Apresentação do Dossiê Reinscrever o conhecimento escolar no território do comum: uma introdução
v.32 n.64 jan./abr. 2018 • Educação e Filosofia
Autor: Roberto Rafael Dias da Silva
Resumo:
Os sentidos referentes ao conhecimento escolar são aqueles historicamente situados em um campo controverso. Inúmeras tradições remeteram-se a esta questão valendo-se de poderosas metáforas como “conversa complicada” (Willian Pinar), “questão controversa” (Gimeno Sacristán) ou mesmo “território contestado” (Tomaz Tadeu da Silva). O que parece recorrente aos diferentes argumentos é que, inevitavelmente, os debates sobre aquilo que a escola ensina dimensionam-se em um campo político. A hipótese mobilizada para este texto de apresentação remete-se à perspectiva de que se torna necessário reinscrever o conhecimento escolar no território do comum, justamente em um tempo em que a composição das políticas públicas é permanentemente reposicionada pela primazia da responsabilização dos indivíduos e pela mudança nos agenciamentos públicos realizados pelo Estado. Repolitizar a discussão acadêmica sobre o conhecimento escolar constitui-se como tarefa indispensável para o nosso tempo.
Sob tal horizonte, a ser ampliado a seguir, o presente dossiê temático inscreve-se no campo dos Estudos Curriculares e procura estabelecer uma reflexão sistemática e interdisciplinar acerca da questão das políticas de constituição do conhecimento escolar. Foram compilados estudos sobre a temática proposta desenvolvidos por pesquisadores de variadas instituições de ensino superior, situadas tanto no contexto brasileiro quanto em países europeus e latino-americanos. No contexto de nosso país, este dossiê justifica-se pelas emergentes discussões acerca do desenvolvimento de políticas para a definição de um currículo nacional, materializadas na recente proposição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Em elaboração recente, Pacheco (2014) propõe-se a produzir uma reflexão sobre a questão do conhecimento na atualidade, em sua relação com a formação humana. O ponto central, para desencadear sua argumentação, é a instituição da escola, enquanto ferramenta pública. Com tal processo de institucionalização, ao longo do tempo, “pretendeu-se, acima de tudo, impor um modelo de conhecimento, construído a partir de interesses muito diversos, que permita estabelecer elos entre as gerações” (PACHECO, 2014, p. 7). A escola, enquanto arranjo institucional, ainda na percepção de Pacheco, “é a história dessa operação em torno do conhecimento” (p. 7). A seleção, a organização e a possibilidade de transmissão cultural de determinados conteúdos caracterizam a tarefa pública da escolarização.
Enquanto invenção do projeto de formação escolar, engendrada a partir de determinadas tecnologias políticas, os currículos escolares assumem centralidade nestes espaços de educação e de formação. Por diferentes percursos, no âmbito dos currículos encontramos a legitimação de formas específicas de conhecimento, socialmente reconhecidas e valorizadas, cuja seleção é desenvolvida em um terreno imanentemente político. Em razão disso, lembra-nos Pacheco, “o corpus do conhecimento escolar é, por conseguinte, a longa tradição da existência de propostas curriculares, elegendo-se, nesta seleção, organização e transformação o que as circunstâncias temporoespaciais ditam como sendo as mais válidas. Acrescentam-se, ainda: as circunstâncias económicas, sociais, culturais e ideológicas” (2014, p. 8). Em outras palavras, pensar a constituição dos conhecimentos escolares implica em uma leitura abrangente.
Do ponto de vista dos Estudos Curriculares, a potencialidade analítica dessa questão é evidenciada por distintas tradições. Young (2013), em uma perspectiva realista-social, apresenta a relevância social e epistemológica dos conhecimentos a serem ensinados nas escolas. Mais que simplesmente transmitir formas estáticas de conteúdos passados, defende que o propósito dos currículos é “capacitar a próxima geração de modo que ela possa construir sobre esse conhecimento, criando um conhecimento novo, pois é assim que as sociedades humanas progridem e os indivíduos se desenvolvem” (YOUNG, 2013, p. 3).
De acordo com o sociólogo britânico, a tarefa dos Estudos Curriculares seria “partir não do aluno como aprendiz, mas do direito do aluno ou do seu acesso ao conhecimento” (YOUNG, 2013, p. 18). Essa opção analítica sugere que a interrogação central dos currículos – “qual conhecimento?” – seja potencializada tanto epistemologicamente, quanto no âmbito da justiça social. Essa perspectiva tem sido nomeada como “realismo social”, uma vez que, conforme Moore (2012), busca produzir alternativas aos dois modos convencionais de pensar a questão do conhecimento no âmbito da sociologia da educação, a saber: o positivismo e o construtivismo social.
Sob outras condições argumentativas, Popkewitz (2009) auxilia-nos a elaborar uma crítica política da escolarização, alicerçada em uma “epistemologia social”. Para problematizar o conhecimento na escola, essa forma de abordagem nos leva a pensar sobre “as políticas da razão como práticas históricas regidas pela reflexão e a ação” (p. 19). Inspirado no conceito foucaultiano de governamentalidade, o autor problematiza as políticas de reforma da escolarização, a partir de uma ênfase na noção de aprendizagem permanente. Tal noção, ao privilegiar a competência dos aprendizes, “enfoca a atual seleção de conteúdos, na qual as ferramentas de tradução e inscrição do currículo estão relacionadas com os modos de vida que têm pouco a ver com as disciplinas escolares propriamente ditas” (POPKEWITZ, 2009, p. 129). Os currículos escolares de nosso século, de acordo com o autor, enfatizam cada vez mais as questões ligadas a conduta dos aprendentes. Isso também evidencia a relevância social e pedagógica de seguirmos a pensar sobre o conhecimento na escola.
Dessa maneira, então, o campo de relações estabelecido entre políticas de constituição do conhecimento escolar e a questão da formação humana, sobretudo no que tange à seleção dos conhecimentos a serem ensinados nas escolas públicas de nosso país, apresenta-se como mais importante foco do campo dos Estudos Curriculares. A partir deste campo conceitual que este dossiê temático foi organizado, valendo-se de perspectivas teóricas variadas, que abordem o problema do conhecimento desde uma perspectiva crítica, interdisciplinar e historicamente situada. A seguir são apresentados cada um dos textos que compõem esta produção acadêmica. [...]
ISSN: Impresso: 0102-6801 e Eletrônico: 1982-596X
DOI: http://dx.doi.org/10.14393/REVEDFIL.issn.0102-6801.v32n64a2018-02
Texto Completo: http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/43194
Palavras-Chave: Currículo escolar.
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