O Ensino de Filosofia em números: a consolidação de um campo de conhecimento
Patrícia Velasco
11/10/2021 • Cânone - uma proposta de debate
Pensar o Ensino de Filosofia como um campo (ou subárea) de conhecimento permite algumas abordagens distintas (embora correlacionadas). Uma possível entrada para o tema diz respeito à discussão do estatuto epistemológico do campo em voga: quais as singularidades das pesquisas e demais ações realizadas em/sobre Ensino de Filosofia? Em que medida podem ser consideradas filosóficas? Quais os limites e as interfaces desta subárea com relação à Filosofia, à Educação e à subárea Filosofia da Educação? Alguns resultados neste sentido já foram debatidos (cf. Velasco, [no prelo]). Outra perspectiva para a discussão em pauta compreende problematizar a institucionalização da área, ou seja, pensar as razões pelas quais historicamente o Ensino de Filosofia não foi considerado subárea da Filosofia nas universidades e nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país, entender a constituição dos departamentos e dos programas de pós-graduação em Filosofia, assim como os espaços de luta concorrencial (Bourdieu, 1983) que envolvem essa problemática.
O enfoque considerado neste fórum não concerne aos supra referidos aspectos epistemológicos e político-institucionais do campo. Interessa ao presente texto uma ação pouco usual em Filosofia: a publicização de números (e iniciativas), oferecendo um breve mapeamento do que já há em termos de pesquisa em Ensino de Filosofia no Brasil. Um primeiro esforço de apresentação do estado da arte do campo de conhecimento ora tematizado foi divulgado no número inaugural da Revista Estudos de Filosofia e Ensino (cf. Velasco, 2019), periódico do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do CEFET-RJ. No texto em questão, foram citadas as coleções e as revistas que trazem de forma regular textos de Ensino de Filosofia, assim como foram indicados dossiês sobre a temática organizados por periódicos da área de Filosofia.
No supracitado artigo “Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: brevíssimo estado da arte”, foram igualmente destacados os eventos na interface entre Filosofia e Educação (assim como aqueles propriamente de Filosofia da Educação), os quais tradicionalmente acolhem trabalhos sobre Ensino de Filosofia. Indicaram-se, também, os encontros acadêmicos criados especificamente para discutir a temática – eventos em número significativo desde o ano 2000, data em que aconteceu o Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia. Exploraram-se, por fim, iniciativas fundamentais ao crescimento do campo Ensino de Filosofia (ou Filosofia do Ensino de Filosofia), tais como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), as Olimpíadas de Filosofia (cuja tradição brasileira data de 2008) e a aprovação de dois mestrados profissionais na área de Filosofia (o Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do CEFET-RJ e o Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), em rede nacional). Não obstante o reconhecido papel de cada ação mencionada para o fortalecimento da subárea aqui discutida, especial destaque foi dado à criação do Grupo de Trabalho (GT) da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar e às produções dele oriundas.
Em 2021, o GT da ANPOF que se dedica às pesquisas de pós-graduação em e sobre Ensino de Filosofia completa 15 anos de existência. Como parte das comemorações, foi publicado o livro Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018 (NEFI Edições). A obra, de 2020, investiga “o histórico do crescimento do GT, recuperando os eventos realizados, as publicações coletivas e documentando o acervo individual dos pesquisadores e pesquisadoras que [até 2018] compõem os núcleos de sustentação e apoio do GT” (VELASCO, 2020, p. 20). O referido acervo foi arquivado levando em conta duas décadas, 1997 a 2007 e 2008 a 2018. Tendo como marco divisor dos períodos a obrigatoriedade da Filosofia como disciplina escolar (cf. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008), foi possível averiguar o crescimento do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento.
Embora seja responsável por uma parcela pequena das produções na área (tendo em vista o número de pesquisadores e pesquisadoras que hoje se dedicam à temática), o GT reúne profissionais que sistematicamente vêm investigando o tema em programas de pós-graduação e, neste sentido, os números encontrados são significativos das pesquisas neste nível de ensino. A tabela abaixo indica as principais referências bibliográficas do GT, em números:
Artigos |
Livros |
Capítulos |
Trabalhos Completos |
TOTAL |
|
2008-2018 |
303 |
100 |
335 |
181 |
919 |
32,97% |
10,88% |
36,45% |
19,69% |
100% |
|
1997-2007 |
97 |
42 |
136 |
92 |
367 |
26,43% |
11,44% |
37,06% |
25,07% |
100% |
Fonte: VELASCO, 2020, p. 522.
Nota-se que os membros do GT publicaram, na última década estudada, 3,12 vezes mais artigos em periódicos; 2,38 vezes mais livros; 2,46 vezes mais capítulos de livros; 1,97 mais trabalhos completos em anais de eventos. Outrossim, coordenaram 2,74 vezes mais projetos de pesquisa em/sobre Ensino de Filosofia (96) do que na década de 1997 a 2007 (35). No livro do GT, consta igualmente que houve aumento similar no que tange aos projetos de extensão e de ensino, às demais produções contempladas na Plataforma Lattes (como prefácios, apresentações de livros, organização de dossiê etc.), assim como nas participações dos membros do GT em entrevistas, mesas redondas, programas e comentários na mídia. Sublinha-se, por fim, que na segunda década analisada as produções foram assinadas por um número muito maior de pesquisadoras e pesquisadores, de norte a sul do país, o que mostra a capilarização da temática em território nacional e “representa um significativo aspecto da efetiva solidificação da área de Ensino de Filosofia no Brasil” (VELASCO, 2020, p. 522).
Outros números de interesse para sustentar a consolidação da subárea pautada neste fórum dizem respeito às dissertações e teses defendidas. Até o fechamento deste texto, contabilizam-se na Plataforma Sucupira 38 dissertações defendidas no PPFEN e 209 no PROF-FILO, além de 18 realizadas em outros programas profissionais e que contemplam Ensino de Filosofia em seu escopo. A discussão do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento filosófico, todavia, passa pela defesa de que esta subárea não se encerra em sua dimensão profissional (cf. o já indicado Velasco [no prelo]). Prova disso é que, a despeito de não haver uma única linha de pesquisa nos programas de pós-graduação em Filosofia que contemple o Ensino de Filosofia em seu bojo (e desta subárea não constar nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país), desde 1989 até meados de 2021 foram defendidas 239 dissertações acadêmicas que versam sobre Ensino de Filosofia, assim distribuídas por Programas de Pós-Graduação em: Educação (216), Interdisciplinar/Ensino (12), Filosofia (3), Interdisciplinar/Relações Étnico-Raciais (2), Psicologia (1); Bioética (1), Processos Socioeducativos (1), Integrado em Desenvolvimento Regional (1), Ciências Humanas (1), Comunicação (1).
A primeira tese sobre Ensino de Filosofia, por sua vez, data de 1992 e desde então outras 52 foram somadas a esta pesquisa inaugural. Desses 53 trabalhos, 5 foram defendidos em Programas de Pós-Graduação em Filosofia e 48 em Programas de Pós-Graduação em Educação (embora orientados, em grande medida, por filósofas e filósofos de formação). A aludida capilarização das discussões sobre Ensino de Filosofia é notada no número de instituições em que as teses foram realizadas. Os Programas de Pós-Graduação (PPGs) de Filosofia são todos sediados em instituições públicas e se concentram nas regiões Sul (UFSC e UFSM) e Sudeste (UFRJ (2) e USP). As instituições de ensino superior às quais pertencem os PPGs de Educação em que as teses aqui enumeradas foram defendidas, por sua vez, apresentam maior diversidade regional (além das regiões Sul e Sudeste, inclui-se a região Nordeste) e orçamentária (além de instituições públicas federais e estatais, verificam-se instituições privadas, com e sem fins lucrativos): PUC-RJ (1), UERJ (3), UFBA (1), UFF (2), UFMG (3), UFPB (1), UFPE (1), UFPel (3), UFPI (1), UFPR (3), UFRN (1), UFRS (1),UFSCar (1), UFSM (2), UNESP (5), UNICAMP (9), UNINOVE (1), USF (1) e USP (4).
O crescimento e a capilarização das produções em Filosofia do Ensino de Filosofia permitem a identificação de um campo autônomo em que atuam os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e difundem o conhecimento filosófico-científico (BOURDIEU, 1983, p. 122) relativo ao ensinar e aprender Filosofia. Um campo que dispõe de capacidade técnica e visibilidade social, mas que não goza de legitimidade outorgada pela comunidade filosófica. Uma cidadania necessária para que pesquisadoras e pesquisadores da área tenham acesso tanto a bolsas de pesquisa e outros tipos de fomento quanto a uma situação mais justa nas avaliações de seus trabalhos pelos pares. Projetos de Lógica não são avaliados por especialistas em História da Filosofia, assim como artigos de Ética não são enviados a pareceristas da área de Epistemologia. Não raro, projetos e artigos de Ensino de Filosofia são recusados sob a alegação de não serem do escopo da Filosofia. Cabe perguntar: de qual Filosofia?
Neste sentido, fazendo coro às inquietações de Érico Andrade no texto que inaugura o fórum “Cânone - uma proposta de debate”, estendemos a pauta colocada pelo colega a respeito dos estudos pós-coloniais para a temática da Filosofia e de seu ensino: não estaria na hora da comunidade filosófica brasileira dar cidadania à problemática do Ensino de Filosofia? Uma problemática que – como atestado em números neste texto – é uma das peculiaridades das pesquisas desenvolvidas na pós-graduação brasileira. Primeiro coordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, Walter Kohan observa sobre o grupo de trabalho que ajudou a fundar:
Há, claro, outra potências; por exemplo, grupos trabalhando solidamente faz décadas na pesquisa sobre o ensino de filosofia na Argentina; professores associados e comunicados com força e expressão pública para além do campo acadêmico, como no Chile; uma formação específica e um acompanhamento ao trabalho dos professores e professoras muito cuidadoso e com uma continuidade histórica invejável, como no Uruguai; associações que acompanham a produção e prática no campo e ao mesmo tempo pressionam as instituições legisladoras para incluir como obrigatória a disciplina na educação básica, como no México; trabalho nas comunidades e em escolas rurais profundo e significativo como na Colômbia, por citar só alguns exemplos e certos aspectos de cada um. Mas não há nada que se compare em termos de inserção na comunidade acadêmica de pós-graduação em filosofia como o Grupo de Trabalho [Filosofar e Ensinar a Filosofar]. (KOHAN apud VELASCO, 2020, p. 16)
Como relata Kohan, embora haja inúmeras iniciativas, de diferentes naturezas, sobre Ensino de Filosofia na América Latina (e outras regiões do mundo), o Brasil possui a peculiaridade de abraçar, de modo sistemático e cada vez mais capilarizado, pesquisas de pós-graduação sobre a temática em pauta, as quais tomam o ensino da Filosofia como objeto e problema filosófico (cf. CERLETTI, 2009). Ao não reconhecer as produções da área contabilizadas neste texto, a comunidade filosófica fecha os olhos a uma parte significativa das pesquisas que já são realizadas na pós-graduação brasileira. Não só: acaba por ignorar todo um campo que já é – e pode ser, com ainda mais vigor – um dos diferenciais das pesquisas realizadas no país.
Ademais, cabe indagar se a institucionalização da subárea de Ensino de Filosofia, até então pensada por e para um grupo de pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam à temática, não poderia compreender, na luta concorrencial pelo capital científico com outros campos (BOURDIEU, 1983), o fortalecimento do poder social da própria grande área da Filosofia. Que outra subárea filosófica contempla as questões do nosso tempo de forma tão sistemática e constante? Que outro campo cumpre este papel de divulgação filosófica junto a um público leigo que não pretende se especializar em Filosofia, mas para o qual a Filosofia certamente pode ter algum valor formativo? Recentemente, a Filosofia na Educação Básica assistiu à revisão dos direitos conquistados pela área nos documentos legais; os impactos desse processo nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ainda serão contabilizados, embora algumas graduações sinalizam desde já uma procura menor de ingresso para os seus cursos. Pergunta-se: com a Filosofia presente de modo significativo e efetivo nas escolas, nas praças públicas, nas bibliotecas, nas comunidades de base, nas bancas de jornal, nos curtas-metragens, nas redes sociais, não seria mais difícil aos discursos que a menosprezam, encontrar ouvidos e ter alguma repercussão? Em tempos em que a Filosofia é continuamente aviltada, em todos os níveis de ensino, não seria o reconhecimento institucional do Ensino de Filosofia como subárea filosófica também uma forma de resistência?
Referências:
BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. Tradução de Paula Montero e Alicia Auzmendi. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-155. - (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução de Ingrid M. Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. – (Coleção Ensino de Filosofia).
VELASCO, Patrícia Del Nero. Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: brevíssimo estado da arte. Revista Estudos de Filosofia e Ensino, v. 1, n. 1, p. 6-21, 2019.
_______. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020. – (coleçõeS; 4).
_______. O estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia: uma discussão da área a partir de seus autores e autoras. Pro-Posições, Campinas, SP [no prelo].