Nota de pesar pelo falecimento do professor José Expedito Passos Lima

Fran de Oliveira Alavina

Professor da UFVJM (Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri)

21/02/2024 • Notas e Comunicados

Ouso, de início, afirmar que este texto não é uma nota de falecimento convencional, daquelas que acabam por tornar a morte uma simples notícia cotidiana: uma agulha no palheiro dos informes hodiernos. Ou mesmo, como faz ver a traição do título, se tratar apenas de uma nota, um ponto sobre a totalidade de uma existência. É sempre difícil pontuar em uma escrita curta a existência. Ou seja, dizer algo incabível em uma simples “notificação”. Apesar disto, é preciso escrever. Por isso, não desejo que este texto seja lido como uma espécie de obituário filosófico, ainda que seu motivo seja o falecimento do Professor José Expedito Passos Lima, no último dia 08 de janeiro, em Fortaleza.

Recém aposentado das atividades do seu magistério na UECE (Universidade Estadual do Ceará), foi professor do Departamento de Filosofia por mais de duas décadas nesta instituição. Expedito contribuiu proficuamente com outros departamentos da UECE, particularmente o Departamento de Serviço Social. Munido de uma vivacidade epistêmica e uma capacidade dialógica entre as mais diversas tradições filosóficas, Expedito também foi professor convidado por mais de uma oportunidade em departamentos e cursos da UFC (Universidade Federal do Ceará). À medida que o rigor do seu trabalho e o ineditismo de suas pesquisas – particularmente seus estudos sobre o pensamento italiano – ganharam reconhecimento, teve participação ativa em eventos, bancas, e orientações em outros departamentos de Filosofia do país.   

Poucos sabiam – pois sua vivacidade epistêmica estava acompanhada de alguma formalidade quanto às questões mais pessoais – que seu primeiro emprego foi de carteiro. Lembro das risadas que demos juntos quando ele descobriu que uma nova orientanda (Liliane Severiano Silva, também de saudosa memória) morava na última rua do bairro das entregas postais das sextas-feiras. Nossos risos foram acompanhados das suas memórias e de uma pertinente, porém engraçada, colocação: “Liliane, a rua da casa de seus pais era a última do bairro (...), dava uma tristeza quando lembrava que ainda faltava aquela rua, no meio do sol quente, ainda ter que ir lá na Argonautas (...)”. Mais risos e pilhérias sobre aquele bairro de Fortaleza que, para aumentar o efeito das nossas risadas, tinha por última rua a Argonautas. Desde aquele dia, dizíamos que tal via era a rua das suas epopeias postais. Para fechar o ciclo de risadas, Liliane arrematava: “Ninguém merece, né Expedito (...)”.

E foi sob esse efeito da alegria que Expedito se fez determinante na minha formação e na minha trajetória enquanto estudante e, posteriormente, pesquisador e professor. Havia sempre o rigor de suas leituras e intepretações, mas havia também uma capacidade para o riso, a renovadora capacidade de rir de si mesmo, das situações inusitadas, quase sempre consequência dos giros da fortuna.

Em verdade, também uma capacidade para a graça que quase nunca vemos na Filosofia. Em uma outra ocasião, num intervalo de uma reunião de orientação de minha monografia de graduação, nos perguntamos juntos: “Do que riem os filósofos?” Depois de alguns goles de café, concluímos: “melhor seria perguntarmos: por que quase nunca riem os filósofos?” Tais reflexões, claro, eram feitas coerentemente entre risos! Muitas vezes confundimos o rigor dos conceitos com uma tristeza epistêmica, quase taciturna, herança contagiosa de uma Filosofia feita longe dos trópicos. Das muitas coisas que apreendi com ele, uma foi esta: há um rigor conceitual não sisudo, que ri das dificuldades que a vida do pensamento nos oferece. Rir destas dificuldades, não para diminuí-las, mas sim para melhor atravessá-las.

Por isso, talvez aqui o leitor esteja estranhando esta nota de falecimento saudosista, porém não triste. Não poderia escrever esta nota sem me reportar a este aspecto risonho que é agora uma perene memória feliz, felizmente agradecida. Seria trair a memória de alguém que, depois de professor marcante em minha vida de estudos, se tornou um amigo dos mais queridos. Não haveria de escrever esta nota com a tristeza que lhe era avessa. De fato, não é fácil rir nas pelejas conceituais, nas contendas das correntes teóricas, porém Expedito nunca perdeu este traço vivaz singular. Filosofar com ele era encontrar sempre alguma graça, algum motivo alegre.

Assim, no meio daquela sessão de risos sobre as suas peripécias postais, Expedito nos contou de como sua primeira experiência profissional lhe fora determinante nas suas iniciais escolhas de estudos filosóficos: Pensamento Social e Filosofia Política. E de como a cidade lhe aparecera como experiência do pensamento, como vibrante materialização dos vínculos sociais. Talvez, por isso, ele afirmasse: “me toca muito o texto de Lefebvre ‘O Direito à Cidade”’. Também, por isso, ele conseguia extrair Filosofia da literatura das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. Naquele dia, começou a fazer sentido para mim um refrão formativo que ele sempre expunha aos estudantes, em um tipo de chamada de atenção para que não deixássemos nosso percurso intelectual ao vento das exterioridades, para que não ficássemos alheios a nós mesmos, para que tivéssemos como que uma “mente heroica”: “A Filosofia não é mero exercício profissional, ela é uma experiência de sentido de vida. Porém, não idiossincrática. Por isso mesmo, não leiam apenas os Filósofos, vão em busca de Filosofia na tradição dos pensadores, mas também fora dela”. Era como se nos dissesse: andem por todas as ruas, becos e vielas que possam propiciar a experiência do pensar...

Isso marca fortemente sua jornada filosófica do começou ao fim, bem como as escolhas que se seguiram na sua vida intelectual. Gramsci foi o autor de sua monografia de graduação, na extinta Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR), instituição da qual saíram outros professores do Departamento de Filosofia da UECE. A diversa obra de Pier Paolo Pasolini foi um eixo de sua atenção de estudos, desde os cursos feitos na Casa de Cultura Italiana da UFC; estes, iniciados antes mesmo de sua entrada na graduação em Filosofia. O literato e cineasta italiano foi o alvo de seus estudos de mestrado, realizado no Departamento de Filosofia da UFMG. No doutorado, feito no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC de São Paulo, se debruçou detalhadamente sobre o pensamento de Giambattista Vico. Deste singular pensador italiano, Expedito conseguira divisar, a partir do ineditismo de sua interpretação da Ciência Nova, os becos ínvios que a razão moderna já havia traçado desde sua gênese. Sua tese de doutorado, publicada em formato de livro, no ano de 2012, é um texto potente quer pela erudição, quer pelo rigor conceitual.

Não são poucos os que tiveram sua trajetória intelectual, diretamente ou indiretamente, em constante diálogo com ele. Destes, muitos são hoje professores em diferentes instituições. Ciente do papel formativo do magistério, e de que não é vã nenhuma relação cuja finalidade seja o saber, seus diálogos formativos se alongavam para além do círculo de seus orientandos, ou daqueles que aparentemente tinham maior afinidade de pesquisa com ele. De fato, quando entrávamos nas vias filosóficas que ele nos ajudava a descortinar, não havia estreitezas.      

Tal capacidade de apontar caminhos, criando pontes dialógicas, é o que hoje denomino de solidariedade epistêmica. Algo que só pude pensar a partir de seu fazer filosófico. Solidariedade no sentido forte do termo, do professor que nunca se limitou ao simples repasse dos conteúdos. Companheiro nos momentos mais tensos, partidário das nossas melhores alegrias.

Sempre que, prestes a voltar a Fortaleza, de férias, o avisava: “escuta, semana que vem eu tô chegando à taba de Iracema, vamos se vê (...)”, ele, na mais pura verve cearense, respondia: “pois chegue logo, porque Iracema já correu pra bica do Ipu, e se tu demorar demais, capaz de nem eu estar mais por aqui também (...)”. Risos que se seguiam de abraços.

Abraços que não poderão ser mais dados no amigo, no professor em quem me inspirei e que me apontou caminhos formativos. Risos cúmplices que não daremos mais. Longas conversas, que não teremos mais, sobre os caminhos filosóficos ainda não trilhados. Contudo, estas constatações não podem ser seguidas de pesar, mas da alegria que foi pensar com você, Expedito! Alegria do pensamento acompanhado, por que não se pode dizer que partiu, que se perde, aquele que conseguiu afetivamente se alojar no interior dos nossos pensamentos mais calorosos, das nossas reflexões mais vivazes. 

DO MESMO AUTOR

Como escrevem e falam os filo-papers?

Fran de Oliveira Alavina

Professor da UFVJM (Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri)

13/09/2022 • Coluna ANPOF