente a filosofia em sala de aula, sobretudo de modo a fomentar o interesse das alunas e alunos pelo seu futuro estudo e respeito. A versão final da BNCC, contudo, a reboque da Lei 13.415/17, destituiu a Filosofia da condição de componente curricular e definiu que seus “estudos e práticas” deveriam ser curricularizados a partir de competências gerais elencadas para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Dada a complexidade da reforma em epígrafe, ademais com sua prescrição de “percursos formativos” e, claro, dadas as dificuldades postas pela pandemia de Covid, ainda não temos hoje em nenhum estado brasileiro uma implementação integral de suas diretrizes. Percebe-se aqui e ali uma redução da carga horária da Filosofia e teme-se sua diluição na área de Ciências Humanas, sobretudo dadas as condições precaríssimas da flexibilização ou interdisciplinarização propostas. Já é igualmente perceptível – ainda que sem estudo comprobatório – a diminuição da procura pelos cursos de licenciatura em filosofia em todo o país. Ainda mais problemática que a restrição do “mercado de trabalho” para professoras/es de filosofia me parece, entretanto, ser o déficit formativo que essas novas políticas públicas estão a fomentar. Sobretudo num momento de hegemonia tecnológica tremenda, de advento de novos e ubíquos processos de formação de subjetividades, o desinvestimento no ensino de filosofia é no mínimo anacrônico. Houvesse um pingo de lucidez formativa, haveria de se incentivar que a filosofia se constituísse como lugar privilegiado de questionamento dessas novas realidades, especialmente de modo a evitar a formação de novas gerações de “meros usuários de novas tecnologias” − zumbis, na pior das hipóteses. Há decerto quem hoje esteja a garimpar nas linhas da BNCC questões que concedam sobrevida à filosofia, como componente curricular, ou transversalmente, em oficinas, laboratórios, núcleos, incubadoras, conforme sugerido no documento. Seja como for, o cenário me parece ainda muito indefinido. Dependendo do resultado das próximas eleições presidenciais – se chegarem a acontecer – a discussão deverá ser reaberta, sendo muito aconselhável que a comunidade filosófica amadureça uma defesa formativa do ensino de filosofia na educação básica, tanto quanto possível propositiva e exequível.
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em sua existência de uma década no formato que adotou desde 2010, para todas as disciplinas, nesta edição em curso (2021), em atendimento à BNCC e ao novo formato do EM, permitiu grandes alterações no formato dos livros didáticos, com livros integrados por área, para cada itinerário formativo. Como vocês avaliam essas alterações nos produtos educacionais que estão sendo propostos e o impacto sobre os livros didáticos específicos de Filosofia?
Maria Lúcia: Ao descrever meu percurso profissional, assinalei diversos momentos de inserção e de exclusão do ensino de filosofia. No momento presente, estamos passando por outra reforma, com base na Lei 13.415/17 vinculada à aplicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Aberta a muitas críticas, a decisão de aplicá-la precipitadamente no próximo ano de 2022, professoras/es e alunas/os entrarão em sala de aula sem entender bem como será o novo trabalho. A exposição excessivamente minuciosa da reforma não teve o cuidado – eu ainda diria, o respeito – de preparar professoras/es com tempo suficiente para entender o que se espera delas/es. Existe ainda outro complicador, o da própria estrutura da escola, com salas isoladas, sem condição de reunir docentes para discutir a respeito dos trabalhos que visariam os exercícios de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, a fim de proceder ao estudo por áreas, como foi posto pela reforma. Outra questão “desconcertante” trata-se do “engano” de reduzir a Filosofia ao campo restrito das ciências humanas, quando se sabe que ela abrange todas as áreas. Ao contrário disso, recusar o ensino filosófico a estudantes de outras áreas significa negar o acesso à reflexão filosófica, necessária para todos os humanos, indistintamente.
Edgar Lyra: Examinei apenas por alto, não com a necessária atenção, a atual lista de 14 livros aprovados pelo PNLD para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Há de ser um exercício interessante conferir como os vários professores e professoras envolvidos na sua elaboração equacionaram a interdisciplinaridade demandada pela BNCC. Igualmente importante será ter atenção às demandas postas pela implementação de qualquer um deles no “chão das escolas” – tudo isso, por óbvio, entrelaçado com as soluções curriculares a serem finalmente adotadas nos vários estados e redes do país. Como dizia ao falar da minha participação nas primeiras versões da BNCC, a proposta da filosofia era minimalista, e assim o era para deixar espaço para mobilização, por parte de vários professoras/es, das suas melhores capacidades. O grupo de questões norteadoras dos “direitos e objetivos de aprendizagem” (linguagem daqueles primeiros documentos e do PNE/2014-2024) foi elencado de modo a cobrir as várias áreas do debate filosófico, a saber: a ideia mesma de filosofia, questões existenciais, epistemológicas, éticas, estéticas, políticas, lógicas e retóricas. Não se induzia o uso de quaisquer filósofos, filósofas ou tradições. A prioridade era dar ocasião a interrogações tão filosóficas quanto possível, sem as quais quaisquer justas intenções ético-políticas se diluiriam em especulações históricas, sociológicas, puramente opiniáticas ou mesmo doutrinárias.
De 2015 para cá, registre-se, ganhou atenção na comunidade filosófica a questão do descentramento da filosofia, com crescimento do interesse por tradições não europeias e por autorias femininas, cabendo discutir como esse movimento pode ou não dialogar com as atuais propostas de interdisciplinarização. Acima de tudo problemático me parece ser o modo pouco democrático e desacompanhado de providências estruturais com que todas essas transformações curriculares têm se dado. Oxalá tenhamos mais para adiante ocasião para retomar, no âmbito governamental, um debate realmente aberto, plural e demorado, à altura da complexidade das questões envolvidas e do real formativo posto pelos desafios e impasses do século XXI.