Carta-Manifesto - Quais os caminhos para a filosofia africana no Brasil?
15/05/2024 • Notas e Comunicados
Nas últimas duas décadas, presenciamos uma transformação nas demandas de pesquisas acadêmicas na grande área de filosofia. As objeções às filosofias africanas deixaram de ser um consenso dos manuais. Reconhecemos que muitos departamentos de filosofia insistem em recorrer aos antigos manuais, contudo, o que se observa nos últimos anos é um caminhar firme, ainda que lento, na direção contra hegemônica. A atual diretoria da ANPOF (2023-2024) tem ajudado a evidenciar para a nossa comunidade essa pauta que já tem uma longa e importante história feita por mãos negras. Com isso, queremos dizer que o volume de pesquisas na área de Filosofias Africanas tem aumentado e o seu escopo está cada vez mais capilarizado. Não à toa devemos celebrar que alguns, ainda que poucos, departamentos de Filosofia estão com vagas abertas para concursos em áreas como, “filosofias africanas”, “filosofias afro-indígenas”, “filosofias africanas, ameríndias e decolonial”, dentre outras. O que precisamos chamar atenção é que temos um grupo significativo de pessoas pesquisadoras que se debruçam há décadas sobre o campo e não participam do processo. Portanto, vale a pena, para não dizermos que é mais honesto, que esses concursos tenham a participação, no que for possível, dessas pessoas em sua construção, fundamentalmente nas bancas. Desse modo, é imprescindível que tais concursos não se esquivem dessas trajetórias acadêmicas, o que vai enriquecer e qualificar os processos de seleção para docentes no campo.
Temos um número amplo de profissionais nas áreas das filosofias africanas, com pesquisas produzidas com seriedade e tempo. Com isso, ao longo de décadas, conseguimos formar um grupo expressivo e consistente de pesquisadoras[1] em filosofias africanas e afrodiaspóricas. Essas profissionais, décadas atrás, reconstruíram um outro futuro para o Brasil. Importante destacar que algumas dessas pessoas tiveram que fazer suas pesquisas de mestrado e doutorado em outras áreas, especialmente na educação. Essa necessidade deu-se por não haver abertura para pesquisar tais filosofias nas pós-graduações em filosofia desse país.
Todavia, construiu-se um campo denso e plural, atuando em diversos espaços, como: traduções de textos, discussões ampliadas e a nível Brasil, EUA, América Latina e países africanos, especialmente Nigéria, Camarões, Angola, Moçambique. Temos livros publicados, diversos dossiês científicos, foram organizados encontros internacionais, viajamos para outros países para agregar de maneira equivalente nossas estruturas, atravessamos esse grande país ministrando palestras, aulas, cursos, formação, etc… Lemos e escrevemos sobre tudo o que foi preciso para, no começo, provar para o Brasil, incrivelmente atrasado nos estudos das filosofias africanas e agindo sobre a negação advinda do racismo, que Filosofia Africana existe. E onde, neste grande país ou em qualquer outro lugar do mundo, não pudemos chegar fisicamente, íamos de forma online. Trabalhamos muito! Todos nós passamos por esse momento juntas, e o ultrapassamos. As filosofias africanas são um campo sólido no Brasil.
Na atualidade muitas dessas pessoas estão formadas, muitas com doutorado, e devido à lógica organizacional do sistema acadêmico que fechou as portas para as Filosofias Africanas, se encontram desempregadas, muito embora a área em questão tenha se tornado capitalizada e, no momento, sendo usurpada por aqueles/as que incidem sair de suas áreas canônicas da Filosofia para ocupar vagas em Filosofias Africanas e ameríndias.
E, aqui, é importante observar que grande maioria dessas profissionais concursadas não conseguiu acessar programas de filosofias e atuam em outras áreas, fundamentalmente na educação. Nosso trabalho tem uma história significativa de uma luta para romper com o racismo e o epistemicídio ainda presentes na produção filosófica brasileira. Entretanto, parece que construímos um futuro do qual não podemos participar. Não somos consultadas, apesar de termos (re)criado o campo, sobre pontos de provas em concursos, suas bancas e muito menos somos aceitas como docentes do assunto que (re)criamos a partir de África. Em outras palavras, cada vez mais parece que construímos um futuro do qual o racismo no Brasil está estruturado para não nos deixar participar dele.
Assim, alguns pontos são necessários para uma reflexão acerca de como, enquanto comunidade acadêmica, lidamos com a inserção de filosofias fora do eixo ocidentocêntrico. Inicialmente, 1 (uma) vaga de concurso que contemple filosofias africanas estar junto com outras geografias filosóficas - latino-americanas, asiáticas, ameríndias - ou com marcadores sociais: gênero, raça e sexualidades. Nesse sentido advém a pergunta: por que tais concursos trazem diferentes abordagens filosóficas em um único “caldeirão”? Nos demais concursos isso acontece? Se faz um mesmo concurso abordando filosofia ocidental moderna e contemporânea? Não há uma preocupação em delimitar as temáticas para as filosofias africanas? Essas perguntas são importantes porque as filosofias africanas são diversas e se dividem em múltiplas áreas, assim como, na filosofia ocidental. Caso essa diversidade temática não seja considerada, factualmente as provas terão pontos que atravessam todo o continente africano, mobilizando as pessoas candidatas um estudo de filosofias de até dez mil anos Antes da Era Comum até a filosofia contemporânea. Perpassando filosofias africanas do continente e da diáspora sem atentar para suas complexidades, e mesmo no continente homogeneizando a filosofia congolesa, ruandêsa, bantu, iorubá, kemética, dentre outras. Isso leva-nos a especular que pessoas que elaboram esses pontos, em sua maioria, não participam/ram das etapas de reformulação das pesquisas de filosofias africanas, desconhecem seus campos e divisões, ou o modo como são organizados seus temas, período, autores e autoras correspondentes. Além da sobrecarga de estudo, por ser obviamente estranhamente diferenciada, acreditamos, ao ver o panorama, que essas instituições não estão realmente preparadas ou interessadas em nos receber. Somos um grupo de pessoas filósofas altamente qualificadas, mas a estrutura não nos permite exercer nossa profissão.
Nisso apresentamos um outro ponto: o interesse na discussão em modificar os currículos dos cursos de filosofias no Brasil. É importante demarcar que temos as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que por mais que sejam direcionadas para a educação básica, os cursos de filosofias formam docentes para atuar em salas de aula e abordar a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. Ou será que o intuito se limita a “aproveitar uma onda” sem repensar que historicamente nosso ensino é marcado pelo ocidentocêntrismo, orientado pela branquitude e pelo falocentrismo? Não dá para ignorar ou negar, ainda que seguimos ouvindo de docentes da graduação e pós que não há filosofias africanas, argumentações defendidas por usurpadores vindo do cânone filosófico acadêmico. A existência das filosofias africanas, já que não é algo que compete ao nosso desejo em determinar a sua legitimidade, possui uma enorme produção no continente que nos precede.
Por conseguinte, essa carta-manifesto à comunidade filosófica é uma maneira de reivindicarmos respeito e reconhecimento a uma trajetória longa e árdua, feita a muitos braços, pernas, gingas, resiliências, enfim, lutas diversas. Reivindicamos comprometimento com essas filosofias, pois o interesse real, coerente com o número de temas das filosofias africanas e o número de profissionais negras qualificadas disponíveis num país de maioria negra, seria preencher de maneira suficiente e não apenas representativa o número de docentes nas universidades para o ensino das filosofias africanas.
Se há diversas áreas de filosofia ocidental nas faculdades, é justo que haja também diversas áreas de filosofias africanas, assim como ameríndias, com um corpo docente representativo que são doutores e doutoras negras e indígenas formadas no campo. Ademais, a representação de um grupo imenso e diverso a partir da presença de apenas uma pessoa negra, ou indígena, no quadro docente, não nos parece demonstrar uma real preocupação com a temática da filosofia africana e ameríndia, apenas revela uma representação não culposa para o racismo institucional. Nesse caso, defendemos um número equivalente de vagas, que elas sejam afirmativas e que abarque todos os campos (ou pelo menos a maioria) das filosofias africanas e ameríndias, respeitando pesquisas que reconhecem como elas se dividem ou em que ponto se encontram.
Historicamente, a Anpof, enquanto associação de programas de pós-graduação em filosofia, não reconheceu a importância e a legitimidade das Filosofias Africanas e Ameríndias. É importante destacar que as últimas diretorias vêm fazendo um trabalho de reconhecimento, pois sabe-se que posições coloniais estiveram, e ainda estão, presentes na nossa história. Agora, não há mais o direito de negligenciar a importância dessas filosofias, reconhecendo a história de décadas de sua construção no Brasil, assim como a necessidade urgente de mudanças curriculares, seleções nas pós-graduações em filosofia e, fundamentalmente, nos concursos docentes. Construções cruciais para que o campo filosófico, no Brasil, seja modificado, refletindo a diversidade do nosso país.
Por fim, deixamos os seguintes questionamentos: O que querem com as filosofias africanas? O que querem com as filosofias ameríndias? O que querem com as filosofias decoloniais?
Assinam esta carta:
Eixo de Filosofia Africana e Afrodiaspórica da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - Anpof
Assine a carta como Pessoa Física ou Grupo de Pesquisa
[1] O texto está escrito no feminino referindo-se a pessoas.