Reflexões sobre ensinar e aprender com filosofia, entrevista com Maria Reilta Dantas Cirino e Elisete Medianeira Tomazetti
Rafael Mello Barbosa
Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino CEFET/RJ
24/09/2024 • Entrevistas
Faz alguns anos que buscamos entrevistar filósofos e filósofas cariocas que estão envolvidas com a licenciatura e com formação de professores com o intuito de elaborar um retrato da área relativamente à com nós pensamos filosofia, seu ensino e os exercícios e as práticas que aí estão envolvidas. Essas entrevistas são motivadas pelo desejo sincero de ouvir e aprender e objetivam revelar, resguardar e divulgar as múltiplas formas como a filosofia e o seu ensino são pensados, ensinados e vividos. Esta pesquisa dialoga com o campo que se convencionou chamar de Metafilosofia, entendendo-a como uma reflexão sobre os sentidos de filosofia e de seus modos de acontecer, sob uma perspectiva anticolonial que busca afirmar, demonstrar a existência e mostrar um pouco da potência da filosofia, dos filósofos e filósofas, nacionais.
Pode-se imaginar como foi significativo para essa pesquisa quando, em nome da organização da ANPOF – Ensino Básico, fui incumbido de entrevistar a Profa. Dra. Elisete Medianeira Tomazetti e a Profa. Dra. Maria Reilta Dantas Cirino. Permitam-me apresentá-las para aqueles que ainda não as conhecem.
Elisete Tomazetti é Titular de Metodologia de Ensino e Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista de produtividade do CNPQ, líder do Grupo de Pesquisa/CNPQ FILJEM (Filosofia, Cultura e Educação) e coordenadora do LEAF - Laboratório de Ensino e Aprendizagem de Filosofia, do Curso de Filosofia/UFSM, que é um espaço para o estudo e para pesquisa e também para formulações diversas de processos e obras educacionais, possuindo um acervo com algumas centenas de itens, grande parte deles elaborados por ou sob orientação de Tomazetti, isso para dizer o mínimo do extenso currículo dessa eminente filósofa.
Maria Reilta Cirino, cujo currículo precisa ser igualmente resumido, é coordenadora e professora do Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Filosofia - PROF-FILO Núcleo UERN/Caicó, é líder do Grupo de Pesquisa "Ensinar e Aprender na Educação Básica/UERN/Caicó/RN" e também é membro dos Grupos de Pesquisas: Filosofia e Educação/UERN/Caicó/RN e Núcleo de Filosofias e Infâncias - NEFI/UERJ/RJ. Desenvolve pesquisas na área de Educação com foco na educação infantil, filosofia com crianças, na formação de professores e no currículo. Tem artigos publicados em livros e em diversos periódicos da área de filosofia e educação. Em 2016, publicou o livro "Filosofia com crianças: cenas de experiência em Caicó (RN), Rio de Janeiro (RJ) e La Plata (Argentina).".
Com relação a entrevista abaixo, ela é uma adaptação da pesquisa supramencionada, as alterações foram realizadas para que a entrevista coubesse no formato solicitado pela organização da ANPOF-EB. Com isto, a entrevista foi realizada simultaneamente com as duas entrevistadas, toda ela por escrito de modo diacrônico (no lugar de ser feita de modo individualizado no formato presencial ou remoto sincronamente) e tivemos que nos conter em cinco questões (no lugar das 10 ou 15 que fazemos normalmente). Foi uma experiência diferente, mas igualmente gratificante e produtiva, por poder conhecer melhor e ajudar a elaborar mais um registro e como ele ajudar a divulgar o pensamento dessas duas eminentes filósofas com grande experiência docente, vasta produção e absolutamente comprometida com o ensino de filosofia com jovens e com crianças.
A Profa Maria Reilta Cirino, além de responder as questões colocadas, escreveu uma introdução comentando um pouco da situação e experiência em que foi colocada após o convite para a entrevista. Em função dessa introdução optamos com começar a exposição da entrevista com a introdução e as respostas de Cirino e, posteriormente, para cada uma das perguntas, as repostas de Tomazetti.
Maria Reilta: Essa escrita tem como objetivo atender ao honroso e bonito convite que chegou até nós através do Professor Rafael Barbosa, do CEFET/RJ - Ensino Médio, PPFEN e PPRER, em nome da Comissão Organizadora da ANPOF-EB. No convite assim se expressa o professor Rafael sobre o desejo que moveu o convite: “[...] valorizá-los como sujeitos absolutamente singulares cuja lida com a filosofia e com sua docência merece ser conservada e disponibilizada para o conhecimento de todos.”
Nesse sentido, nos foram dirigidas algumas perguntas, cada uma delas acompanhadas de um pequeno trecho que tenta comunicar alguns dos sentidos atribuídos pelo professor àquela pergunta. Manifestamos nossa satisfação em perceber cada pergunta como um convite para pensarmos juntos.
Rafael: Ainda que o sentido de filosofia esteja em disputa desde que o termo foi cunhado, um(a) professor(a) de filosofia não pode simplesmente suspender o juízo e entrar em sala de aula. Entrar e se manifestar em sala de aula, já implica uma assunção do que seja a filosofia. Por isso, gostaria de começar por esta pergunta de princípio. O que você entende por filosofia e o que faz uma filósofa quando faz filosofia?
Maria Reilta: Falo de um lugar de alguém que habita a filosofia e que mantém o desejo de estar em filosofia, de fazer algo com a filosofia. Contudo, não temos formação inicial em Filosofia. Nossa lotação no Departamento de Filosofia, Campus Caicó da Uern, desde o ano de 2004, como Pedagoga, nos faz estar na relação formativa entre filosofia e educação. Nos perguntamos o que faz de alguém ser um filósofo ou uma filósofa? O que torna uma aula filosófica? A formação do professor ou da professora? A maneira como cada um/a se relaciona com o saber? A atitude filosófica? Quem pode dizer que é professor/a? O que ensinamos e o que aprendemos quando nos colocamos nesse lugar de professores/as? A atitude filosófica é possível de ser vivenciada e ensinada por quem não tem formação em filosofia? De que maneiras é possível ao/à pedagogo/a ensinar com filosofia? Que relações podemos estabelecer entre a Pedagogia, enquanto área do campo educacional e a Filosofia? Quais os sentidos e significados de educar, fazer escola, de habitar a escola com filosofia?
Mediante esses muitos questionamentos, penso que um/a professor/a que ensina com filosofia, pode convidar a pensar. Penso que talvez podemos nos aproximar da filosofia quando nos colocamos em atenção a algo. Quando partilhamos o comum que nos reúne em torne de algo. Colocar-se em disponibilidade para caminhar com o/a estudante na busca, no desejo pelo saber. Oferecer ao/à estudante algo que possa fazer sentido, colocar a atenção, caminhar, oferecer perguntas, acolher perguntas e criar rotas de buscas.
Elisete: Olá Rafael. Como não ser essa a primeira pergunta, não é mesmo? Tudo começa com ela; é assim que falo aos meus alunos e às minhas alunas nas aulas: “vamos planejar uma aula, uma unidade didática, um projeto de estágio em filosofia e o primeiro movimento é esse. O que é filosofia para você? ” E muitas vezes eles/elas se espantam com essa pergunta: “Bah, professora, é muito difícil; estamos ainda estudando, não temos uma definição”. Sim, é difícil, mas quando optamos por esse curso superior temos uma intuição, um sentimento, algo ainda indefinido que nos guia. A necessidade de elaborar uma reflexão sobre o mundo e sobre nós mesmos, decorrente de indagações que outros saberes não dão conta. Filosofia para mim é saber, é conceito, são ideias que resultaram de perguntas feitas, por filósofos e filósofas, em determinados períodos. Tudo começa com a pergunta – socraticamente. E por isso mesmo, a filosofia para mim é também prática, a manutenção da pergunta, das perguntas, ao longo de nossa existência, como sujeito no mundo, como professora. Como nos diz Deleuze e Guattari, é um modo de vivenciar o caos, de estar nele, não à vontade e, por isso dele fazer emergir “referências”, “conceitos” que nos permitam seguir; que possam nos apaziguar por momentos, até novamente nele mergulharmos. Outra ideia de filosofia que me orienta é a de Foucault: a filosofia como diagnóstico do presente, que dialoga com a anterior, e que nos provoca a pergunta: como chegamos a ser o que somos hoje? Então, sempre me refiro a duas compreensões: filosofia como discurso e filosofia como cuidado/conhecimento de si, como nos ensina Pierre Hadot.
Rafael: Desde Paulo Freire repetimos como lema, e acertadamente, que a docência deve vir acompanhada pela pesquisa. Ainda assim, não é difícil encontrar falas que reduzem a importância da docência e a abordam apenas como um espaço para a divulgação da pesquisa. Contudo, ao longo da história da filosofia quase todos os filósofos e filósofas somaram a docência e a pesquisa aprofundada como práticas filosóficas a serem realizadas continuamente. Neste sentido, julgo importante perguntar-lhe como você percebe a importância da docência em filosofia para a pesquisa em filosofia?
Maria Reilta: Pensamos que a docência em filosofia é campo de produção de conhecimentos que em ação se articulam com o âmbito teórico, visto que se assim não forem correm o risco de tornarem o fazer docente em si mesmos vazios. O desafio posto é exatamente como conjugar na pesquisa em filosofia também a prática docente em filosofia? (Barra; Barreira, 2021). Os/as docentes mobilizam vários saberes: o disciplinar, específico de sua área de formação; o curricular, que se refere às adaptações necessárias que transformam esse saber em programa de ensino passível de ser colocado em prática em uma dada realidade; o saber profissional, envolve nuances gerais e contextuais sobre seu ofício, aspectos políticos e históricos; o saber da tradição pedagógica, que são concepções prévias das singularidades envolvidas no fazer docente; o saber experiencial, que significa o aprender cotidiano com suas próprias experiências pessoais, singulares; e por fim o saber da ação pedagógica, tornado público, legitimados pela pesquisa científica. Tais saberes compõem uma espécie de reservatório docente, em constante movimento, que são acionados pelos/as professores para responder e atender aos desafios concretos do cotidiano escolar. (Gauthier et all,1998).
Frente à interrelação entre os diferentes saberes docentes mobilizados no ato de ensinar, os/as professores/as produzem conhecimentos, identificam problemas no interior de suas práticas que podem ser analisados, refletidos e identificados possíveis encaminhamentos articulando teoria e prática, impulsionando conceitos filosóficos e culturais presentes tradicionalmente na área da pesquisa em filosofia. Nesse sentido ao articular os saberes de sua prática docente de maneira interdisciplinar com a pesquisa, são ressignificados o âmbito teórico e prático na pesquisa, criando a possibilidade de construção de sentidos e de possíveis questionamentos, aprofundamentos e contribuições para ambos os campos: a docência e a pesquisa.
Elisete: Essa pergunta me faz pensar em duas situações: a da universidade e da escola.
Na universidade penso que isso é muito comum. Aquilo que se pesquisa é objeto de ensino nas aulas da graduação e também da pós-graduação. Isso é muito importante. Funciona como um processo de retroalimentação das duas esferas: docência e pesquisa. No entanto, algumas vezes pode ocorrer que os resultados da pesquisa acabem se tornando, de modo hegemônico, aquilo que é ensinado. E sabemos que atuamos também com disciplinas que fogem ao escopo de nossa pesquisa específica, daquilo que mais gostamos de estudar, investigar e publicar. E nesse caso, a docência acaba sendo um problema, porque retira (e aqui vou me referir especificamente ao campo da filosofia) o filósofo do seu gabinete, de seu envolvimento com a leitura e com o estudo para ter que ensinar algo que não é de seu interesse naquele momento. Lembro aqui de Guillermo Obiols, em seu livro Introdução ao Ensino da Filosofia (2002), que escreveu sobre esse tema: o ensino, a docência, na história da filosofia, como sendo apenas um modo de sobreviver, de ganhar a vida, ou seja, um mal menor, para muitos filósofos. Obiols reflete em seu livro sobre os preconceitos dos filósofos em relação ao ensino, que ainda hoje é objeto de reflexão da comunidade filosófica envolvida com o ensino da filosofia, mas felizmente, parece que estamos em processo de superação, de abandono, ou diminuição, de tais preconceitos.
No âmbito da escola, a relação com a pesquisa é diferente. Ali as condições de trabalho são diferentes e o tempo é sempre escasso, gasto com as aulas, sua preparação e tudo o mais que isso implica. Mas um tipo de pesquisa que se almeja dos/das docentes da escola básica é a pesquisa sobre sua prática, que significa o exercício reflexivo, crítico. Mas julgo que o sentido de sua pergunta vai além do que expus. Não sei se entendi tua pergunta adequadamente.
Rafael: Todos nós estamos acompanhando a luta para que a filosofia figure como disciplina no ensino básico. O que você poderia dizer para aqueles que ainda não vislumbram o que pode a filosofia nessa etapa formativa?
Maria Reilta: Talvez possamos recorrer ao professor Walter Kohan (2022, p. 10), quando nos chama a atenção para o inensinável na filosofia “A filosofia [...], não se pode ensinar; mas, quem sabe, estando nela, seja possível aprender as coisas que não podem ser ensinadas.” Habitar a filosofia é estar entre, um quase, uma aproximação para... Nessa perspectiva, a pesquisa em ensino de filosofia coloca em questão o ensinar e o aprender, a maneira como os/as docentes ensinam e porque ensinam filosofia. A pesquisa envolvendo os fazeres docentes e os desafios vivenciados no chão da escola por quem se coloca no lugar de ensinar filosofia, quando atravessados pelos saberes teórico-filosóficos, cria a oportunidade tanto do/a professor/a pensar, questionar a sua prática como também a própria filosofia enquanto área do conhecimento se perguntar/pensar sobre si mesma. Talvez apenas por criar essa oportunidade aos/às professores/as de pensar através da pesquisa suas práticas docentes, já seja suficiente para justificar esse campo de pesquisa e produção de conhecimentos. Contudo, também podemos atribuir outros valores, tais como a potente relação que se estabelece entre a Universidade e a Escola de Educação Básica, bem como o retorno de professores/as à universidade que cria a possibilidade de ressignificação de saberes teórico-práticos que reverberam de maneira indissociável no campo teórico e prático que se concretiza no fazer docente e nas pesquisas publicadas.
Elisete: O que pode a filosofia no ensino médio? Essa pergunta é fundamental para todos nós que formamos professores e professoras de filosofia, mas por vezes parece que ela pode muito pouco, quase nada, nesse contexto que vivemos. Que contexto é esse? Em termos bem gerais, a avassaladora mercantilização da educação, que para mim significa o atrelamento da educação escolar a objetivos políticos, econômicos. Objetivos de uma sociedade que considera a educação apenas uma ponte para mercado de trabalho. Essa ponte é necessária, mas não é tudo e, talvez, nem o mais importante. Penso em uma educação escolar que tenha objetivos de Formação: formação cultural, formação filosófica, formação científica, enfim. Aquilo que se transformou em um slogan educacional – formação integral- e que precisamos retomar e ressignificar.
Outro elemento deste contexto diz respeito às condições culturais que têm formado as novas gerações. E aqui lembro do texto de Lyotard, Mensagem a propósito do curso filosófico, que desde que eu o li me deu a pensar e segue sendo cada vez mais atual para mim. “O mundo fala sob a regra da troca econômica, generalizada sob todos os aspectos da vida, incluindo as afeições e os prazeres. Esse idioma é completamente diferente do idioma do curso filosófico, é-lhe incomensurável”. Com esse pequeno recorte destaco a questão dos dois idiomas: o idioma do mundo, e aqui acrescento, do mundo estruturado pelas tecnologias digitais, pelas redes sociais e o idioma do curso filosófico. Cada vez mais me parece que esse último está em desvantagem e o nosso trabalho como docentes é contrariar Lyotard e afirmar que não são “incomensuráveis”. Mas, sim, exige um exercício gigante na construção da aula; da prática docente. Um exercício que não abdique do ensino, mas que também coloque em destaque a aprendizagem. Ou seja, que não abdiquemos do professor e da professora como representantes do mundo, mas que também consideremos os novos sujeitos que chegam hoje em nossas salas de aula.
Fiz essa breve digressão para argumentar que cada vez mais a filosofia, também as ciências humanas e as artes, são fundamentais para a formação das crianças e jovens nas escolas. E cada vez mais elas são espremidas em poucos períodos de aulas. Especificamente tratando da filosofia como disciplina escolar, ela está diluída na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e em um arsenal de competências e habilidades, que exige dos professores e professoras um exercício de garimpagem para definir o que ensinar.
Então, se eu tenho esse cenário a partir do qual eu penso na filosofia lá na escola, uma primeira resposta a tua pergunta é: as aulas de filosofia podem ser um espaço para colocar em questão esse tempo que vivemos. Como diz Silvio Gallo, um espaço de resistência. O que eu estou chamando de resistência na aula de filosofia? O ato de poder fazer perguntas e, então ir em busca das respostas; da possibilidade de se espantar com algo, com alguma situação, com uma narrativa, enfim. A oportunidade de ler o que filósofos e filósofas escreveram em diferentes tempos, sobre temas e problemas que ainda hoje podem estar aí, se reativados em sala de aula. Também, utilizando uma compreensão do professor Celso Favaretto, oferecer a filosofia como uma “linguagem de segurança”, uma linguagem que oferece condições de pensar criticamente sobre os demais discursos que produzem verdades ou “pós-verdades”.
Rafael: A grande maioria dos professores e professoras elaboram inúmeros produtos pedagógicos ao longo de sua vida. Produtos absolutamente relevantes e importantes no contexto escolar e que deveriam ser divididos com a comunidade. No entanto, muitos deles, acabam sendo engavetados por falta de espaço para divulgação. Você poderia apresentar um ou outro produto pedagógico que tenha criado ou orientado?
Maria Reilta: Acreditamos que um “Produto” resultado de uma pesquisa deve ser pensado como processo. Algo que foi elaborado entre a filosofia e a educação, pois que criado e vivenciado no chão da escola. Desse modo, a pesquisa envolvendo o ensino de filosofia se diferencia da pesquisa acadêmica, especialmente por sua proposição de investigação a partir de uma problemática advinda da prática e convidar aspectos teórico-conceituais para dialogar com e oferecer possibilidades de transformações. Esse tem sido um dos desafios na área da pesquisa em ensino de filosofia: o que poderia se caracterizar como “produto” numa área tão predominantemente abstrata? De acordo com o documento de área da Capes (Brasil/Capes, 2019), o “produto” deve ser organizado tomando uma forma concreta. Já Barra; Barreira (2021, p. 143 - 144): afirmam que: “[...] não é um mero output de um procedimento cego. [...] evoca uma determinada estrutura conceitual – o processo requerido poderá, [...] promover uma interface entre a reflexão filosófica e a prática docente [...].”
Em vista dessas duas perspectivas de ser “processo” e ao mesmo tempo “produto” concreto, citamos o Produto Técnico Tecnológico – PTT, apresentado por nossa orientanda, a professora Sueny Nóbrega Soares de Brito (Prof-Filo/Núcleo Uern), resultado de sua dissertação de mestrado[1], “Estratégias metodológicas em salas de aulas de filosofia noensino médio”[2], o qual teve,
[...] como objetivo trazer contribuições, sugestões metodológicas que proporcionem aulas significativas para os/as jovens da Educação Básica, ensino de Filosofia no nível médio. Tratou-se, a partir das falas autobiográficas dos sujeitos pesquisados/as, da identificação dos desafios metodológicos em salas de aulas de ensino de Filosofia no nível médio e da construção de encaminhamentos e possibilidades metodológicas vivenciadas por estudantes em formação no Subprojeto PIBID Filosofia/Caicó/UERN e como essas reverberaram em suas práticas de salas de aulas enquanto profissionais docentes do ensino de Filosofia no nível médio. (Brito; Cirino, 2019).
Nas pesquisas orientadas no Núcleo Uern/Prof-Filo/Caicó/RN, temos construído algumas orientações aos/às mestrandos/as, tais como: que o produto decorre da dissertação, contudo de maneira mais objetiva, que deve conter uma breve introdução (objetivos, descrição do problema a ser abordado, definições e detalhamento das etapasde aplicação em sala de aula e/ou ambiente similar, idealização e elaboração do Produto/Processo Educacional, validação pela banca de defesa da dissertação); breve avaliação e análise à luz do referencial teórico e metodológico.
Elisete: A expressão “produto” por um certo tempo me causava estranheza. Não fazia parte do vocabulário utilizado, no meu contexto de docência. Creio que essa expressão entrou em circulação com a criação dos mestrados profissionais. E pensando sobre isso, no contexto de minha atuação no curso de Filosofia-Licenciatura, UFSM, constato que fizemos alguns “produtos”. Por vezes denominava material didático, atividades de aula, proposições didáticas, exercícios reflexivos sobre a prática docente. Explico: quando atuo nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado I e II, que ocorrem ao longo de um ano letivo, solicito alguns desses produtos. Um deles é a organização dos/das estagiários em grupo, que eu denomino grupos de trabalho – GT, para criarem atividades que se refiram a modos de ensinar: ética, filosofia política, introdução à filosofia, lógica, por exemplo, no ensino médio. Para tanto, precisam justificar a proposta, apresentar um breve referencial teórico que a sustente e descrever a atividade pensando que um colega / uma colega, quando chegar ao seu momento de estágio poderá lê-la e utilizá-la em suas aulas e também, poderia ser utilizado por um professor / uma professora de filosofia da escola. Então, ao longo do ano os grupos vêm produzindo esse trabalho que ao final apresentamos em um seminário e, posteriormente é organizado um “caderno didático”. Cada trabalho dos GTs compõe um capítulo deste “caderno didático”. Essa ideia surgiu em tempo que havia uma escassez de livros didáticos, desde os anos 2005. No entanto, também justificava minha ideia da seguinte forma: ao chegar ao final do curso de licenciatura há condições de nossos/nossas estudantes de criarem, pois estão se tornando professores e professoras de filosofia. Assim, temos muitos cadernos didáticos, impressos e catalogados no nosso laboratório de ensino e aprendizagem filosófica (LEAF). Mais recentemente, foram sendo criados alguns jogos para uso nas aulas, mas que não necessariamente estão materializados, no sentido de serem produzidos com materiais adequados. Ficam apenas descritos nos textos por eles e elas produzidos.
Sim, concordo que há muitos produtos pedagógicos que acabam não ganhando circulação de modo a atingir os envolvidos com o campo do ensino de filosofia. Não temos essa cultura de guardar, cuidar e tornar acessível a um público maior. Talvez, em anos atrás o sentido de tornar público era colocá-los em um laboratório, em uma biblioteca, socializar com um/uma colega. E também fico pensando que a produção de tais materiais didáticos seja mais uma tarefa dos/das futuros/as professores/as de filosofia do que propriamente dos/das colegas que estão atuando na escola básica. Novamente me refiro às condições de funcionamento de uma escola, ao tempo, que em geral impede essa produção.
Para finalizar, cito um conjunto de artigos escritos ao final do Estágio, cujo objetivo é descrever e refletir sobre a experiência docente realizada. Funcionava como uma espécie de relatório final. Temos vários cadernos com esse material. Eu sempre digo que é uma riqueza histórica, porque se nos dedicarmos a fazer uma pesquisa sobre eles poderemos identificar o que pensavam e como atuavam os/as estagiários de filosofia em décadas atrás. Penso que isso também nos falta. Pesquisa sobre o que relatórios, projetos, artigos que foram produzidos em diferentes momentos de nossa história recente têm a nos dizer e a nos provocar a pensar. Mas pode ser também de nossa história mais anterior.
Rafael: Eu venho, faz algum tempo, pesquisando produtos pedagógicos na área de filosofia, mas não tenho absolutamente claro o seu sentido e os critérios mínimos que devem orientá-los. Seria possível me ajudar a pensar quais seriam os critérios mínimos para um produto pedagógico de qualidade em filosofia?
Maria Reilta: Pensamos que essa pergunta estará na área de ensino de filosofia sempre latente, visto que a relação indissociável entre a teoria e a prática está em constante movimento, transformação. Contudo, acreditamos que na área de ensino de filosofia quando possível de ser gerado algo no âmbito do concreto na perspectiva de “produto” deveria ser algo que aponta para a implicação do/a professor/a-pesquisador/a construído a partir dos desafios de sua sala de aula, da relação com os/as estudantes. Deveria ser algo que nos convida ao pensar, ao questionamento de nossos saberes. Um produto pedagógico na área de ensino de filosofia deve apostar no risco do fazer, do convite, da inspiração. Diferente de receitas, um produto em filosofia deveria apontar para o processo constante de construir um modo de ser, fazer algo com a filosofia, de estar e permanecer em filosofia, apontar para as perguntas sempre abertas: o que é filosofia? O que ensinamos quando dizemos que ensinamos filosofia? Porque ensinamos filosofia como ensinamos? O que pode a relação entre filosofia, universidade e escola de Educação Básica?
Elisete: Considero muito importante esse teu empenho com os produtos pedagógicos na área da filosofia. Você dá visibilidade a uma questão sobre a qual não pensamos ainda. E nos desafia a pensarmos juntos, agora.
Acho necessário criar critérios para avaliar a qualidade dos produtos. Penso no meu caso, que tenho alguns materiais/produtos catalogados no LEAF. Qual é a qualidade? Passou pela minha avaliação e das próprias turmas de estágio. Mas só isso. E vamos disponibilizar para “o mundo”, como eu falo? Ou mantemos para nosso consumo interno? Então teríamos que pensar em um grupo, uma equipe. Isso se estamos pensando em um repositório de caráter nacional. Ou em repositórios menores, em cada instituição, também. Também penso que além de um repositório de materiais/produtos que possam vir a ajudar e a inspirar professores e professoras de filosofia, temos que pensar um “acervo histórico”, uma espécie de museu. A velocidade do tempo é tão grande que me faz pensar assim. Dou um exemplo: houve um tempo que o uso de filmes, ou parte de deles, nas aulas de filosofia foi um acontecimento. Começamos a pensar a relação entre cinema e filosofia; cinema e ensino de filosofia. Então, temos um acervo significativo de fitas VHS. Depois chegaram os DVDs. Passamos todos os filmes VHS para CD. E agora? Nada disso mais é utilizado. Mas estão lá, guardados... Da mesma forma, podemos pensar nos livros didáticos, nas apostilas que eram criadas, enfim.
Voltando a tua pergunta sobre critérios. Vou arriscar. Não tenho tanta convicção sobre.
Então:
1. Que sejam exequíveis, façam sentido para professores/as e alunos/as da escola básica.
2. Dialoguem com as abordagens que hoje discutimos no âmbito do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e com as produções resultantes de pesquisas sérias que estão sendo feitas.
3. Incorporem e se refiram a temas que historicamente ficaram de fora dos currículos de filosofia da escola básica.
E, por fim, penso que temos que pensar sobre os tipos de produtos pedagógicos, na sua classificação: exercícios, oficinas, jogos, proposições de aula, tipos de provas (avaliação), relatos de experiência reflexivos. Enfim, acho que podem ser outros, mas fico por aqui.
Te agradeço a possibilidade de me fazer pensar sobre esses temas ou de repensar!
Referências
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Brito, Sueny Nóbrega Soares de; CIRINO, Maria Reilta Dantas. Estratégias metodológicas em salas de aulas de filosofia no ensino médio. Produto Técnico Tecnológico. Mestrado Profissional em Filosofia – Prof-Filo/Núcleo UERN. Disponível em: https://www.uern.br/controledepaginas/produtos-prof-filo/arquivos/6200sueny_produto_ta%E2%80%B0cnico_tecnola%E2%80%9Cgico.pdf
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LYOTARD, Jean-François. Mensagem a propósito do curso filosófico. In: LYOTARD, J.F. O pós-moderno explicado às crianças. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.
FAVARETTO, Celso. Notas sobre ensino de filosofia. In: ARANTE, Paulo et. all. (org.). Filosofia e seu ensino. Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos. Volume X. Filosofia, diagnóstico do presente e verdade. RJ.: Forense Universitária, 2014.
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? SP: Loyola, 1999.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. SP: Editora 34, 2010.
Notas
[1]http://www.humanas.ufpr.br/portal/proffilo
[2]https://www.uern.br/controledepaginas/produtos-prof-filo/arquivos/6200sueny_produto_ta%E2%80%B0cnico_tecnola%E2%80%9Cgico.pdf