As críticas às bolsas PQ como sintoma de um mal-estar mais amplo: por posturas acadêmicas transparentes, escrupulosas e respeitosas

Murilo Mariano Vilaça

19/07/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

Murilo Mariano Vilaça

 

Com muito interesse, tenho acompanhado o debate sobre a Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) promovido no Fórum de Debates da ANPOF. Há muito, aliás, o tema da política científica nacional me interessa. Um dos meus doutorados foi sobre este tema[1], tendo gerado, além da tese, algumas publicações em periódicos[2],[3],[4],[5],[6],[7].

Dividirei minha contribuição em duas partes: (1) uma breve reflexão sobre o que chamarei de propostas de reforma do sistema de excelência; e (2) um relato de caso sobre o processo seletivo de 2022, por meio do qual viso a ilustrar alguns problemas que se aplicam ao caso em tela, mas ultrapassam o escopo da querela em torno da bolsa PQ.

De saída, afirmo que concordo com a crítica à predileção (no limite, à exclusividade) devotada a certos pensadores, temas e correntes filosóficas, associada ao bloqueio arbitrário praticado sobre/contra pensadores/temas/correntes filosóficas ‘marginais’ ou, mais propriamente, marginalizados historicamente[8]. Parecem-me plausíveis, também, as alegações de que a comunidade filosófica brasileira teria contornos conservadores[9],[10], visando, sobretudo, à conservação do poder exercido por ‘alguns’ que avocam a autoridade para definir o que é ou não filosofia, quem pode ou não fazer filosofia, quem merece ou não ser financiado, etc.

Embora concorde com essa linha de pensamento, que está predominando no Fórum, identifico dois pontos sobre os quais caberiam algumas ponderações. Primeiramente, sem desconsiderar os problemas estruturais da sociedade brasileira (as desigualdades e suas consequências), parece-me problemática a oneração do conceito de excelência acadêmica com fatores extra-acadêmicos. Por exemplo, do fato de muitas pessoas não terem tido acesso às condições para, por exemplo, aprender um segundo idioma ou não terem que sustentar a família, podendo se dedicar à pós-graduação, não decorre, a meu ver, que esses importantes fatores socioeconômicos tenham que ser incorporados à discussão sobre excelência acadêmica. Tais fatores, ainda no meu entendimento, seriam mais bem alocados num debate sobre justiça social, e não sobre excelência acadêmica. Do ponto de vista estritamente acadêmico, saber um segundo idioma (especialmente, o inglês) e não ter que sustentar uma família, podem, sim, contribuir para que alguém possa desenvolver pesquisas de maior qualidade. Ou seja, não garantem, mas não atrapalham. Se quisermos, podemos pensar numa espécie de ‘sistema de cotas’ para a bolsa PQ, a fim de que as pessoas concorram com outras que tenham tido acesso às condições sociais de formação mais semelhantes possíveis, promovendo a equidade de oportunidades de concorrência, ampliando a diversidade de acesso a uma política pública de financiamento de pesquisa. Socialmente falando, essa alternativa pode ser mais justa. Mas, em termos estritamente acadêmicos, não me parece ter a ver com excelência. Notem, por favor, que não estou, nem implicitamente, sugerindo que tais fatores não interfeririam nas chances de que alguém desenvolva uma excelência acadêmica. Tampouco, que determinariam, por si sós, o que é uma pesquisa ‘de excelência’. Estou apenas problematizando a inclusão desse tipo de fator social na discussão sobre o que é excelência acadêmica. É preciso combater os privilégios sociais, simbólicos e materiais, sem que isso implique, necessariamente, uma revisão dos critérios de excelência acadêmica. Talvez, devamos defender que todos tenham acesso às condições sociais para alcançar a excelência acadêmica, qualquer que seja(m) a(s) acepção(ões) adotada(s).

Em segundo lugar, identifico uma lacuna, a saber, sobre a definição de quais deveriam ser os critérios de excelência. Embora, em vários textos publicados no Fórum, os critérios em vigor sejam um dos principais alvos de crítica, não consegui identificar uma proposta, ainda que minimamente esboçada, de alternativa. Desculpem-me se algo tiver passado despercebido. Mas, se eu estiver correto, essa lacuna precisa ser preenchida, se quisermos avançar no debate, sob pena de que esse debate não passe de mais um daqueles efêmeros momentos de efervescência ‘crítica’ ou de ‘catarse coletiva’, em que grupos ‘puxam a brasa para sua sardinha’. Minha preocupação não se refere ao presente movimento de contestação, o qual, espero firmemente, terá importantes efeitos práticos.

Feitas essas observações, passo a analisar – contando com a compreensão por ultrapassar o número de caracteres sugerido – o que chamo de reforma do sistema de excelência.

De acordo com a Chamada CNPq Nº 09/2023 – Bolsas de Produtividade em Pesquisa e Bolsas de Produtividade em Pesquisa Sênior, os objetivos são:

 

a)     valorizar pesquisadores que possuam produção científica, tecnológica e de inovação de destaque em suas respectivas áreas do conhecimento;

 

b)     incentivar o aumento da produção científica, tecnológica e de inovação de qualidade;

 

c)     selecionar projetos de pesquisa que sejam propostos considerando o rigor e o método científico, bem como outros conceitos fundamentais para a produção do conhecimento científico.

 

Não parece haver margem para dúvidas sobre a lógica dessa modalidade de bolsa, que é parte de uma política científica mais ampla, caracterizada pela competição entre os pares. Assim, sejamos francos: queremos nos posicionar radicalmente contra os critérios de excelência adotados; visamos à distribuição equânime dos recursos públicos, à promoção das diversidades/pluralidades/inclusão, à não hierarquização das pessoas no meio ambiente acadêmico; ou, mais propriamente, queremos ‘nosso espaço’ nesse sistema, a fim de poder, também, desfrutar dos seus múltiplos benefícios (poder, dinheiro, oportunidades, reconhecimento, ‘fama’, etc.), que sabidamente não poderão ser desfrutados por todas as pessoas igualmente?

No debate em curso no Fórum, o texto de Pinzani[11] se destaca por conter, a meu juízo, uma reflexão que identifica mais precisamente os problemas e oferece uma proposta de reforma do sistema de excelência mais viável, no que concerne ao caso da bolsa PQ. ‘Desde dentro do sistema’, ele dá preciosas pistas do que está, de fato, em jogo, para além de legítimas e complexas elocubrações teórico-histórico-filosóficas.

De saída, destaco uma afirmação que deveria constranger a todos. Nas palavras de Pinzani, sua proposta de reforma “representaria, de fato, uma forma de incentivar a pesquisa, pois obrigaria as e os bolsistas a utilizarem o auxílio exclusivamente para fins científicos”. Se as bolsas PQ, atualmente, não incentivam a pesquisa e os bolsistas a utilizam para fins diversos dos estritamente acadêmicos, há algo muito problemático acontecendo. Não tenho como afiançar o que me parece estar, ao menos, implícito na afirmação. Consultando a chamada supracitada, há um item/artigo específico sobre “Prestação de Contas/Avaliação Final” (12). Na prática, contudo, não sei como se dá o controle do uso dos recursos. Mas, talvez, antes da pluralização do conceito de excelência e da ampliação do acesso, tenhamos que lutar pela criação ou aperfeiçoamento do monitoramento/fiscalização do uso dos recursos públicos, bem como da identificação dos benefícios não individuais dessa política de fomento, ou seja, para a Academia, ciência e, no limite, sociedade brasileiras.

Em segundo plano, destaco a controvérsia – até, agora, insolúvel – em torno dos critérios de aferição da excelência. Falo sobre isso com algum conhecimento de causa, pois um dos focos das pesquisas que mencionei no início do texto foi o que se convencionou denominar – muitas das vezes, sem nenhuma clareza conceitual ou base evidencial – de produtivismo, problema que decorreria do modelo Qualistativo (neologismo que alude ao Qualis Periódicos, da CAPES) de aferição da ‘qualidade’. Pinzani cita alguns exemplos de questionamentos, indicando que não há consenso intersubjetivo sobre os critérios de qualidade. Isso, segundo ele, faz com que se recorra ao critério que é minimamente objetivo: a quantidade, que é associada aos critérios de Qualisdade em vigor (por exemplo, a estratificação dos periódicos): “‘Ah, mas eu publiquei mais artigos do que Fulano, que, porém, levou a bolsa!’ ou ‘Não entendo por que Sicrana ganhou bolsa 1 e eu, que publiquei mais artigos Qualis A do que ela, fiquei com bolsa 2’”. Embora contestemos os critérios qualitativos e a recurso à quantidade, não sei se temos muita saída, conforme um trecho do texto de Campello[12] parece sugerir: “dados especificamente concernentes à produção também seriam oportunos. Distorções nesses casos são conhecidas, onde se constata bolsistas sobretudo de nível 1 com produção tímida nos últimos 5 ou 10 anos”.

Infelizmente, não poderei me estender aqui. Assim, farei apenas alguns questionamentos, com objetivo mediato de estimular que nos envolvamos no importante debate sobre como avaliar não só os PPGs, mas o que temos, enquanto pessoas que pesquisam, produzido/publicado. As questões formuladas decorreriam de dois postulados correlacionados, a saber, que os critérios de qualidade atuais são inadequados e que a quantidade não deve ser um critério adotado. Assim, pergunto: o que deve ser quantitativa e qualitativamente considerado nos processos de avaliação, que são concorrenciais? Se abrirmos mão do sistema Qualis, como e quem avaliará aquilo que é produzido? Com base em quais critérios supostamente melhores do que os atuais isso será feito? O que fazer num cenário em que há pessoas que têm produtividade (somando artigos, capítulos de livro, livros ou trabalhos apresentados em eventos) <1/ano e pessoas que publicam >15 artigos/ano, muitos deles nas mesmas revistas, as quais não têm enquadramento no Qualis ou estão nos estratos B5 ou C, das quais a pessoa é parte do conselho editorial? Seria justo desconsiderar ou subvalorizar o fato de uma pessoa publicar bastante (artigos, por exemplo), em meios variados e academicamente reconhecidos (em periódicos de estratos superiores, A1 e A2, por exemplo), sobre os quais não exerce qualquer influência? Se ‘libertarmos os acadêmicos da ditadura do Qualisficação’, quem lerá cada texto produzido e emitirá o ‘veredito acadêmico final’ de que tal publicação é de ‘qualidade’? Se, como afirma Pinzani, a comparação qualitativa entre projetos de pesquisa, currículos, etc. for inviável, há saída para a comparação quantitativa, admitindo que o sorteio não seria uma boa opção para selecionar que propostas serão financiadas? Além de sermos capazes de identificar os problemas, somos capazes de apresentar as possíveis soluções para eles, sugerindo algo melhor do que há atualmente?

Antes a alguns impasses, que podem ser insolúveis numa sociedade que não seja radicalmente igualitária, na minha interpretação, Pinzani aponta para uma saída prática viável, com potencial de contornar pelo menos um dos problemas do sistema de excelência, a saber, a diferença do aporte de recursos via Categorias (1 ou 2) e Níveis (1a, B, C e D), que é ‘definida’, na área[13], de modo bastante vago.

Por exemplo: “As categorias 1A e 1B classificam a pesquisadora ou o pesquisador que [...] realize plena e equilibradamente as atividades de ensino e pesquisa, bem como os requisitos de liderança intelectual, presença institucional e inserção nacional / internacional” (p. 183). Como se afere objetivamente o que é “plena e equilibradamente” em atividades tão diferentes? Plenamente seria, ao mesmo tempo, publicar artigo, capítulo de livro, livro, apresentar comunicação oral em evento, ministrar disciplina, orientar dissertações e teses? Equilibradamente seria para cada artigo/capítulo de livro/livro, uma disciplina e uma orientação? Enfim, acho que seria um desafio encontrar quem sabia como responder objetivamente a essas perguntas.

Outro exemplo (agora, sobre a Categoria 2): “Ter evidenciado ampla e profunda competência nas suas áreas de especialização, ter evidenciado a capacidade de fazer pesquisa de alta qualidade e ter mostrado continuidade em sua pesquisa” (p. 183). É estranho ler a palavra “evidenciado”, pois, nós, da filosofia, não costumamos lidar muito bem com as evidências. Mas, já que ela foi utilizada, parece-me plausível perguntar: que evidências indicam objetivamente uma “ampla e profunda competência” e a “capacidade de fazer pesquisa de alta qualidade”? Como se afere, no plano evidencial, a “continuidade em sua pesquisa”? É um artigo, uma comunicação oral, um capítulo de livro, um livro, uma orientação de mestrado, uma de doutorado por ano? Mais de um/uma? Isso sem falar na estranha lógica de estratificação das Categorias com base no tempo de conclusão do doutorado, o que pré-determina os respectivos valores a serem concedidos.

A saída proposta por Pinzani passa ao largo de uma disputa em torno do conceito de excelência, até porque a margem para algum consenso possível em torno dos critérios para aferi-la (se existir) para ser mínima. Ele também não aposta numa espécie de ‘reforma pluralista e inclusivista’ de uma política que impõe a adoção de critérios de comparação e hierarquização. Ainda que defendamos a criação de uma ‘política de cotas’ ou de um modelo de avaliação descentralizado (subdividido por região geográfica, raça/etnia, gênero, etc.), persistirá a necessidade de critérios de excelência, a não ser que optemos por algo ainda pior do que o que temos hoje (sorteio, por exemplo). O que Pinzani propõe, no meu modo de compreendê-la, é que acabemos com a discrepância desrazoável dos valores concedidos às propostas, o que mitigará a hierarquização entre as pessoas (pois ainda haverá ‘bolsistas PQ’ e ‘não bolsistas PQ), reduzirá a fetichização em torno das bolsas PQ e ampliará, e muito, o número de pessoas contempladas.

Caminhando para o final da primeira parte do meu comentário, imagino que haja a possibilidade de um consenso razoável em torno de duas afirmações presentes no texto de Campello[14]: “Não se trata [...] de abdicar de critérios de julgamento sobre a qualidade da pesquisa. O ponto é que historicamente determinados projetos sequer puderam disputar esse espaço porque de antemão estavam vetados daquilo que seria reconhecido como excelência filosófica”. Um tema, recorte ou linha filosófica/epistêmica, tampouco sua raça/etnia, o gênero ou localização geográfica poderiam, a priori, impedir que uma pessoa disputasse os recursos de uma política pública. Mas parece semelhantemente absurdo igualar a todos, abrindo mão de critérios de julgamento sobre a qualidade da pesquisa passíveis de generalização.

Qualquer que seja a acepção de excelência – mais ou menos ampla/plural/diversa – tal modalidade de bolsa seguirá sendo um instrumento de exercício de poder por parte dos gestores, além de ser um objeto de desejo de alguns, que desfrutarão dela sempre como um bem posicional. Nesse sentido, ela faz parte de uma política científica nacional, que declaradamente adota uma lógica de indução do comportamento humano. Tanto as pessoas ‘contempladas’ quanto as ‘não contempladas’ são induzidas a assumir uma postura, quer para prosseguir entre as ‘de excelência’, quer para tentar ascender a essa condição ‘ilustre’. Podemos contemplar a maior pluralidade possível de temas, recortes epistêmicos, tipos de filosofias, raças/etnias, gêneros, localizações geográficas, etc. Mas os recursos continuarão sendo escassos e o desejo de possuí-los virtualmente ilimitado, de modo que a valorização/seleção excludente continuará sendo feita de alguma forma. Todas as pessoas terão que competir, até mesmo as que estudam temas que foram alçados à condição de filosoficamente relevantes somente após esse debate. Assim, o desejo de fazer parte desse ‘sistema (mais amplo) de excelência’ (o tal do ‘incentivo’) seguirá, na maior parte dos casos, sendo reprimido, causando sentimentos de injustiça mais ou menos fundamentados. Numa lógica competitiva, sempre haverá ‘perdedores’. Estes, por serem humanos, poderão ser acometidos por afetos variados, por vezes, bastante nocivos à saúde mental, à autoestima. Não me parece que alguma reforma da bolsa, via ampliação/pluralização/diversificação do que é excelência, resolverá o que está no cerne do problema. Para além da crítica a um sentido hegemônico de excelência e da defesa da reformulação dos critérios para aferi-la, talvez o nosso incômodo com a bolsa PQ seja um sintoma de problema maior e mais complexo: o modelo de política científica adotado no Brasil[15].

A partir de agora, passo à segunda parte da minha tentativa de contribuição. Esta será inspirada, tanto no que se refere à forma quanto ao conteúdo, em outra publicação feita no Fórum de Debates da ANPOF[16]. Não contestarei os critérios em vigor, embora os ache contestáveis. Não defenderei a promoção das diversidades/pluralidades, embora ache legítima. Em vez disso, focalizarei um problema que me parece anterior e que, se não for resolvido, pouco importarão as mudanças que forem realizadas nesses planos do conceito e dos critérios de excelência.

Para tanto, lançarei mão de um relato de caso, por meio do qual enfatizarei problemas mais prático-cotidianos do que propriamente filosófico-especulativos: os déficits de transparência, escrúpulo/respeito e, com isso, de confiança. Para retirar o tom muito personalista, utilizarei o artifício de um ‘exercício de imaginação’.

Imaginem um projeto submetido à chamada CNPq No 09/2022 – Bolsas de Produtividade em Pesquisa, cuja decisão (“Resultado da Avaliação”) foi a seguinte:

 

“Com base na avaliação global, em conformidade com os critérios da área para o triênio 2021-23, nos pareceres ad hoc e na avaliação comparativa com as outras propostas, o CA-FI recomenda a concessão da bolsa ao proponente [...]”.

 

Imaginem que os trechos abaixo tenham sido extraídos dos pareceres. Aproveito para fazer um convite, qual seja, inferir que nota seria plausivelmente atribuída a um projeto qualificado do modo infracitado (revelarei a nota à frente):

“(I) A produção do proponente é muito boa em qualidade e quantidade [...], representa uma contribuição relevante ao debate intelectual no Brasil sobre a temática [...]; (II) É um pesquisador jovem [...], mas seus trabalhos certamente ajudam a cristalizar melhor o debate ético-filosófico no Brasil em torno dos impactos das biotecnologias na vida social, ajudando a compor o cenário de problemas nelas envolvidas; (III) Nesse sentido, ele tem formado pesquisadores e publicado artigos sobre esses temas, com os objetivos de normatizar e qualificar o polêmico debate a favor e/ou contra o melhoramento humano [...]; (IV) [...] apesar de [...] jovem, apresentou uma proposta de pesquisa muito madura, com um projeto muito claramente delineado em seu objeto de pesquisa, na formulação do seu escopo, na delimitação de seus objetivos e hipóteses de trabalho; (V) E o projeto proposto é, sem dúvidas, pela qualidade, uma expressão do seu amadurecimento intelectual, a despeito da juventude de sua carreira acadêmica; (VI) É uma proposta bastante promissora em seus resultados teóricos e práticos, e muito interessante e atual naquilo que interessa filosoficamente sobre o impacto das biotecnologias no contexto da própria humanidade e, mais especialmente, no cenário filosófico e científico brasileiro; (VII) [...] pode contribuir para adensar mais essa oferta de formação de recursos humanos e em uma temática muito relevante em uma sociedade como a nossa [...]; (VIII) [...] é relevante, original e possibilitará impactos muito interessantes para o debate filosófico em torno do transumanismo, não só em termos de cenário intelectual brasileiro, mas internacional também; (IX) [...] adere também às áreas habilitadoras (importante diferencial da minha proposta, vez que atende ao Critério para Julgamento E); (X) Tem claro caráter inovador no contexto do debate intelectual internacional e mais ainda no debate brasileiro”.

 

Mas...imaginem que:

A proposta teve o mérito reconhecido, mas não alcançou classificação que permitisse o atendimento”.

 

 

Dando sequência ao exercício de imaginação, suponham que houvesse uma lacuna no currículo da pessoa-proponente:

 

“Seu currículo deixa a desejar no quesito formação de recursos humanos, pois não tem orientações (mestrado e doutorado) na área de filosofia propriamente dita, dado atuar prioritariamente em instituição focada na área de xxx”.

 

Agora, imaginem que a pessoa-proponente tenha apresentado um recurso com as seguintes alegações sobre a ‘lacuna curricular’ apontada:

 

Do Parecer de Recomendação, focalizo o quesito formação de recursos humanos. Na submissão, prevê-se a indicação de área correlata (indiquei a xxx), implicando reconhecimento da relevância da inserção de pesquisadores da filosofia em áreas temáticas de interface, que é propriamente o meu caso. Pesquiso temas interdisciplinares e pouco explorados no país, como apontado nos pareceres, e estou inserido no xxx, um dos poucos que oferecem formação em xxx e xxx. No Brasil, a xxx/xxx, que lidam com algumas das questões práticas mais relevantes, carecem de maior valorização e investimento justamente da parte de pesquisadores com formação filosófica. Isso faz com que egressos dos cursos de filosofia nos procurem para pesquisar temas filosoficamente tão relevantes, mas ainda pouco explorados nos PPGs da área. Além dessa forma, penso que contribuo para a formação de recursos humanos na área de outras formas. Publicação de artigos em reconhecidos periódicos da área, como apontado no parecer, bem como de capítulos de livro e [organização de] livro[s]; entrevistas com filósofos referências internacionais nos temas; coordenação de grupo certificado pelo CNPq (enquadrado na área Filosofia, incluindo renomados pesquisadores da área em nível nacional e internacional, com os quais colaboro sistematicamente); organização de cursos e eventos com o GTTJ/ANPOF; e organização de/participação em eventos nacionais e internacionais da área são também formas consagradas de formação de recursos humanos que tenho desenvolvido”.

 

Poderia, aqui, questionar, com o aporte da educação, o estrito (ou estreito) sentido de formação de recursos humanos adotado pelos ‘gestores’ da área da filosofia. Mas me aterei ao que me parece incontroverso. Pelo menos, espero que seja.

Imaginem, em penúltimo lugar, que o recurso tenha sido indeferido, com base na seguinte justificativa:

 

“Preliminarmente, a proposta não foi pré-selecionada nem recomendada para apoio. Com relação ao pedido de reconsideração, avalia-se que não foram apresentados elementos que alterem a avaliação inicial sobre a proposta”.

 

Notaram algo estranho, um ‘equívoco’? Sem eufemismos ou retórica: há uma inverdade, uma afirmação falsa na justificativa para o indeferimento do recurso.

 

Imaginem, agora, que a pessoa-proponente tenha notado e, com isso, tenha entrado em contato com a Coordenação do Programa de Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (COCHS), relatando o erro material, ou seja, um erro objetivo, não havendo margem para subjetividades: há uma afirmação falsa na justificativa para o indeferimento do recurso, isso é um fato.

 

Prezado(a),

entro em contato, a fim de receber informações sobre como/para quem devo
encaminhar uma Solicitação de Esclarecimentos sobre o Resultado Final do
edital CNPq Nº 09/2022 - Bolsas de Produtividade em Pesquisa - PQ.
Dois pontos motivam minha solicitação:


1 - O teor problematicamente genérico da justificativa do indeferimento do
recurso: o conteúdo é marcadamente inespecífico, de modo que o mesmo texto
poderia ser usado em resposta a qualquer recurso, o que torna o indeferimento – ele, sim, e não o recurso apresentado – carente de
fundamentação/argumentação.

2 – Há, salvo melhor juízo, um erro material na avaliação do recurso, uma vez que há uma afirmação que não corresponde à realidade numa das
justificativas apresentadas [...]”.

 

Como resposta, imaginem que a COCHS tenha reconhecido o erro, mas solenemente desconsiderado sua importância, e que, ao ser contestada novamente, tenha ‘orientado gentilmente’ a pessoa-proponente sobre como deveria proceder: se os ‘esclarecimentos’ (entre aspas, porque a COCHS não respondeu a nenhuma das duas questões) não tiverem sido satisfatórios, recorra à Lei de Acesso à Informação (LAI).

 

Por fim, imaginem que a pessoa-proponente tenha aceitado a sugestão da COCHS e tenha solicitado informações pelo site FALA.BR., conforme itens abaixo:

 

(1) A composição detalhada na nota atribuída à minha proposta, discriminada por “Critério para Julgamento” e considerando seus respectivos pesos, conforme item 7.1.1 da referida chamada, para que eu possa identificar em que aspectos curriculares preciso melhorar.

 

(2) A composição detalhada das notas atribuídas às propostas que foram contratadas (aprovadas/bolsas concedidas) pela Área de Filosofia e Teologia, discriminada por “Critério para Julgamento” e considerando seus respectivos pesos, conforme item 7.1.1 da referida chamada, para garantir o atendimento ao princípio da publicidade, fundamental para poder aferir o cumprimento dos outros princípios da administração pública.

 

(3) Qual o peso/importância da justificativa presente no “Parecer de Coordenação Geral Sobre Reconsideração”, emitido em 31/01/2023, em que é afirmado que “Preliminarmente, a proposta não foi pré-selecionada nem recomendada para apoio. A afirmação é falsa, fato reconhecido pela COCHS, mas baseia o indeferimento do recurso apresentado por mim. [...] Sabemos como informações falsas têm sido utilizadas para distorcer processos e alterar resultados. Assim, cumpre identificar a extensão do comprometimento da análise do recurso e, com isso, da decisão pelo seu indeferimento, pois esta foi baseada em algo inverídico, o que invalida seu caráter de fundamento, constituindo-se, porventura, um vício presente no processo recursal”.

 

Imaginem que, na resposta oficial (“NOTA TÉCNICA”), o ponto “2” tenha sido completamente desconsiderado. Destacando que a pessoa-proponente só teve acesso às notas via à LAI, e que parece quase óbvio que todos deveriam ter acesso às suas notas ‘automaticamente’, surge uma questão: como ultrapassar a opacidade de um processo de avaliação que, segundo os “Critérios Consolidados” do COSAE/FI – Filosofia e Teologia, é realizado de “forma comparativa” (p. 178), sem ter acesso às notas atribuídas às pessoas-proponentes às quais se é comparado/a?

 

Quanto ao ponto “3”, imaginem que a reposta tenha sido:

 

2. Quanto ao Parecer da Coordenação Geral, cujo texto alega que a proposta do pesquisador não foi pré-selecionada pela área técnica e recomendada pelo Comitê, trata-se de erro material na redação do parecer. A proposta foi, sim, pré-selecionada pela área técnica, bem como recomendada pelo Comitê, a despeito da avaliação negativa quanto à participação do pesquisador em Programas de Pós-graduação na área de Filosofia, como mencionado acima. O erro contido no parecer da Coordenação-Geral não influenciou na avaliação do recurso do candidato, sendo da Diretoria Científica do CNPq - e não da Coordenação-Geral - o Parecer decisivo para a contratação ou não de uma proposta”.

 

Ora, uma justificativa é fundamental para (desculpem-me pela redundância) justificar uma decisão. E a validade da justificativa passa necessariamente pela veracidade do seu conteúdo. Asseverar, sem qualquer constrangimento (daí, o termo escrúpulo), que a presença de uma afirmação falsa numa justificativa é irrelevante é absolutamente implausível: ou bem a afirmação falsa não justificaria nada, ou bem distorceria a decisão. Tal alegação nos obrigaria, então, a renomear as coisas: em vez “justificativa”, estaríamos diante de uma “desculpa” ou de um “engodo”, cuja função seria apenas, pro forma, ‘respaldar’ uma decisão que é injustificada. Ou seja, estaríamos diante simplesmente de um dispositivo ou subterfúgio discursivo que põe em exercício o poder conferido pela função exercida por algumas pessoas contra alguém que contesta algo que deveria ‘fazer gritar’ os nossos escrúpulos. Mas, sem demonstrar qualquer escrúpulo diante de um fato constrangedor, a inveracidade do motivo do indeferimento de um recurso foi reiteradamente desvalorizada, relegada a um plano inferior em relação aos caprichos travestidos de legalismo dos agentes públicos em função de gestão. Se a indignação ainda puder ser considerada um sentimento moral, acho justo que a pessoa-proponente ofendida a manifeste, sem receio de retaliações de qualquer ordem.

A nota atribuída ao projeto foi 8,3. Na “NOTA TÉCNICA”, não se explica o porquê da retirada de 1,7 ponto de um projeto qualificado daquela forma. Aliás, nenhuma nota foi explicada. Também não ficou claro se foi conferida alguma pontuação ao critério “E” da chamada (“Grau de aderência do projeto às Áreas: Estratégicas, Habilitadoras, de Produção, para Desenvolvimento Sustentável e para Qualidade de Vida), um diferencial do projeto, como um/a parecerista destacou. Em suma, ocorreu o que pesquisador experiente, PQ 1x, antecipou-me: “você tem razão e deve recorrer, mas não considerarão seus argumentos. É só pro forma mesmo. Nunca vi um recurso ser deferido. Resta a você tentar de novo no ano que vem. Eu mesmo tentei 5 vezes até ser contemplado”. Assim, um pesquisador/a se sente tratado como um/a aluno/a da educação básica que, infelizmente, está diante de um péssimo/a e autoritário/a professor/a: “Taí, a sua nota”.

Encerro esse texto, defendendo que:

- É preciso lutar contra qualquer forma de obscuridade e desmando nos processos acadêmicos, logo, lutar por transparência, até para que uma pessoa-proponente possa se aperfeiçoar, melhorar no que foi considerado insuficiente, além de poder fiscalizar o processo, ‘auditar’ seu resultado e se proteger de futuras arbitrariedades noutras solicitações de financiamento.

- É preciso lutar por formas moderadas e responsáveis de exercício dos poderes inerentes a uma função. Arbitrariedades, subterfúgios e cinismos são inaceitáveis.

- É preciso que todos respeitem as ‘regras do jogo’. Inverdades não fazem parte delas.

- E, por fim, é necessário que os processos sejam aperfeiçoados, tornando-se cada vez mais justos, inclusivos, plurais, criteriosos, o que implicará mudanças a serem debatidas ponderada e francamente.

 

Murilo Mariano Vilaça é Doutor em Filosofia (UFRJ: 2014) e em Educação (UERJ: 2023). Pesquisador Associado da Fundação Oswaldo Cruz. Coordenador do Grupo de Investigações Filosóficas sobre Transumanismo e Biomelhoramento Humano – GIFT-H+ (Fiocruz/CNPq). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ – JCNE). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – APQ – PRÓ-HUMANIDADES).

Membro da equipe do projeto ArqTech, do Instituto de Estudos Filosóficos, Universidade de Coimbra, Portugal.

Membro da equipe do projeto (PID2022-137953OB-I00) “INTELIGENCIA ARTIFICIAL Y AUTONOMIA HUMANA. HACIA UNA ETICA PARA LA PROTECCION Y MEJORA DE LA AUTONOMIA EN SISTEMAS RECOMENDADORES, ROBOTICA SOCIAL Y REALIDAD VIRTUAL – AutAI”, coordenado por Francisco Damian Lara Sánchez e Blanca María Rodríguez López (Universidad de Granada, Espanha). O projeto aprovado na “Convocatoria 2022 de Proyectos de Generación de Conocimiento” y “actuaciones para la formación de personal investigador predoctoral associadas”, en el marco del Plan Estatal de Investigación Científica, Técnica y de Innovación 2021-2023 – Agencia Estatal de Investigación (AEI), Ministerio de Ciencia e Innovación, Gobierno de España.

 

 

[1] Vilaça, Murilo M. Publicar ou perecer: uma análise crítico-normativa das características e dos efeitos dos modelos cientométrico e blibliométrico adotados no Brasil. 2013a. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/10366/1/Tese%20_Murilo%20Mariano%20Vilaca.pdf

[2] Vilaça, Murilo M.; Palma, Alexandre. Diálogo sobre cientometria, mal-estar na Academia e a polêmica do produtivismo. Revista Brasileira de Educação, v. 18, n. 53, p. 467-500, 2013b.

[3] Vilaça, Murilo M.; Pederneira, Isabella L. Assim é, se lhe parece: “em-cena-ação” científica num país fictício em tempos de publica ou perecer... mas bem que poderia ser no Brasil. Interface (Botucatu), v. 17, n. 44, p. 235-241, 2013c.

[4] Vilaça, Murilo M.; Palma, Alexandre. Comentários sobre avaliação, pressão por publicação, produtivismo acadêmico e ética científica. Cadernos de Pesquisa, v. 45, n. 158, p. 794-816, 2015a.

[5] Vilaça, Murilo M. Más condutas científicas: uma abordagem crítico-comparativa para in-formar uma reflexão sobre o tema. Revista Brasileira de Educação, v. 20, p. 245-269, 201b5.

[6] Vilaça, Murilo M.; Palma, Alexandre. Sobre coautoria, produtivismo e performatividade: um exercício crítico-hermenêutico. Educação e Filosofia, v. 30, n. 60, p. 917-949, 2016.

[7] Vilaça, Murilo M. A publicação como obsessão, a pressão como efeito e a integridade como discurso/desafio: uma análise crítico-provocativa da cientometria vigente. Motrivivência, v. 30, n. 54, p. 51-73, 2018.

[8] Diretoria da ANPOF 2023/2024. Pela ampliação da excelência: uma radiografia das bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq. Fórum de Debates da ANPOF – Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, 23 de junho de 2023. Disponível em: https://anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/-pela-ampliacao-da-excelencia-uma-radiografia-das-bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq.

[9] Teles, Edson. As políticas da filosofia. Fórum de Debates da ANPOF – Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, 12 de julho de 2023. Disponível em: https://anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/-as-politicas-da-filosofia.

[10] Costa, Solange A. C. Ao vencedor, as batatas! Fórum de Debates da ANPOF – Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, 13 de julho de 2023. Disponível em: https://www.anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/ao-vencedor-as-batatas.

[11] Pinzani, Alessandro. Contra o atual sistema de bolsas PQ. Fórum de Debates da ANPOF – Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, 12 de julho de 2023. Disponível em: https://anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/contra-o-atual-sistema-de-bolsas-pq.

[12] Campello, Felipe. Quem pode ser excelente? Fórum de Debates da ANPOF – Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq, 26 de junho de 2023. Disponível em: https://anpof.org.br/forum/bolsas-de-produtividade-em-pesquisa-do-cnpq/quem-pode-ser-excelente.

[13] CNPq. COSAE / FI – Filosofia e Teologia. Anexo I – Critérios definidos pelos Comitês de Assessoramento para avaliação e classificação das propostas; p. 178-202. Disponível em: http://memoria2.cnpq.br/web/guest/chamadas-publicas?p_p_id=resultadosportlet_WAR_resultadoscnpqportlet_INSTANCE_0ZaM&filtro=abertas&detalha=chamadaDivulgada&idDivulgacao=11445.

[14] Campello, op cit.

[15] Vilaça (2013a), op. cit.

 [16] Moreira, Viviane C. Critérios e transparência nas submissões de projetos às agências de fomento. Fórum de Debates da ANPOF – CNPq-Avaliações, 05 de maio de 2020. Disponível em: https://www.anpof.org.br/forum/cnpq-avaliacoes.