A metafísica da cinefilia: uma leitura bergsoniana do cinema
Marcelo Vinicius Miranda Barros
Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF
23/08/2022
A metafísica da cinefilia: uma leitura bergsoniana do cinema
Autor: Yves São Paulo
Editora: Fi | Ano: 2020
Páginas: 238
A obra do doutor em filosofia Yves São Paulo intitulada A metafísica da cinefilia: uma leitura bergsoniana do cinema (Fi, 2020) fornece conhecimentos sobre o cinema e sua estética ao mesmo tempo em que apresenta a filosofia de Bergson para o leitor. De imediato, há esses dois ganhos para quem a lê. Mas não vamos por essa perspectiva, e acreditamos que o autor da obra igualmente não foi por esse caminho. Não iremos por esse aspecto, porque a obra de Yves São Paulo também discute algo essencial para existência humana: a metafísica. No decorrer da leitura era nítida a discussão da Estética, contudo, outra questão problemática da filosofia em geral – não se resumindo à Estética ou à filosofia da arte – está implicada na A metafísica da cinefilia: a relevância da metafísica. Implicação essa sendo discutida pelo viés do cinema, o que mostra que o cinema pode ser bem explorado filosoficamente para além do mundo da arte. Ou que se faz filosofia sem se prender aos livros canônicos filosóficos.
O que quero dizer é que A metafísica da cinefilia é uma obra sobre o cinema e o seu espectador, como também é uma obra existencial, no sentido amplo desse termo. A metafísica, tão “temida” por uma parte da filosofia contemporânea, é presença forte na letra de Yves São Paulo. E isso não é problema algum se entendermos de qual metafísica se fala. A palavra “metafísica” modificou tanto o seu significado ao longo da sua história, que parece difícil delimitar o seu sentido a uma definição única. Não é por acaso que Derrida acreditava que é uma tarefa árdua suplantar a metafísica.
A metafísica na A metafísica da cinefilia se refere a uma ação que confere aos sentidos dos fenômenos um valor mais elementar do que à sua presença material, ou seja, é uma ação que pretende “ir além” daquilo que é físico (a película cinematográfica, por exemplo). Aqui é que entra a análise metafísica da cinefilia. Yves São Paulo vai assegurar que
aqui nasce a cinefilia enquanto emoção, quando a ação do espectador em sua relação com o filme faz com que a obra se inscreva profundamente em sua consciência, em seu espírito, levando a manter guardado aquele filme, com suas ideias, seus sentimentos, seus detalhes, toda a riqueza que uma película é capaz de despertar em quem assiste. [1]
É realmente difícil imaginar que o espectador não carregará algo do filme em seu seio. Por mais que ele reflita sobre o filme que assistiu, será ainda constituído por esse mesmo filme, ou seja, jamais o espectador alcançará o “verdadeiro” sentido do filme, pois este sempre escapará por já constituir aquele quem o reflete. O cinema ontológico, para uns, ou o cinema metafísico, para outros. Independente desses termos, o que se presencia é que ao tentarmos nos afastar de nós mesmos com o intento de refletir sobre um filme, nós nos objetificamos e nos tornamos aqueles quem refletem, e não mais o refletido/objetificado. A objetificação aparece, porque todo conhecimento precisa de seu objeto de estudo. Logo, a obra fílmica que se inscreveu profundamente em nossa consciência, em nosso espírito, não é mais acessível, pois está no âmbito ontológico ou metafísico. Agora ser e filme são a nosso ver a mesma coisa.
Da mesma forma que o olho não pode olhar para si mesmo, por ele ser exatamente esse olho, um espectador não pode olhar para o filme em sua particularidade ontológica que parece o constituir. Com outras palavras, há a obra fílmica que se inscreveu em sua consciência, consciência essa que foi modificada pela tal inscrição e assim não pode mais refletir o filme com a fidelidade dos mesmos sentimentos de outrora, de quando foi espectador pela primeira vez de seu filme. Com efeito, o espectador ao falar de um filme é como falar da sociedade como se a sociedade fosse objeto distante em relação ao que ele é capaz de ocupar uma posição de afastamento.
Assistir a um filme, portanto, não é uma ação descolada da totalidade da vida do espectador. A experiência estética de uma obra fílmica é um modo do ser humano existir, sem negar o caráter histórico da experiência existencial como um todo. Embora carreguemos o termo “espectador” enquanto aquele que assiste um filme, na prática o espectador é aquele enquanto vivencia um filme. Yves São Paulo, como o entendemos, parece compreender isso ao afirmar que
a partir da convergência entre as abordagens analítica e intuitiva, assistir a um filme se mostra como uma experiência qualitativamente mais rica porque não depende unicamente da formulação de ideias e de buscar similitudes em objetivar e traduzir os dados apreendidos, residindo também numa vivência. [2]
A afirmação “residindo também numa vivência” é um dos pontos mais forte da declaração de Yves São Paulo. “Vivência” é o termo mais apropriado para o espectador. O espectar – que significa aqui a ação de assistir ou observar – um filme, então, deve ser entendido como uma das maneiras de existências, uma das formas de estar-no-mundo. O espectar é semelhante a qualquer ação da vida do espectador, porque nesse momento, perante a uma obra, ele também cria sentidos, intervém ativamente na situação, e o filme ou esse suposto “irreal” não perde conexão com o que é comumente dito como “real”, com o momento da vida fora do cinema ou com o que o espectador faz depois que assistiu a um filme. Essas escolhas, criações de sentidos, decisões ocorrem tanto ao espectador perante a um filme quanto em uma situação em que ele não está mais perante ao mesmo. Não nos perdemos da “realidade” ou do mundo desperto ao imergirmos em um filme. Não fosse assim, nenhum de nós jamais poderia se reorientar ao deixar a ação de espectador de uma obra fílmica.
O espectador e o ser humano fora da sala de cinema não se separam, de fato. Eles são os mesmos. Não são duas vidas distintas. Aqui, em certa perspectiva, poderemos fazer uma analogia com Merleau-Ponty, quando este afirma que “não há diferença absoluta entre amor real e imaginário, mas não porque tudo é imaginário, mas porque tudo é real, i.e., investimentos” [3]. O mesmo vale para o filme que é tido, pelo senso comum, como algo imaginário ou mera ficção.
Portanto, a história do ser humano continua, e o filme é uma forma de continuar a existir historicizando. Como entendido, a existência imaginária de um filme e a existência do mundo “real”, apesar de parecerem mundos distintos, de fato são intrínsecas as mesmas relações que são o próprio ser humano. Então, a nosso ver, valendo-nos de uma afirmação de Yves São Paulo, a metafísica da cinefilia “nasce da experiência de duração partilhada pelo espectador com o filme, quando a particularidade da temporalidade de um filme se inscreve em sua consciência”[4] .
Dessa forma, a metafísica, ou uma espécie de ontologia, da cinefilia, dentre outras coisas, é ainda um modo de o ser humano existir, sem negar o caráter histórico da experiência existencial como um todo. Parafraseando Merleau-Ponty, não existe o filme e a vida real fora do cinema, mas não porque tudo é filme, mas porque tudo é real. O filme vai constituir ontologicamente aquele espectador. Isso é uma caraterística metafísica da cinefilia. Por isso que não há de fato uma separação da vida real com o imaginário cinematográfico. A história do humano continua, e espectar é uma forma de continuar existir historicizando-se. Sintetizando tudo isso, valendo-nos mais uma vez de uma afirmação de Yves São Paulo, a cinefilia é uma emoção que une espectador e filme num mesmo tecido de memória ou da existência. A cinefilia é uma relação ontológica – como também gnosiológica – com o espectador, o filme e a existência humana.
Notas
[1] SÃO PAULO, Y. A metafísica da cinefilia: uma leitura bergsoniana do cinema. Porto Alegre: Fi, 2020, p. 205.
[2] SÃO PAULO, Y. A metafísica da cinefilia:
uma leitura bergsoniana do cinema. Porto Alegre: Fi, 2020, p. 207.[3] MERLEAU-PONTY, M. L’institution, la passivité. Paris: Belin, 2003, p. 241.
[4] SÃO PAULO, Y. A metafísica da cinefilia: uma leitura bergsoniana do cinema. Porto Alegre: Fi, 2020, p. 208.