Cânone, herança historiográfica e exclusão

Rodrigo Marcos de Jesus

12/09/2021 • Cânone - uma proposta de debate

 

 

Rodrigo Marcos de Jesus

Filósofo e professor de filosofia da UFMT

rodrigomarcosdejesus@yahoo.com.br

 

Podemos ou não derrubar as estátuas dos filósofos. Mas não podemos ignorar as marcas de racismo, de sexismo e de eurocentrismo presentes em suas ideias e em suas obras. Isso não seria filosófica e cientificamente rigoroso e honesto. Nesse sentido, as observações de Érico Andrade no texto “Iremos derrubar as estátuas dos filósofos?” me parecem pertinentes e levantam problemas que a filosofia acadêmica brasileira precisa enfrentar. Quero contribuir nesse debate sobre o cânone a partir de uma outra perspectiva, destacando uma herança do ensino de filosofia na universidade, cujas repercussões no ensino básico são perceptíveis.

O ensino de filosofia carrega, a meu ver, uma herança pouco questionada: a herança historiográfica. Esta toca mais de perto o tema do cânone, compreendido como o elenco dos filósofos e dos textos considerados clássicos e que não poderiam faltar em nenhum curso de filosofia. Perguntas fundamentais sobre esse ponto são: Quem criou o cânone? Quando foi elaborado? Quais critérios foram utilizados para estabelecer o que tem ou não relevância filosófica? Tais perguntas suscitam o problema da história da filosofia. Afinal, que história é essa que canoniza determinados indivíduos e obras? A menos que apelemos para a bizarrice de uma história sagrada da filosofia, escrita por sabe-se lá qual mão divina (ou quem sabe uma razão absoluta?), é necessário reconhecer que, como toda história, a história da filosofia está atravessada por condicionantes sociais, econômicos, políticos, raciais, de gênero e coloniais. Se assim é, deveria causar estranheza como a história da filosofia narrada por distintos autores e reproduzida em currículos, pesquisas, sistemas de avaliação, manuais e transmitida em aulas seja tão pouco variada. Ainda que historiadores ou filósofos adotem posições teóricas diversas, há lugares comuns e personagens que se repetem nessa história. Alguns exemplos de marcadores temporais: o começo da filosofia na Grécia e a contraposição entre pensamento conceitual ocidental e pensamento religioso/alegórico/mítico oriental, a filosofia medieval balizada pela patrística e a escolástica, a modernidade fundada pelo cogito cartesiano e elegendo o conhecimento como tema principal, a contemporaneidade contrapondo analíticos e continentais. Alguns exemplos de personagens canônicos: Platão e Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, Descartes e Locke, Kant e Hegel, Heidegger e Wittgenstein.

Essa breve relação de marcadores e filósofos aponta um outro aspecto: as fronteiras geográficas e epistêmicas da filosofia. O que é considerado filosoficamente relevante para entrar na história da filosofia fica circunscrito a determinadas e poucas regiões do mundo, em regra, no norte, do ponto de vista geopolítico. E os representantes da filosofia tida como mais elaborada apresentam basicamente uma cor (branca) e um sexo (masculino). Além disso, existem línguas curiosamente privilegiadas (o grego, o latim, o francês, o inglês e o alemão). Alguém poderia objetar que não é bem assim, pois Agostinho é do norte da África, o que é verdade. Mas esse dado não costuma ser digno de maior atenção ao se apresentar o filósofo.   

A herança historiográfica, que perpetua o cânone e erige as fronteiras da filosofia, não é algo tão longínquo no tempo. Pelo contrário, é bastante recente, tem pouco mais de dois séculos. A maneira de contar a história da filosofia de modo a excluir o Oriente, a África, a cultura árabe-muçulmana, línguas como o espanhol, o português ou outras línguas não ocidentais e que tornou a história da filosofia uma história fundamentalmente de homens brancos da Europa central e do norte (com seus descendentes nos EUA e Austrália) remonta ao final do século XVIII e começo do século XIX. Peter Park investiga como isso se deu em uma obra instigante e infelizmente pouco conhecida no Brasil, mesmo em círculos de pesquisadores e pesquisadoras que questionam o cânone, intitulada Africa, Asia, and the history of philosophy: racism in the formation of the philosophical canon, 1780–1830 (New York: SUNY Press, 2013). Park aponta como o idealismo e autores como Kant, Meiners (hoje um desconhecido mas à época importante historiador e antropólogo), Hegel e seus discípulos promoveram uma verdadeira mudança na maneira de escrever a história da filosofia excluindo povos não-brancos e elevando as construções teóricas de europeus (mas nem todos, portugueses, espanhóis ou eslavos mereciam pouco apreço)  como as únicas dignas de serem tomadas como filosóficas, sendo o critério para tal exclusão baseado em concepções antropológicas racistas. Assim, as categorizações raciais encontradas no filósofo de Königsberg, por exemplo, não podem ser tomadas como meros deslizes ou problemas conjunturais, mas revelam uma concepção antropológica que marca a estrutura de sua filosofia e repercutirá em historiadores kantianos responsáveis por promover a reescrita da história da filosofia. O resgate desse embate historiográfico expõe o racismo embutido na história da filosofia e as exclusões presentes no cânone. Situar quem, quando e os pretensos critérios utilizados na construção da narrativa histórica contribui para o necessário exercício de reflexão sobre a herança historiográfica da filosofia acadêmica. Estudos como o de Park somam-se aos trabalhos desenvolvidos pelas correntes pós-coloniais, decoloniais, de filosofias africanas, latino-americanas e feministas e nos obrigam a encarar com maior rigor como esse campo do conhecimento chamado filosofia se constituiu e se estrutura.

Enfim, é preciso investigar as heranças que formam isso a que se dá o nome de “filosofia”, desconfiar de uma história da filosofia que se pretenda imaculada e abandonar a compreensão ingênua que desconsidera as dimensões raciais, sexistas e eurocêntricas incrustadas no cânone.