"O feminismo liberal serve para pacificar as lutas feministas de libertação, oferecer uma respeitabilidade e um pedaço da torta capitalista", entrevista com Françoise Vergès

Susana de Castro

Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.

04/05/2022 • Entrevistas

O feminismo pode ser universal? As mulheres lutam em todas as partes do mundo contra a mesma forma de opressão? As feministas do sul Global e da ex-colônias discordam da universalidade do feminismo e adotam a virada decolonial, de acordo com a qual a colonização iniciou uma divisão internacional do trabalho a partir dos critérios de raça e gênero. Segundo esta divisão, os corpos dos trabalhadores escravizados eram considerados automaticamente inferiores, não humanos, por não serem europeus, brancos e tão pouco femininos ou masculinos de acordo com a norma europeia.

Nesta entrevista publicada na edição de maio de 2022 do Le Monde Diplomatique Brasil, a feminista decolonial francesa, Françoise Vergès, autora do livro “Um feminismo Decolonial (São Paulo: Ubu, 2020)”, fala sobre os dois pontos cegos do feminismo burguês europeu, a questão racial colonial e o capitalismo/imperialismo. A teórica apoia-se em Aimé Césaire para descrever o ‘efeito bumerangue’: países colonizadores e escravagistas, trazem para dentro das metrópoles as ideias racistas, que contaminam até os ambientes ditos progressistas. 

 

Você fala no seu livro Um Feminismo Decolonial¹ da reviravolta que fez do feminismo uma das forças motrizes das ideologias de direita. O que é que está em jogo nesta mudança ideológica? Como se deu esta mudança?

Tendo já conseguido tornar o seu feminismo, o feminismo universal e universalista, forçando todos os outros feminismos (e são muitos) a qualificarem-se [enquanto tal] (o que não é em si uma coisa má), é uma operação de comunicação bem-sucedida que tem se beneficiado do apoio dos Estados e de organizações internacionais. Trata-se de uma operação hegemônica. É verdade que os termos feminismo e feminista nasceram na França no século XIX, o que levou as mulheres a inventarem outros termos como womanism, por exemplo, mas a adopção pelas mulheres de feminista e feminismo em todos os continentes e no Sul Global significa que já não pertencem à Europa. Este é um primeiro ponto.

Há historicamente dois pontos cegos no feminismo burguês europeu: a questão racial colonial e o capitalismo/imperialismo. Esse feminismo europeu, que quer estar associado às lutas das mulheres em todo o mundo, traz em si o efeito bumerangue [fr. effet-retour] da escravidão e da colonização. Tomo esta expressão emprestada a Aimé Césaire que, no seu Discurso sobre o Colonialismo, escreveu que um país não pode escravizar ou colonizar sem que ideias racistas coloniais surjam em seu seio, estas últimas se insinuam até mesmo nas teorias mais progressistas. Na sua carta de demissão do Partido Comunista Francês em 1956, Césaire disse que a fraternidade dos comunistas franceses é um fraternalismo, que o seu universalismo quer dissolver todos os particulares e que ele defendia o universal e o particular (algo próximo do pluriversalismo). 

Para compreender como o racismo se insinua, podemos pensar no anti-escravagismo das feministas europeias no século XVIII, que não era um antirracismo. Eram contra a escravidão, mas não imaginavam uma soberania negra e pós-racista (que se concretizaria com o nascimento da República do Haiti em 1804). Comparando a opressão patriarcal (real) à escravidão (ser escrava do próprio pai, irmão, marido), elas escolheram ignorar o racismo proclamando uma sororidade fictícia, uma vez que nenhuma destas feministas, que eu saiba, tem consciência de que a invenção da raça branca as tornou brancas. Não conheço ninguém que tenha apoiado publicamente a Revolução Haitiana, onde tantas mulheres negras morreram em defesa dos ideais de liberdade e igualdade e cujos nomes foram apagados da história. Só no século XX é que os seus nomes foram conhecidos fora do Haiti! Ainda hoje, dizer às mulheres brancas que elas são brancas leva a protestos. A sua "inocência", a sua falta de sentido de responsabilidade pela escravidão, colonização e imperialismo, mostra até que ponto estes sentimentos penetraram nas consciências das pessoas.   

Estas feministas não estão conscientes de que vivem numa Europa que se construiu, como entidade política e cultural, sob a ideia de uma civilização superior. Os europeus questionam este fantasma, mas as feministas ficam em silêncio. Nas colônias, encontramos mulheres brancas que não se submeteram às normas raciais (por exemplo, no apoio ao Underground Railroad² nos Estados Unidos; na solidariedade da comunard Louise Michel³ com os Kanaks), mas estas mulheres eram raras e foram as mulheres negras e racializadas que pagaram o elevado preço pela resistência. Ser branco as protegia contra as punições mais pesadas. Os casos de castigos radicais são raros. O feminismo burguês branco não faz qualquer análise da raça branca. Embora tivessem poucos direitos civis, as mulheres, por serem brancas, podiam, a partir do século XVII, possuir seres humanos, recebê-los como herança ou dote, ou administrar plantações. Elas iam aos mercados de escravos, negociando, comprando e vendendo, compreendendo muito bem as regras do comércio humano. Sabiam que seres humanos, por serem negros, foram transformados em capital, e queriam manter e fazer crescer esse capital. É a sua cor, e não o seu género, que lhes dava esse direito. Elas tinham acesso a este comércio e a este capital porque serem brancas. Poderíamos muito bem falar de empowerment no sentido que o capitalismo e o feminismo lhe dão hoje: a possibilidade de as mulheres terem acesso ao mercado e ao capital num sistema que continua a ser de raça e classe. Responder que naquela altura todos eram a favor da escravidão é ignorar o facto de que as mulheres escravas e escravizadas eram contra! 

As feministas europeias eram largamente a favor da colonização pós-escravidão. Muitas viram isto como uma oportunidade para libertar as mulheres presas em sociedades atrasadas porque estavam convencidos de que a Europa, apesar da sua oposição aos direitos e liberdades das mulheres, era o continente onde estes direitos estavam mais avançados e onde continuariam a desenvolver-se. Já existia nesta época a ideia de "white savior" neste feminismo.  Contudo, o seu poder não deve ser exagerado, pois são os homens brancos que desenvolvem políticas coloniais raciais, enviam exércitos, fazem vista grossa aos genocídios quando não o praticam, e aprovam leis raciais. Mas essas feministas não protestam contra estas leis. Quando feministas como a feminista francesa Hubertine Auclert declarou que as mulheres seriam melhores administradoras das colônias devido à sua feminilidade, ela não foi ouvida, mas assinalou uma posição que iria ressurgir no século XXI. 

A equivalência que estas feministas fazem entre as condições das colonizadas e as suas próprias baseia-se na sua convicção de serem universais, mas também na política de piedade. Querem salvar essas mulheres, mas sem atacar frontalmente a escravidão e a colonização.

As feministas marxistas europeias, de extrema-esquerda, e revolucionárias têm uma maior noção das lutas a travar. Reconhecem a existência de classes sociais. Não veem as mulheres como uma classe em e de si mesmas. As teóricas feministas marxistas fizeram a ligação entre o imperialismo e a pacificação da classe trabalhadora na Europa (como Rosa Luxemburgo), que mais tarde passou a chamar-se de branqueamento da classe trabalhadora. Explico tudo isto com mais pormenor em Um feminismo decolonial (2019).

Em resumo, foi no final do século XX que o feminismo burguês branco regressou fortemente à cena pública. A sua hegemonia estava em construção desde o século XIX, mas foi no contexto da oposição ao Islã que ela assumiu toda a sua importância. O meu argumento é o seguinte: são estas feministas que oferecem ao imperialismo e ao capitalismo do Norte o discurso, os "elementos da linguagem” dos direitos das mulheres para fortalecer as novas formas da missão civilizadora e a pacificação das lutas. O que está em jogo é a oportunidade de regressar à cena pública, de se tornar agentes essenciais no mundo das ideias e da política, de ser consultadas, nomeadas para cargos importantes, de criar corporações que implementem programas de empowerment das mulheres, especialmente no Sul Global, a fim de facilitar a sua integração no mercado, e, finalmente, de ser tornarem white savior, o que satisfaz o seu narcisismo, ou então de se tornarem intérpretes das lutas. O que está em jogo é a preservação dos interesses de classe e de raça.

Explique por que você acha que o feminismo (liberal) se tornou uma das forças motrizes por trás das ideologias de direita.

É um feminismo individualista que não procura desmantelar o capitalismo, mas adaptá-lo para que as mulheres possam passar a ocupar cargos de decisão. Às vezes leio o Financial Times e vejo como o capitalismo promove políticas de diversidade e inclusão, explicando que o recrutamento de mulheres, negros/as e pessoas racializadas é bom para o capitalismo. Políticas de inclusão e diversidade que, à primeira vista, parecem boas, precisam ser analisadas naquilo que comportam de perspectiva pacificadora. Elas servem às novas vias do multiculturalismo liberal e do antirracismo liberal. Elas continuam a exercer atração e fascínio jogando com a precariedade que o capitalismo e o racismo fabricam e com desejo de serem analisadas por Frantz Fanon, bell hooks e outros.

Lembremo-nos que Nixon, confrontado pelos movimentos negros radicais, o Black Panther Party, decidiu facilitar o surgimento de um capitalismo negro. Para Nixon, o capitalismo negro seria a realização do poder negro (black power), ao oferecer um pedaço da torta. Pode-se dizer que esse feminismo serve ao mesmo propósito: pacificar as lutas feministas de libertação, oferecer uma respeitabilidade e um pedaço da torta capitalista. Os direitos das mulheres têm um apelo muito forte: todo mundo é espontaneamente a favor dos direitos das mulheres e das meninas, somente reacionários horríveis podem ser contra isso. Os direitos das mulheres são assim utilizados contra aquelas que lutam, contra as mulheres dos povos autóctones, as mulheres negras e racializadas. Somente o capitalismo seria capaz de oferecer liberdade às mulheres. A noção de "liberdade" invadiu o espaço discursivo.

Cada vez mais mulheres estão sendo promovidas a cargos de responsabilidade econômica e política. Particularmente na extrema-direita, onde são muito estridentes em sua oposição aos direitos sociais, ao direito das mulheres de decidir sobre seu próprio corpo, elas são a favor do individualismo desenfreado (se você é pobre, a culpa é sua), elas são racistas, homofóbicas, transfóbicas. Eles não hesitam em encorajar a polícia, as milícias e o exército a torturar, prender e matar. Vemo-las atuar na Bolívia, Peru, Espanha, França, Chile e EUA. Essas mulheres, que exigem o mesmo reconhecimento que os homens em seus movimentos, o mesmo respeito, que não querem ser consideradas marionetes, não se fragilizam no seu fascismo e racismo. Quando o feminismo é reduzido a isso, elas podem se chamar de feministas. Dizer que elas não são feministas não nos ajuda a ver que existem os feminismos e que as feministas estiveram do lado do racismo, da exploração, da islamofobia...

Qual o significado do que você chamou de "feminismo civilizador" e a crítica que o feminismo descolonial faz dele?

Ao cunhar o termo "feminismo civilizador", eu queria enfatizar até que ponto este feminismo é debitário do discurso e da política da missão civilizadora colonial. Esta última foi baseada na ideia de que a Europa, que tinha, aos seus olhos, uma civilização superior - tecnológica, científica, filosófica - tinha o dever de levar suas leis, suas técnicas, seus conhecimentos, aos povos considerados atrasados.  Esta convicção se reflete em um feminismo que está convencido de que os direitos da mulher, tal como concebidos na Europa, são universais. É claro que o direito à educação, aos direitos civis, ao divórcio, ao voto, ao controle da reprodução, às sexualidades que não são heteronormativas, todos esses direitos obtidos através de lutas são essenciais, mas a luta anticolonial, anti-imperialista, anticapitalista e anti-racista não pode ser negligenciada. O patriarcado não foi criado pela colonização, mas a colonização impôs normas do que constitui a família "certa", ou a masculinidade ou feminilidade "certa", criminalizou sexualidades, racializou o patriarcado: o patriarca tirano em casa, mas negro, árabe, racializado fora de casa - o "boy" quando um homem branco se dirigia a um homem negro, o "tu" usado sistematicamente nas colônias francesas para falar a uma pessoa colonizada, qualquer que seja sua idade, são sinais desta racialização. A maioria dos estados pós-coloniais manteve essas leis criminais, reduzindo os direitos das mulheres que haviam lutado pela independência. 

Quando as mulheres dos povos autóctones da América dizem "não há descolonização sem despatriarcalização", elas estão expressando claramente que o patriarcado foi cúmplice na colonização. Maria Lugones fala da "colonialidade do gênero". Para Oyeronké Oyewúmi, o gênero é uma construção ocidental porque existem culturas onde o corpo e o determinismo biológico que o Ocidente lhes dá não determinam o papel social. O feminismo civilizador não leva em conta todos esses debates e complexidades mas, acima de tudo, em minha opinião, estão muito aferradas a sua missão de levar às meninas e às mulheres os ideais europeus de emancipação das mulheres.

Esse feminismo civilizador é diferente do feminismo burguês modernizador que surgiu no mundo pós-colonial, mesmo que este último carregue consigo aspirações civilizadoras. Pois embora este último tenha levado a cabo um projeto civilizador que seria alcançado através da modernização da sociedade e do desaparecimento das "superstições" e dos costumes "retrógrados", ele tinha consciência do que o colonialismo havia destruído. Procurou combinar "modernidade e tradição", como dizem, e insistiu com razão na educação para meninas e mulheres, programas de saúde, proteção para mulheres solteiras e divorciadas... Ao se tornar público, este feminismo se colocou do lado das classes dominantes. As feministas desta classe usam as palavras empowerment, direitos das mulheres, mas sem questionar as hierarquias sociais existentes das quais elas se beneficiam. Esta ideologia civilizadora é muitas vezes anti trabalho sexual, anti-trans, anti-gay, anti-lésbica, mas para uma melhor consideração do papel da mulher como mãe. Se podemos reconhecer que algumas destas feministas estatais têm um papel progressista, devemos, no entanto, analisar seu papel civilizador, o que muitas vezes significa que elas não ouvem as mulheres mais exploradas, mais vulneráveis e mais oprimidas: é necessário "civilizar" as mulheres camponesas, as mulheres da classe trabalhadora... Penso que devemos separar a educação de uma aspiração civilizadora, que é um legado do colonialismo civilizador.

O feminismo descolonial que defendo aborda a libertação de toda a sociedade, não visa a igualdade de mulheres e homens em uma economia militarizada, de exploração e extração, mas o desmantelamento desta economia, do racismo e do patriarcado. Não é indiferente, como algumas feministas do universal acusam, às aspirações diárias das mulheres no Sul Global ou nas minorias negras e racializadas no Norte. Pelo contrário, é um feminismo que luta pelo acesso à água (e não esqueçamos que as adolescentes e as mulheres sofrem com a falta de água quando menstruam), o acesso ao ar puro, a uma educação que respeita as línguas, as culturas e o conhecimento dos subalternos, o acesso a um teto sobre a cabeça, a empregos que não são apenas trabalhos de cuidado dos quais as classes predadoras se beneficiam, à desmilitarização da política.

De acordo com você, o feminismo ocidental traiu o feminismo ao querer tomar um lugar no mundo predatório dos homens e assim se envolver na vitimização das mulheres racializadas e na objetivação sexual dos homens racializados, você pode nos dizer mais sobre esta traição?

Mais precisamente, diria, o papel predatório dos homens das classes dominantes. Sei que esta expressão não está mais na moda, que falamos de elites, mas esta palavra pode ter uma conotação positiva, enquanto a classe dominante diz que é uma classe que protege seus interesses de classe. 

Não direi que este feminismo traiu, porque ele teria que estar ciente de uma traição. É um feminismo que, como eu disse acima, nunca iniciou o processo de descolonização e exame da forma como o racismo se insinuou em sua ideologia. Não consigo entender como este feminismo pensa que é inocente de séculos de escravidão, colonização e imperialismo. Como se apenas esta ideologia tivesse escapado dos discursos racistas e coloniais. Por qual operação misteriosa isto teria sido possível? Marxistas, socialistas, anarquistas, questionaram como as teorias que haviam defendido pode ter sido cegas à opressão racial e de gênero. Este feminismo nos que fazer acreditar que ele não está preocupado. Por que não? Por que ele não quer empreender sua própria descolonização? Porque tal autocrítica o faria perder seu lugar no dispositivo de poder. Este feminismo dá origem a carreiras, a cargos ministeriais ou em instituições internacionais, ou em corporações. Ele tem seus fóruns, suas redes, suas formas de comunicação. Propaga assim sua ideologia. Ela não ameaça as estruturas.

Na França, temos um ministério dos direitos da mulher e um governo que reprime e anula as leis sociais conquistadas através de lutas, empobrecendo ainda mais as mulheres negras, racializadas e brancas da classe trabalhadora. Na Arábia Saudita, em 8 de março de 2022, a monarquia concede um novo status pessoal às mulheres do reino (nenhum homem pode se opor ao casamento de uma mulher com um homem de sua escolha, custódia dos filhos concedida em caso de divórcio à mãe) e, em 13 de março de 2022, executa 81 homens em um dia. Não vou dizer que estes direitos são insignificantes, as mulheres sauditas foram torturadas e presas apenas por exigirem o direito de dirigir carro. E não há só uma maneira de lutar. Mas temos o direito de analisar a política governamental monárquica ou francesa. Quando é que dar às mulheres direitos não desafia o patriarcado, o capitalismo extrativista ou o racismo? O slogan das feministas negras "até que todas as mulheres sejam livres, nenhuma será" resume uma política feminista que visa a libertação de todas as mulheres.  Não sou contra as reformas, elas podem ter efeitos inesperados, em vez de pacificação, uma nova energia para lutar. Me retrucarão que também estamos testemunhando a uma contrarrevolução patriarcal em vários países ou estados dos EUA, com a mesma velha obsessão com o corpo e a reprodução das mulheres, ao qual se acrescenta um pânico com relação aos transexuais e gays. É verdade. Não há apenas uma forma de contrarrevolução. Mas podemos concordar que esta contrarrevolução, seja na forma de nacionalismo patriarcal, islamofóbica, anti-negro/a ou de capitalismo individualista, cada um tem o objetivo de pacificar as lutas radicais pela terra, água, ar e o respeito pela vida humana e não-humana.

"Dividir para conquistar" continua sendo uma das armas do poder. Quando Frantz Fanon escreveu “Tenhamos as mulheres e o resto seguirá" para descrever a política colonial, ele colocou seu dedo na estratégia de anti-relacionalidade que é a estratégia do capitalismo e do racismo. A proibição da comunidade e da família, não no sentido heteronormativo, mas no sentido de tecer laços de solidariedade e amor. Ao opor as mulheres negras, autóctones e racializadas aos homens de suas comunidades, que seriam violentos por natureza, o governo se apresenta como o salvador dessas mulheres. Diz-se que a masculinidade burguesa branca é a mais capaz de aceitar os direitos da mulher. Não vamos fingir que não exista uma masculinidade violenta que conhece apenas a força. Mas cito o feminista Sayak Valencia que fala do capitalismo gore que gera um estado de violência permanente e oferece como prova de ser homem a capacidade de estuprar, torturar, matar e desmembrar mulheres (ou de estuprar e matar mulheres trans, trabalhadoras do sexo, lésbicas).

Fazer das mulheres negras, autóctones e racializadas vítimas dos homens em suas comunidades é esquecer a violência total do tráfico de escravos, da escravidão, da colonização e do imperialismo, esquecer a naturalização da violência e da brutalidade como modo de governo. As feministas negras, autóctones e racializadas analisaram muito bem esta armadilha: elas lutam contra o machismo e o racismo que mata seus irmãos, filhos e companheiros, que faz de seus corpos, corpos assassináveis. Elas falam de amor e solidariedade.

Na sua opinião, o feminismo descolonial é caracterizado por sua lealdade à luta anti-colonial das mulheres no Sul, mesmo antes do surgimento oficial do feminismo na Europa Ocidental. Você pode especificar esta lealdade?

Eu não tenho certeza se diria que ele emerge antes. A palavra feminismo entra na língua comum por volta de 1892 na França, mas a participação das mulheres nas lutas antiescravidão, antecederam esta invenção, fazia parte de um feminismo anticolonial e antirracista. Victoria Montou, Suzanne Sanité Belair, Marie Jeanne Lamartinière, Marie-Claire Heureuse, para citar apenas algumas, eram mulheres haitianas que se juntaram aos exércitos que lutavam contra as tropas de Napoleão; eram feministas anticoloniais e antirracistas. Como mulheres, negras e escravas, tinham que suportar múltiplas opressões, seu sexo e gênero não as protegia do trabalho mais duro, da tortura e castigo semelhante ao dos homens, mas por causa de seu sexo e gênero, elas eram estupradas, forçadas a alimentar bebês de mulheres brancas, a cuidar de mulheres brancas, forçadas a ser um objeto sexual, a reproduzir a mão de obra escrava. Estas mulheres haitianas estavam lutando contra o estatuto colonial e contra o racismo anti-negro/a e por sua dignidade como mulheres negras. Poderíamos citar as mulheres que trabalharam nos campos castanhas, que envenenaram os escravagistas, que fugiram, que trabalharam para comprar sua liberdade e a de seus filhos e companheiros, que escreveram, organizaram resistência, preservaram línguas e conhecimentos. As mulheres eram líderes na resistência à colonização, participando em todos os níveis. Elas foram ativas nas lutas de libertação nacional. De todas essas lutas, nasceram feminismos que não são imitações do feminismo burguês civilizador.

E estas lutas continuam, todos os dias, em todo o mundo as mulheres se levantam renovando as lutas, diversificando-as, abrindo refúgios e santuários, ouvindo pessoas que não se identificam nem a um gênero, nem a um sexo. Elas fazem parte de todas as lutas: ambientais, reprodutiva, abolicionista, anticapitalista, anti-guerras-imperialista, anti-extrativismo, antirracista, pela vida e dignidade.

Numa época em que o planeta está ameaçado pelas atividades extrativistas, ser fiel às antigas lutas seculares das mulheres contra o racismo, a exploração, a extração, a militarização, é, por um lado, refutar a narrativa europeia que construiu um mundo vazio ao lado de seu mundo cheio. É reconhecer a existência de uma vasta biblioteca da qual se pode extrair inspiração, energia e imaginação. Transmissão e imaginação. Pertencemos a uma longa linha de lutadores. Significa também ter em mente que os feminismos islâmicos, negros, decoloniais, autóctones, asiáticos estão cada dia desenhando terrenos de luta que abrem novos horizontes, pensamentos utópicos que refutam o discurso do fim da história. São lutas duras, longas e difíceis, porque o inimigo usa todas as armas à sua disposição para esmagá-las. Mas elas contêm alegria, esperança e amor revolucionário, sem o qual o mundo seria muito mais sombrio e triste.

Entrevista e tradução: Profa. Dra. Susana de Castro (Filosofia/UFRJ), presidente da Anpof


[1]  Um feminismo decolonial. Trad Jamille Pinheiro Dias & Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020.

[2] Rede secreta de rotas e esconderijos estabelecida nos Estados Unidos em meados do século XIX, utilizada por afro-americanos escravizados para escapar em direção aos estados livres (especialmente no norte) ou para o Canadá. (fonte: Wikipedia) [N.T.]

[3] Anarquista francesa, participante da Comuna de Paris. Exilada na Nova Caledônia em 1873. Leciona para adultos e crianças nativas, e ao contrário de outros communards deportados, toma parte ao lado dos kanaks em sua revolta de 1878 (fonte Wikipedia).[N.T.]

 

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Susana de Castro

Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.

19/08/2024 • Coluna ANPOF