Opinião em Debate (Conexões, nº 3)

09/06/2023 • GT Filosofia e Psicanálise

BOLHA OU ARMADURA:
 A tecnologia no processo de integração social de estrangeiros

 

Amanda Malerba [1]

Durante nove meses pude observar o dia a dia da cidade de Berlim, uma das cidades mais cosmopolitas e populosas da Europa, e, como estrangeira, fiquei intrigada coma maneira como muitos outros estrangeiros desenvolveram sua vivência diária no cenário urbano: longas, quase intermináveis, ligações telefônicas com pessoas aparentemente de suas mesmas nacionalidades durante o trabalho, o metrô e as compras nos supermercados alemães. Este ensaio se propõe, portanto, a debater sobre esse fenômeno, que se poderia chamar de desligamento da realidade física – como enclausuramento ou proteção? – e ao qual muitos estrangeiros recorrem, uma vez que as influências e os efeitos na vida psíquica resultantes da relação que um indivíduo mantém com a cidade em que vive são temas de contínuo estudo e debate no campo da psicanálise, desde a sua gênese.

Na busca de ampliar o escopo dos estudos psicanalíticos, Sigmund Freud, em um movimento ousado e também muito criticado desde então, inicia sua investigação sobre sociedade e cultura com a obra A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), na qual relaciona um mundo de colisões, mudanças e incertezas – que é a experiência moderna vivenciada por ele nos cenários urbanos – com o aumento significativo de doenças nervosas. A partir desse momento, Freud passa a associar o surgimento de novas tecnologias e a excitação da vida urbana ao esgotamento e ao sofrimento mental, já que os indivíduos modernos passam a buscar refúgio nos prazeres oferecidos pela cidade contra as demandas sociais e seus trabalhos: “[...] os nervos exaustos buscam refúgio em maiores estímulos e em prazeres intensos, caindo em ainda maior exaustão” (FREUD, 1996, p.171), isto é, mesmo as atividades de descanso e recreação urbanas podem ser intensas e cansativas, o que provoca um estado de exaustão cada vez maior.

No decorrer de sua obra, Freud continua a observar que a vida urbana se torna cada vez mais frenética, ao passo que seus habitantes ficam cada vez menos serenos. Em O mal-estar na civilização (1930), o autor questiona o papel da tecnologia para a felicidade humana, em contraste com o que muitos supõem; afinal: “[...] não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias, o filho jamais deixaria a cidade natal, não seria necessário o telefone para ouvir-lhe a voz” (FREUD, 2011, 33). Apesar de não ser possível comparar as variações do grau de felicidade ao longo do tempo, Freud reitera que o avanço tecnológico não implica necessariamente a elevação do contentamento da população.

Ao invés disso, na perspectiva freudiana, o mal-estar é uma condição permanente da vida em civilização, ajustando e renovando-se à medida que as configurações sociais mudam. A própria civilização, que supostamente teria, a princípio, como propósito proteger seus membros, acaba se tornando uma fonte de ameaça e descontentamento. É nesses termos que Zygmunt Bauman analisa a contemporaneidade, nomeada por ele como Modernidade Líquida, ao contrastar a fonte do sentimento de mal-estar, ainda presente, que deriva não mais das restrições sociais e sexuais como durante a Modernidade de Freud, mas sim da mobilidade e da fluidez, as quais se transformam em obrigações e aprisionamento para os indivíduos líquido-modernos.

A leitura feita por Bauman nos permite refletir, não apenas a partir da perspectiva psicanalítica, mas também da social e filosófica, sobre a interação cidade-indivíduo-tecnologia, a qual parece ora incluir, ora excluir o indivíduo – conectado ou apartado? – do cenário urbano, especialmente aqueles que vêm de fora e são facilmente reconhecidos como estrangeiros, devido às feições e aos idiomas diferentes. Em sua obra Tempos líquidos (2007), Bauman examina o sofrimento de origem social apontado por Sigmund Freud décadas antes e alega que o processo de individualização iniciado na Modernidade é a fonte dos medos e inseguranças da Modernidade Líquida, pois: “[...] os vínculos humanos de parentesco e vizinhança estreitamente atados por laços comunitários ou empresariais, aparentemente eternos, mas de qualquer modo sobrevivendo desde tempos imemoriais, tinham sido afrouxados ou rompidos” (BAUMAN, 2007, p. 73).

A individualização, ainda segundo Bauman, é também responsável pela crise de desconfiança que se inicia na Modernidade e se intensifica na Modernidade Líquida, resultante da substituição da solidariedade pela competição decorrente da lógica industrial e capitalista. Essa individualização impacta não só a forma como a convivência humana é percebida, mas também a estrutura interna dos indivíduos, os quais se sentem cada vez mais solitários, mesmo que vivam em cenários com alta densidade populacional. Tal desconfiança provém das inúmeras ameaças urbanas: colegas, vizinhos, passageiros do mesmo ônibus, todos são desconhecidos, com passados e desejos igualmente misteriosos.

Seria então possível afirmar que o uso demasiado de ligações telefônicas feitas pelos imigrantes em Berlim também é consequência do processo de individualização? Afinal, não é meramente uma forma de desligamento escutar uma música ou o rádio, mas uma janela aberta para o diálogo. É importante salientar que nem sempre há assuntos constantes nessas conversas, às vezes as pessoas se mantêm em silêncio e fazem comentários momentâneos – o que pode assustar os outros ao redor quando alguém começa a falar sozinho, sem estar de maneira óbvia ao telefone. A questão é que não se trata de uma narração constante ou uma conversa necessariamente ativa, mas de uma possibilidade de relato, de interação com alguém que se considera igual e que também está realizando suas atividades diárias enquanto permanece em uma chamada telefônica despretensiosa.

E por que esse fenômeno ocorre em Berlim e não em outra cidade? Além do alto índice de turistas e imigrantes, Berlim é uma cidade com baixa criminalidade, o que permite que, em qualquer lugar, seus habitantes usufruem dos celulares e transitem com fones de ouvido, desde os mais discretos até os mais chamativos, sem grades preocupações. Em Amor líquido (2003), Bauman cita a cidade de São Paulo como um exemplo da propensão segregacionista e exclusivista de se criarem ambientes privados que garantam a segurança contra perigos externos para aqueles que têm permissão e recursos para ingressarem nesses locais: “Isso significa cercas e muros rodeando o condomínio, guardas trabalhando 24 horas por dia no controle das entradas e um conjunto de instalações e serviços ‘destinados a manter os outros do lado de fora’” (Bauman, 2004, p.133), ou seja, a típica paisagem paulistana.

No entanto, em uma cidade como Berlim, repleta de turistas provenientes de todas as partes do mundo, não são todos os comerciantes ou prestadores de serviço que se mantêm dispostos a traçar diálogos além do meramente necessário com seus clientes. A solução para esse silêncio –e talvez, em alguns momentos, para a solidão – são as longas ligações. Mas até que ponto uma cidade pode ser considerada cosmopolita, se seus habitantes só estão fisicamente juntos? Bauman escreve que as cidades líquido-modernas se desenvolvem com base nos propósitos dos grandes edifícios, que deixam de lado a integração social para se concentrarem na promessa de proteção para aqueles que têm permissão e recursos para acessá-los. Assim, indivíduos com recursos financeiros conseguem adquirir residências que estão “fisicamente dentro da cidade, mas social e espiritualmente fora dela” (Bauman, 2007, p.81).

De acordo coma análise de Bauman, as cidades líquido-modernas são divididas em duas partes: os guetos voluntários, onde a população mais abastada desfruta de uma espécie de oásis de proteção; e o gueto involuntário, no qual a população marginalizada é compelida a permanecer confinada e a manter-se local, devido à falta de recursos financeiros para acessar outros estabelecimentos e realizar mais viagens, a ponto de se tornarem suas dificuldades e aspirações parte do cenário urbano. Portanto, os guetos involuntários são, por um lado, locais que a população mais rica tem receio de frequentar; por outro, espaços em que a população mais pobre se encontra reclusa, em meio a grupos da mesma etnia e idioma.

Não obstante, os imigrantes de Berlim demonstram que há uma saída, no caso, virtual, para o confinamento na solidão da cidade, o que pode servir como incentivo ou proteção não apenas para circular nas áreas da cidade já designadas a estrangeiros, mas para aventurarem-se por outros espaços, reivindicando-os também para si. Desse modo, mesmo que, de certa forma, a ligação telefônica e os fones de ouvido afastem seus usuários da interação plena com a realidade física, é por meio da ligação com o outro – esse portal mágico capaz de fornecer apoio e conexão longínquos – que os estrangeiros se sentem parte de uma comunidade não confinada e passam a se locomover pelas ruas e a buscar amparo nos estímulos urbanos, seguros de que não estão sozinhos.

 

[1] Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail para contato: amandamalerba3@gmail.com

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Tradução: Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro:  Zahar, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução: Carlos A. Medeiros.  Rio de Janeiro:  Zahar, 2007.

FREUD, Sigmund. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução: Paulo C. de Souza.  1 ed.  São Paulo: Companhia das Letras, 2011.