Giordano Bruno, 'philautia' e poder para criar e desfazer vínculos
Luiz Carlos Bombassaro
05/05/2020 • Avaliação Capes 2018
Instituição
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Giordano Bruno, philautia e poder para criar e desfazer vínculos
(versão preliminar)
O conceito de philautia (filautia) ocupa um lugar central no pensamento de Giordano Bruno. Associado ao significado primordial de “amor de si” ou “amor próprio” que lhe havia sido atribuído na ética das virtudes pela tradição da antiguidade clássica – em especial em Aristóteles, Epicuro e Sêneca –, esse conceito passa a constituir o núcleo básico em torno ao qual o filósofo de Nola esboça e elabora sua filosofia moral, exposta de modo brilhante e provocativo nos diálogos Spaccio della bestia trionfante e Eroici Furori, bem como no escrito latino De vinculis in genere. Na philautia bruniana concentra-se de maneira exemplar a tematização das teorias éticas renascentistas e suas posições nem sempre convergentes, que na esteira do pensamento clássico consideram o amor próprio ora um dos fundamentos da sociabilidade, ora um dos vícios mais deploráveis cultivados pelo homem.
As duas faces da filautia
Eros, filia, filautía e ágape são as formas do amor tematizadas pelo pensamento filosófico clássico. Muito já se falou sobre essas formas de amor. Mas há ainda muito a investigar sobre o conceito de filautia.
Um último amor conhecido pelos gregos era philautia, ou amor-próprio, que à primeira vista parece o oposto de ágape (amor que devia ser estendido desinteressadamente a todos os seres humanos). Os sábios gregos, no entanto, percebiam que ele se manifestava sob duas formas. Havia um tipo negativo de amor-próprio, um desejo ardente e egoísta de obter prazeres pessoais, dinheiro e honrarias públicas muito além da cota justa. Seus perigos foram revelados no mito de Narciso, o irresistível jovem que se apaixona pelo próprio reflexo num lago e, incapaz de se afastar, pereceu ali de inanição. A má reputação do amor-próprio persistiu no pensamento ocidental: no século XVI, o teólogo francês João Calvino descreveu-o como uma “peste”, ao passo que Freud o via como um redirecionamento patológico da nossa libido para nós mesmos, tornando-se incapaz de amar os outros.
Aristóteles havia reconhecido uma versão mais positiva do amor-próprio, que intensificava nossa capacidade de amor. “Todos os sentimentos amistosos pelos outros”, escreveu ele, “são extensões dos sentimentos de um homem por si mesmo.” A mensagem era que, quando gostamos de nós e nos sentimos seguros de nós mesmos, temos amor em abundância para dar. De maneira semelhante, se sabemos o que nos faz felizes, estaremos em melhores condições para estender essa felicidade aos que nos cercam. Se, por outro lado, estamos em desconforto com o que somos, ou alimentamos alguma aversão por nós mesmos, teremos pouco amor a oferecer aos outros. Ao que parece, deveríamos aprender a amar a nós mesmos de uma maneira que não se transforme num sentimento arrebatador de obsessão por nós. Isso significa, no mínimo, aceitar nossas imperfeições e reconhecer humildemente nossos talentos individuais, em vez de sempre olhar para nossos defeitos e inadequações.
O homem que ama (retamente) a si mesmo pode amar a todos os outros, pois deseja prosperar no convívio com eles e não fechado em si mesmo (egoísmo) dada sua natureza social.
Agostinho
Exímio investigador a origem do mal e das misérias humanas, após descrever o caráter nefasto do orgulho, da vanglória e da soberba, Agostinho dedica-se a deslindar outra tentação: o amor-próprio. (Confissões, X, 60)
39 O amor-próprio
- Existe dentro, bem dentro de nós, outro mal, oriundo do mesmo gênero de tentação, que faz vãos todos os que se comprazem em si, ainda quando não agradam aos outros — e até lhes desagradam —, ou mesmo quando nem sequer procuram agradar-lhes. Ora, os que assim se comprazem em si mesmos desagradam-Vos muito, ó meu Deus, não só quando se gloriam dos males como se fossem bens, mas sobretudo quando se gloriam dos vossos bens como se fossem seus; ou quando, reconhecendo-os como provenientes de Vós, os atribuem aos próprios méritos; ou enfim quando, atribuindo-os à vossa graça, não se alegram amigavelmente de que outros também os possuam, tendo-lhes ainda por isso mesmo inveja. Em todos estes perigos e trabalhos Vós vedes claramente quanto teme o meu coração. Eu sinto que, no entanto, sois mais diligente em me curar do que eu em me não infligir novas feridas. (508 Sl 140,5. 509 Os filósofos antigos Antístenes e Diógenes vangloriavam-se de desprezar a vangloria! (N. do T.) (AGOSTINHO, S. Confissões. 2. ed., Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, São Paulo: Abril Cultural, 1980.)
Emblemática
Em seu livro Emblematum libellus (1531), Emblemas (1531), Andrea Alciato apresenta os vícios e virtudes tipificados pela tradição medieval, servindo-se de uma linguagem própria do humanismo renascentista. Exemplo disso é o tratamento que ele dá ao tema da soberba, que aparece explicitamente em cinco emblemas (LXVII-LXXI, 67-71): svperbia (soberba), impudentia (falta de pudor), filautía (amor a si mesmo), garrvlitas (charlatanice), invidia (inveja). Especificamente o emblema 79, a filautía aparece numa gravura que representa a cena mítica de Narciso, que ao ver seu belo rosto refletido na fonte em que bebia, acreditou ser uma ninfa, e enamorou-se por si mesmo e ali permaneceu a contemplar a própria imagem até ver-se transformado numa flor. O episódio narrado por Ovídio em suas Metamorfoses (III, 339) serve de mote à Alciato para destacar na interpretação moral do emblema uma referência àqueles que abandonavam as leis antigas para buscar novas doutrinas.
Sobre os vínculos em geral
Vínculos são forças que ligam todo o universo... “o vínculo é aquilo pelo qual as coisas querem estar onde estão e não perder aquilo que têm, enquanto também querem estar em toda parte e ter aquilo que não têm. E isso vem de certa complacência para com aquilo que já possuem, e de um desejo e apetite para com o que é distante e pelo que poderiam possuir, e de um amor para com todas as coisas – porque por um bem particular e finito, e verdadeiro, não se satisfaz um apetite ou intelecto particulares, que olham para seus objetos mirando um bem universal e o verdadeiro universal”. (XIII)
No artigo XIII, de seu livreto sobre os vínculos, Bruno refere-se a filautia como o fundamento da possibilidade de formar vínculos. “A primeira razão pela qual toda e qualquer coisa pode ser ligada por um vínculo advém, em parte, do fato de que há nela o apetite de conservar para si sua situação presente, e, em parte, do fato de que há nela o apetite de se realizar completamente, segundo ela mesma e nela mesma. Nisso consiste a filautia ou o amor de si, em geral. Logo, se alguém pudesse extinguir a filautia em um sujeito, torná-lo-ia particularmente poderoso para atar e desatar, não importaria como. Por outro lado, quando a filautia está presente, todas as coisas se conectam mais facilmente, em virtude dos gêneros de vínculos que lhes são naturais”.
“Aquilo que nos ata ao amor e ao ódio ou ao despeito está oculto para além do alcance da razão”. (XXIII)
“Para nós, em verdade, o amor, bem como qualquer outro sentimento, é um conhecimento muito prático; e mais, o são também o discurso, o raciocínio e a argumentação pelos quais os homens, sobretudo, se deixam vincular, e que não contam de maneira nenhuma entre as formas primárias de conhecimento. Em conclusão: que aquele que quer ter um vínculo creia que a razão não tem um papel nem maior nem mais importante para fazer o elo; tem-no, entretanto, o conhecimento segundo o gênero”. (XXV)
De acordo com Giordano Bruno, faz-se necessário distinguir entre esse semper e esse semper hoc quod est agora, neste momento. Ambos os desejos são naturais e configuram na verdade um único desejo: ser sempre. O desejo de prolongar infinitamente a vida presente em sua atual individualidade é o que Bruno chama de philautia, o amor de si, que o Nolano estuda nas obras mágicas como instrumento utilíssimo para que o mago possa vincular a si outros seres humanos:
“A primeira razão pela qual toda realidade é suscetível de vínculo deriva em parte do fato de que essa deseja conservar-se na condição que possui no presente, e em parte do fato que essa deseja ser conduzida à perfeição segundo tal condição e no interior dela. Nisso consiste, em sentido geral, a filautia, ou seja o amor de si”. A razão é que “todas as coisas desejam manter-se no seu estado presente, porque não compreendem ou permanecem em dúvida diante ao ser de uma condição diversa ou nova; assim, existe uma espécie de vinculo geral do amor, reciprocamente da alma em relação ao corpo e- ao seu modo – do próprio corpo em relação à alma. (De magia natural, 48). Esse desejo de permanência indefinida do ser presente, porém, não é realizável e embora fundado na natureza dos entes particulares e num nível limitado e particular de conhecimento (que nada mais é do que ignorância em relação à totalidade), é contrário à natureza universal.