BNCC: A experiência fragmentada do saber e o ensino de Filosofia

17/04/2018 • Notas e Comunicados

Anunciada ao Conselho Nacional de Educação (CNE) no dia 03 de abril de 2018, a Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio (BNCC/EM) apresenta as novas linhas desenhadas pelo atual Ministério da Educação (MEC) para este estágio escolar. O impacto sobre o ensino da Filosofia é direto, sendo este o momento de encontro formal dos jovens com o conteúdo de nossa área nas escolas.

O processo de composição da versão final deste documento é fruto de uma súbita ruptura do processo democrático, ainda que problemático, que havia sustentado a legitimidade do documento até então. A BNCC da educação básica estava prevista na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em seu Artigo 26, visando uma normatividade que garantisse uma formação comum na educação básica, complementada por cada estabelecimento escolar e cada sistema de ensino.

A ruptura se dá em dois níveis: primeiramente, a letra do documento não contém o espírito colaborativo entre as diversas instâncias de grupos interessados (previsto em lei, aliás), considerando não apenas as instâncias do poder executivo (Estados, municípios e União), bem como os movimentos sociais da educação e as associações acadêmicas. Todo este conjunto estava, em certa medida, presente na formulação do Plano Nacional de Educação (PNE), este sim, uma lei que avança em muitos pontos, mas – sem audiência apropriada no espaço público – acaba por ser letra morta. Após 3 versões, temos uma BNCC que em nada avança na absorção das críticas presentes na consulta aberta ao público. Conforme a análise do prof. Fernando Cássio, é preciso se questionar o caráter participativo que o MEC tanto propaga. Segundo Cássio: “A superexploração do vistoso número de 12 milhões de ‘contribuições’, cujo significado pode ser questionado de muitas formas, inocula no debate público um falso consenso, como se a coleta de milhões de cliques de concordância e a mera publicização das opiniões de milhares de ‘indivíduos’ — profissionais da educação ou não — fossem capazes de, automaticamente, forjar a democracia no processo de construção do currículo brasileiro”. (ver a matéria em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/Participa%C3%A7%C3%A3o-e-participacionismo-na-constru%C3%A7%C3%A3o-da-Base-Nacional-Comum-Curricular).

Fato comprovado pela segunda ruptura da ação do MEC na BNCC que em nada levou em conta as propostas curriculares ao Ensino Médio, desenhadas nas versões anteriores do documento. Com o pretexto de uma “crise” na educação a partir dos resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o então ministro Mendonça Filho decretou a Medida Provisória nº 746/2016, que visa a reforma do Ensino Médio. Com isso, o MEC rompe as estruturas curriculares: de um lado, uma BNCC para o ensino infantil e a educação fundamental; de outro, uma BNCC voltada para o Ensino Médio. Nesse sentido, a BNCC foi apresentada em dois tempos: aprovando-se o documento para o Ensino Infantil e a Educação Fundamental no ano passado e, agora, apresenta a versão dirigida ao Ensino Médio. Já em uma primeira leitura desta versão em nada se encontra a presença das duas edições anteriores da BNCC. Todo um processo de debate sobre as matrizes curriculares comuns ficou reduzido às decisões de gabinete do MEC (e seus parceiros mais íntimos como as “bem-intencionadas” empresas da educação), sustentados por uma “crise” da educação e a necessidade de reformas unilaterais e sem a representação do debate com a comunidade educacional.

Sendo um pouco pragmático, independente das questões políticas envolvidas, uma BNCC resolve nossos problemas? E, dado o diálogo com a comunidade filosófica, qual a situação dos conteúdos filosóficos nessa situação?

BNCC e a estrutura escolar

Como vai funcionar a BNCC/EM? De acordo com a Lei nº 13.415/2017, estabelece-se que a matriz da BNCC/EM ocupará no máximo 1.800 horas, sendo complementadas pelos itinerários formativos, que são a ênfase na formação em áreas específicas como: “Linguagens e suas tecnologias”, “Matemática e suas Tecnologias”, “Ciências da Natureza e suas Tecnologias”, “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas” e, por fim, “Formação Técnica e Profissional”. Apenas para ficarmos no mérito da aplicação da BNCC nas escolas, os problemas ressaltam desde o início dessa estrutura, pois as redes de ensino podem aprovar um currículo comum reduzido a poucas horas, uma vez que não se prevê o mínimo da carga horária, mas sim um teto máximo. Didaticamente, também é questionável se nesse formato, ao invés de uma formação flexível – tal como se propaga – não se incentiva uma especialização precoce e precarizada nos 3 anos do Ensino Médio.

Além disso, é necessário se questionar: as redes de ensino estão preparadas para a oferta de todos os itinerários formativos? É importante ressaltar que com o impulso de criação de municípios no Brasil recente, muitos não oferecem mais do que uma unidade escolar do Ensino Médio. E não poucas destas deixam a desejar em suas estruturas. Mesmo que seja interessante o processo de escolha dos estudantes em seu itinerário formativo, haverá oferta para tal? Aliás, como será feita a aplicação desta BNCC, levando em consideração a realidade da maior parte de nossos estudantes, que estudam no período noturno? Eis alguns descompassos graves que aceleram a desigualdade escolar, ao invés de promover uma integração da rede de ensino que assegure aos estudantes seus direitos à educação. Salvo por medidas precarizadas de implantação – recorrentes nos diagnósticos de políticas educacionais e das estruturas escolares do Brasil, a BNCC implica em um aumento no fosso educacional presente nos elevados índices de evasão escolar.

Os componentes curriculares na BNCC

Uma outra maneira de se pensar os efeitos da BNCC/EM é verificar se o documento garante os direitos de acesso à cultura e educação, previstos na LDB. Em sua crítica à composição disciplinar do currículo do Ensino Médio, a secretaria executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, acaba identificando o tédio dos jovens na escola com a ausência de uma nova dinâmica curricular, que caracteriza como interdisciplinar. Salta aos olhos, no entanto, que em sua reforma se mantenham como obrigatórias as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, diluindo as demais disciplinas nas áreas de conhecimento e nas ênfases curriculares dos itinerários formativos. Há assim, na BNCC-EM, disciplinas obrigatórias e outras – grande parte – diluídas no que Castro denomina de “flexibilidade”. Resolve?

Basta ter um pouco mais de experiência nas escolas para notar que, se houve alguma mudança nas escolas por parte da BNCC, foi apenas a institucionalização do que não funcionava. Pois a obrigatoriedade das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática apenas repõe o modelo curricular centrado nestas disciplinas, que sempre tiveram uma elevada carga horária nos currículos escolares, deixando às demais 11 disciplinas a disputa por algum espaço nas escolas. O caso da Filosofia e da Sociologia é emblemático. Não fosse sua obrigatoriedade disciplinar, agora extinta, as suas duas horas mínimas – e diferenciais - sequer existiriam – conforme avaliação de pareceres anteriores do próprio Conselho Nacional de Educação.

Do absurdo da reforma, o MEC sequer escuta suas próprias estatísticas. Emblemático é o diagnóstico sobre as redações do ENEM, cuja maior parte foi anulada por falta de aderência ao tema. Ora, não seria a ausência de disciplinas de Humanidades um dos fatores para tal problema? Não para o MEC, cuja flexibilidade termina aonde os índices do Banco Mundial iniciam. Pois, em vistas de uma avaliação questionável como o PISA (Programme for International Student Assessment), tal discurso da flexibilidade é construído. Decerto, um grande número de países tem submetido reformas educacionais conforme os resultados de tal exame. Contudo, é importante notar que um exame não é o processo escolar e uma proposta de currículo não pode ficar submetida ao esperado de um exame, muito pelo contrário. Pensar um currículo contextualizado à realidade local e como avalia-lo, eis o desafio – aceito em países como a Finlândia, para quem o PISA é apenas um meio educativo dentre tantos outros.

Se é verdade que a Filosofia, embora não tenha mais o estatuto de uma “disciplina obrigatória, não se extingue do currículo, é verdade também que sua função foi diluída na composição curricular por áreas, em um difícil espaço a ser dividido com as disciplinas de História, Geografia e Sociologia. Novamente, pensando na aplicabilidade da proposta, a atual estrutura da escola não está preparada para uma articulação como essa. Das melhores experiências interdisciplinares (como, por exemplo, a escola da Ponte), não se desconsidera a presença do profissional formado na área capaz de articular e produzir conhecimentos em um processo interdisciplinar com referências e nortes claros em um projeto político pedagógico discutido à exaustão para dar conta dos inúmeros itinerários formativos de seus estudantes. No modelo atual da rede pública do Ensino Médio, o professor de Filosofia passa na melhor das hipóteses alocado num período de 6 aulas semanais do Ensino Médio. Tempo inviável para a integração com o corpo docente, sobretudo quando em geral, para dar conta de sua carga didática, a professora de Filosofia se vê obrigado a “pingar” de escola em escola. Exceção aos casos dos Institutos Federais, cujo incentivo à pesquisa e ensino envolve um projeto de professores com dedicação exclusiva, por exemplo. Serão nossas redes de ensino capazes de alterar o básico e valorizar finalmente seu corpo docente? A interdisciplinaridade não existe sem essa contrapartida.

O impacto do BNCC nas licenciaturas

O MEC, através de seus dirigentes, tem enfatizado que a BNCC-EM trará impactos na política nacional de formação inicial e continuada dos professores. No caso específico das licenciaturas, afirmam que os arranjos curriculares devem ser orientados pela nova configuração curricular do ensino médio, ou seja, por área de conhecimento. Caso isto se confirme, muito provavelmente, os atuais cursos de licenciaturas sofrerão modificações profundas, deixando de ter o caráter específico para serem convertidas em cursos que congreguem grandes áreas do conhecimento, como as Humanidades.

A resposta do MEC à valorização do professor vem com a deformação de base nas licenciaturas. O projeto de residência pedagógica (RP), lançado recentemente no edital 06/2018/CAPES, assume um modelo pelo qual restringe o espaço de formação do estágio ao período de um ano, nos anos finais de formação docente.

Levando em conta as estruturas das licenciaturas, em geral com duração de 3 anos, o projeto de residência pedagógica do MEC passa a regulamentar o estágio de docência nos limites de uma única escola e, praticamente, reforça um projeto de formação tão criticado como o 3 + 1 (três anos de disciplina específica + um ano de formação das disciplinas pedagógicas). Concentrado em um ano, o edital da RP dissolve modelos integrados de estágio no decorrer da formação. Voltada ao processo final de formação, o projeto de residência pedagógica praticamente estabelece um período restrito, com vivências reduzidas de estágio. Muito embora o modelo de residência pedagógica seja mais do que interessante, necessário para a formação ambientada de nossos professores, será importante notar como será a articulação desse estagiário em Filosofia diante de uma escola em mudanças...

Também é preocupante o fato de que o projeto de RP prevê um número mínimo de docentes-estagiários. Ora, conforme é notável nos últimos anos, a quantidade de alunos das licenciaturas depende do horizonte de empregabilidade oferecida pela rede. Diluída nas áreas interdisciplinares, a Filosofia passa a ser mais restrita no espaço escolar, caso as redes não façam um debate adequado de como absorver as diversas especialidades em suas escolas. O risco de esvaziamento dos cursos de licenciatura é enorme, algo a que nossa comunidade deve ficar atenta.

Por fim, além do impacto na formação inicial, a formação continuada dos atuais docentes da educação básica será reorientada, tendendo a impactar nos cursos de pós-graduação, a exemplo do mestrado profissional em Filosofia (Prof-Filo). As reformas das licenciaturas, sobretudo no caso da Filosofia, em nada equaciona a atual realidade do corpo docente que leciona Filosofia nas escolas públicas estaduais, na qual registra que 80% dos docentes que lecionam Filosofia no país não tem formação específica, conforme o censo escolar.

A Filosofia como habilidade e competências na BBCC-EM

As competências da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da 3º versão da BNCC/EM indica que o discente, após concluir o ensino médio, deve “reconhecer e combater as diversas formas de desigualdade e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos.” Eis o momento da BNCC/EM que, talvez, a Filosofia seria protagonista.

A despeito das versões anteriores da BNCC, a disciplina Filosofia foi convertida a um capítulo da Ética e Filosofia Política, algo semelhante ao que versava a LBD aprovada em 1996. Isso representa um retrocesso histórico, ocasionando na prática a redução das possibilidades de se trabalhar conteúdos filosóficos nos atuais termos da BNCC/EM. O aluno fica distante de debates centrais na formação filosófica mais ampla presente no debate epistemológico, estético, metafísico e mesmo lógico.

Sobre a ausência da lógica, em particular, a BNCC/EM chega a ser contrária aos seus próprios fundamentos. Afinal, o documento ignora sua própria consideração de um jovem que investiga, lança hipóteses, argumenta, segue a “dúvida sistemática”, identifica ambiguidades e contradições etc. Todas essas ações contempladas pelo exercício lógico-filosófico desaparecem nos atributos das competências e habilidades da área de humanidades.

O que fazer?

E agora, o que fazer? Provavelmente. sem ter a pretensão de expor uma fórmula pronta, alguns caminhos precisam ser trilhados para preservar a Filosofia no Ensino Médio. O primeiro deles consiste em participar das audiências públicas que o Conselho Nacional de Educação promoverá ao longo do ano. Tais audiências serão o penúltimo espaço para propor alterações na 3º versão da BNCC/EM.

A última alternativa acontecerá após estas audiências, ou seja, no plenário do CNE. Até lá, dialogar com os conselheiros e procurar interlocutores aliados pode trazer bons dividendos.

Nesta etapa de discussão da BNCC é bom retomar o debate que consta na lei 13.415/2017, mais precisamente o artigo 3º, § 2o, que afirma que a Filosofia deve ser incluída, de forma obrigatória, como estudos e práticas. A propósito, este item foi uma inclusão do Congresso Nacional visto que o projeto de lei inicial não constava nada do tipo. Em outros termos, a BNCC/EM precisa especificar o que significa tratar a Filosofia como “estudos e práticas” e, em seguida, incluir a disciplina Filosofia obrigatoriamente, respeitando a deliberação do parlamento federal.

Por falar em autonomia das redes estaduais para constituir seus arranjos curriculares e a inexistência de uma lei nacional que obrigue ou proíba o ensino da Filosofia, deve-se averiguar se as leis estaduais voltam a prevalecer. vale lembrar que, antes da lei nacional ser aprovada, muitos entes da federação já garantiam o caráter obrigatório da Filosofia como disciplina. Decerto, a pressão para incluir a Filosofia como disciplina recairá nos Estados e no Distrito Federal, especialmente em órgãos, como os Conselhos Estaduais de Educação, e as Secretarias Estaduais de Educação.

Por fim, para além de todos os caminhos legais, nenhum deles se efetiva sem o consenso das escolas. A autonomia escolar é preservada de maneira saudável, uma vez que é nela que ressoam as demandas da comunidade local. A existência de um projeto político pedagógico de cada escola passa a ser essencial, pois através dele a comunidade manifesta o projeto formativo de seus discentes. Um debate nas escolas se faz necessário para que se reconheça o contexto de cada uma destas instituições e, a partir dele, possa se configurar uma rede curricular adequada aos processos formativos, incluindo de maneira equilibrada e verdadeiramente flexível os componentes curriculares.

Sem esse diálogo direto, é grande o risco de se reproduzir um currículo mínimo, concentrado em disciplinas obrigatórias mediante a dispersão dos demais saberes. Isso não é interdisciplinaridade e sequer flexibilização. Pelo contrário, o MEC apenas inventa a roda das matrizes curriculares concentradas em detrimento de um currículo integrado. Perde não apenas a Filosofia, mas todo o conjunto de saberes na pseudo-formação ofertada como novo rumo em cenário de propaganda. Sobre isso, a necessidade de uma discussão se faz presente hoje.