Nota de pesar pelo falecimento do Prof. Dr. Vinicius de Figueiredo
24/02/2025 • Notas e Comunicados
Felipe Cordova
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná
Este é, como não poderia deixar de ser, um relato pessoal. Conheci o Vinas em 2010, quando estávamos no PET Filosofia da UFPR. Eu (então aluno de graduação) como pesquisador, ele como tutor. Em reuniões semanais, usufruímos de sua habilidade incomum para organizar a discussão. Depois de uma rodada de comentários muitas vezes caóticos dos petianos, apontando cada um para um lado, ele punha a bola no chão. Costurava tudo e destrinchava os vários lados da questão, fazendo com que compreendêssemos melhor o que nós mesmos havíamos dito. Era uma constante nesses encontros sua insistência para que falássemos mais, perdêssemos o medo de errar. Também apareceu já aí outra característica marcante sua, uma certa rabugice filosófica, nessa época direcionada ao livro de Habermas que lemos e discutimos ao longo de um ano, O discurso filosófico da modernidade. Ao longo de um ano Habermas deve ter sentido as orelhas quentes semanalmente. A despeito disso as discussões tinham ótimo nível e foram acrescidas de um ciclo de conferências igualmente excelente, com palestrantes como Giannotti, Gabriel Cohn, Ricardo Terra, etc – todos contatos do Vinas.
Entrei no mestrado sob sua orientação em 2014. Escolhi estudar a poética do século XVIII, seguindo a pista de um curso de Estética seu, no qual ele já trabalhava os temas que viriam a compor seu livro, publicado em 2021, A paixão da igualdade. Ele costumava brincar que nós, que acompanhávamos seus cursos, sabíamos o conteúdo do livro melhor que ele próprio. É claro que não era bem assim, mas havia aí algo de verdade, pois ele utilizou as aulas para a graduação nesse período – sobretudo quando a escrita do texto se intensificou, entre 2015 e 2020, mais ou menos – como um laboratório para testar as teses do livro, repetindo-as à exaustão. Como orientando, eu estava quase sempre lá. Ele me pedia para estar presente especialmente nas turmas em que havia pouca participação dos alunos, para que houvesse interlocução, discussão, diálogo. Detestava a sensação de estar falando sozinho. Posso dizer que, em grande medida, aprendi a pesquisar em filosofia acompanhando esses cursos, nos quais a pesquisa aparecia como a prática de testar hipóteses incessantemente – prática intrinsecamente dialógica, por óbvio. Em nossas conversas ele me lembrava que, mais do que ler os pares, é preciso escrever para eles. Há que se ter clareza a respeito de quem são seus potenciais leitores, sem alimentar a ilusão de sermos interlocutores diretos de Heidegger, Foucault ou qualquer outro dessa prateleira.
Da prática em sala aula despontava ainda outra habilidade, a de dosar muito bem o tom da conversa. Entre uma leitura e outra de Pascal ou Descartes, intercalava algumas anedotas, cuidadoso para que o peso e a seriedade das discussões filosóficas não afugentasse os alunos. Uma em especial me é inesquecível, pelo teor de absurdo. Contava ele que certa vez, participando de uma reunião de pais (ou algo do gênero) na escola do filho, tomou conhecimento de que havia uma criança que causava brigas na turma por ter o péssimo hábito de cuspir nos colegas. Tendo, por algum motivo, a oportunidade de ter um momento a sós com o garoto, o Vinas tentou conversar com ele sobre o problema, e tomou ele mesmo uma cusparada no rosto. Sem pensar duas vezes, retribuiu na mesma moeda. Sentiu-se um pouco culpado a princípio, por tratar-se de uma criança, mas depois, conversando com uma amiga antropóloga, soube que há etnias nas quais essa é uma forma elogiosa de se cumprimentar, o que mitigou a culpa.
Por fim, ingressei no doutorado em 2018, mais uma vez sob sua orientação. Vimo-nos pouco nos dois primeiros anos. No primeiro, ele esteve pesquisando na França. No ano seguinte, invertemos, ele voltou e eu fui. Quando voltei, era pandemia, e nos víamos com frequência nas muitas lives daquela época. Depois, quando voltaram as aulas presenciais, novamente nos encontrávamos nas aulas no Edifício D. Pedro II, na Reitoria, sempre esticando para uma cerveja na sequência. Em 2022, deixei Curitiba, e passamos a nos falar mais via mensagens e a nos ver esporadicamente, por ocasião de minhas visitas à cidade, como no caso da defesa da tese em abril de 2023. Em 2024 tive a grata surpresa de reencontrá-lo na USP repetidas vezes. Creio que a última estadia em São Paulo foi para ele um feliz reencontro com muitas coisas e pessoas, inclusive consigo mesmo. Parecia estar em casa. Que bom que houve tempo pra isso.