Nota de repúdio do GT Filosofia e Gênero da Anpof
13/07/2022 • Notas e Comunicados
É o último estágio da barbárie em relação às mulheres que um médico anestesista se aproveite do fato de sua paciente estar desacordada para abusar de seu corpo. Foi o que fez o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, de 31 anos, que teve sua prisão convertida de flagrante para preventiva, depois de ser preso pelo estupro de uma mulher na hora do parto. A Delegacia de Atendimento à Mulher investiga se há pelo menos mais cinco vítimas no mesmo hospital. Um grupo de funcionárias do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense, desconfiou do comportamento do médico e decidiu gravar em vídeo a terceira cesárea para qual o anestesista Giovanni estava escalado, depois de notar um comportamento estranho dele nas duas cirurgias anteriores. Tratadas como objetos, vulneráveis por estarem inconscientes, as parturientes que faziam cesariana entregavam suas vidas a um homem que, para aproveitar-se delas, arriscava inclusive suas vidas com altas doses de anestesia. É repugnante o fato de que esse estuprador tenha se sentido à vontade para praticar seus crimes, mesmo estando dentro de um hospital. Impressiona sobremaneira o fato de que as instituições e a própria sociedade se mostrem na maioria das vezes coniventes com esse tipo de violação ao corpo feminino. A reação das enfermeiras é por isso ainda mais notável, e significativa. Precisamos agir coletivamente, e umas juntamente com e pelas outras.
O caso não é de um indivíduo isolado, louco ou perverso. Há uma verdadeira e repugnante cultura de estupro nesse país e um presidente que alimenta essa cultura. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 10 minutos uma mulher é estuprada, conforme consta em boletins de ocorrência, em dados extremamente subestimados. De acordo com o Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, estima-se que o medo do estupro é um receio compartilhado por 95% das brasileiras. A misoginia da sociedade brasileira é insuportável e sem constrangimento.
Os piores exemplos de misoginia estão no governo federal. O atual presidente ameaçou uma deputada de estupro e incita violências de toda ordem, já tendo sido réu perante o STF (Supremo Tribunal Federal) por apologia ao estupro. As ações penais foram suspensas depois de ele ter se tornado Presidente da República. Ademais, o chefe do Executivo, em seu constante ataque às universidades e à ciência, associou o médico estuprador ao que chama de “ideologia universitária”, ou seja, a universidade como local de formação de militantes de esquerda capazes deste tipo de abuso. Justo ao contrário, o que os coletivos de mulheres nas universidades têm lutado, tanto docentes quanto discentes, é contra qualquer tipo de violência sexual em relação a nós no ambiente universitário. É no campus a nossa primeira batalha. É absurdo, portanto, pretender associar a esquerda à emulação de perversidades como a do estupro, quando, na realidade, são inúmeros os políticos da corrente oposta que constantemente amenizam e/ou estimulam toda sorte de violência contra as mulheres.
São muitas as violências sofridas diariamente pelas mulheres. Há poucas semanas, o judiciário protagonizou mais um episódio desta cultura do estupro a que nos referimos: uma menina de 10 anos, cuja gestação era resultado de um estupro, teve o seu direito ao aborto negado pela juíza Joana Ribeiro, que num claro gesto de abuso de poder, convocou a menina a colocar sua vida em risco, levando a gestação a termo, para que o feto viesse a se tornar viável. Na semana passada, uma jovem foi estuprada no campus da Unb. São apenas exemplos de que não é possível habitar um corpo feminino em segurança neste país.
Nós, como mulheres filósofas e intelectuais, acreditamos ter o compromisso público de denunciar permanentemente todas as formas de violência contra as mulheres. Assim, o Grupo de Trabalho Filosofia e Gênero da Anpof vem a público repudiar essa cultura de estupro e conclamar a união da sociedade contra todas as violências que as mulheres brasileiras vêm sofredo diariamente. Manifestamos ainda nossa solidariedade e apoio ao Fórum Regional dos Direitos da Mulher da Baixada Fluminense em sua luta pela punição do médico, e pelo funcionamento humanizado do Hospital Heloneida Studart, inaugurado em 2010 em homenagem a uma parlamentar cuja vida política foi dedicada à defesa dos direitos das mulheres.
Tirem as mãos dos nossos corpos!