A paixão da igualdade: uma genealogia do indivíduo moral na França

Felipe Cardoso Silva

Doutorando em Filosofia pela FFLCH-USP. Membro do Grupo de Filosofia Alemã da USP

09/08/2022

A paixão da igualdade: uma genealogia do indivíduo moral na França
Autor: Vinicius de Figueiredo
Editora: Relicário, 2021 |  276 páginas

 

A antinomia do indivíduo moral moderno: liberdade, igualdade e virtudes nos séculos XVII e XVIII

Em A paixão da igualdade, Vinicius de Figueiredo expõe a formação do indivíduo moral moderno a partir dos conceitos de liberdade, igualdade e virtude. Seu ponto de partida é a antinomia do sujeito moral moderno, expressa politicamente na concepção comum de que as democracias devem assegurar igualdade e liberdade a seus membros. Não se trata, como observa Newton Bignotto, de um tema exclusivo de análise histórica, mas íntimo aos nossos regimes políticos. Trata-se da exigência de que a igualdade e a liberdade convivam em um mesmo indivíduo e seus semelhantes; indivíduos iguais em direitos e livres para a ação. Se, hoje, nos parece evidente a necessária convivência desses conceitos, isso se deve à lógica de sua mutação semântica, capaz de articular no indivíduo moral moderno conceitos opostos. 

Essa genealogia do indivíduo moral moderno, sob a forma de um estudo histórico erudito, constitui, na verdade, um empenho filosófico de analisar a lógica dessas mutações semânticas, presentes nas relações entre processos sociais e esquemas discursivos. Os esquemas discursivos só se tornam socialmente relevantes, capazes de expressar e operar mutações semânticas em relação com os processos sociais, em contextos nos quais possuem ampla circulação social. Vinicius de Figueiredo encontra um desses contextos nos círculos letrados dos séculos XVII e XVIII, em que se alinhavam produções literárias, artísticas e filosóficas. Para conduzir sua genealogia, adota como princípio heurístico a tese do declínio do herói clássico, identificável em âmbitos tão distintos quanto a pintura de Poussin, a poesia de Corneille e a filosofia moral de Descartes. A essa figura se atribui a qualidade de modelo moral de conduto frente às adversidades do mundo. 

Seu declínio decorre do modelo do indivíduo nivelado, que desconhece diferenças morais relevantes em relação aos seus semelhantes. Sua origem é teológica, ela está no reconhecimento da igualdade dos indivíduos frente ao pecado original. Sua formação teórica é dada pelo contradiscurso elaborado por Pascal e pelos senhores de Port-Royal. Esse modelo conhecerá ao menos duas configurações. A primeira, predominante na Inglaterra reformada, valoriza as competências individuais na construção da sociedade. A segunda, predominante na França revolucionária, reforça o nivelamento das condutas nas relações em sociedade. Essa é perceptível em teóricos tão díspares quanto Hobbes, Harrington e Locke; aquela, constante em autores tão conflitantes quanto Rousseau, Voltaire e Diderot. Com a dissolução do herói clássico e da ética aristocrática, desenha-se a antinomia do sujeito moral moderno, a antinomia entre liberdade e igualdade. 

Vinicius de Figueiredo elege a segunda configuração francesa como tema de sua genealogia. Contudo, não se trata de uma escolha casual, mas de uma opção estratégica. Trata-se de um momento histórico significativo, na medida em que a liberdade, sob um regime absolutista, foi experimentada pelos nobres como a crescente destituição de suas prerrogativas. Nesse contexto, não é razoável que ela se desenhasse como o enaltecimento das qualidades individuais, mas como a progressiva ampliação das condições de igualdade entre os indivíduos. Enquanto nivelamento das condutas, não surpreende que os livres-pensadores, libertinos ou monásticos, tenham sido perseguidos. As condições do nivelamento pela igualdade radical não conhecem exceções, sua imposição, frente a diversidade própria à liberdade da ação, só pode decorrer da mão forte do soberano. Na França dos séculos XVII e XVIII encontramos as expressões teóricas e literárias do herói clássico, as origens intelectuais de seu declínio e as elaborações de um novo modelo de indivíduo moral com suas antinomias. 

Nesse caso, é evidente que um método de leitura típico, analítico ou estrutural, seria incapaz de expressar a mutação dos conceitos em questão. Vinicius de Figueiredo escolhe o estilo ensaístico. Esse gênero possibilita que se compare produções sociais diversas, como cartas, romances, pinturas, discursos e tratados. Essa escolha reconhece nos produtos propriamente artísticos e intelectuais da época, e não nas produções ditas políticas, o locus por excelência dessa transformação antropológica. Escolha que parece ser uma concessão de Vinicius a suas próprias preferências, mais propensas ao discurso filosófico e à produção artística do que ao palavrório jurídico. Não obstante, é manifesto que é uma escolha constitutiva do estudo, que lhe confere estilo para além de questão de método. Se, acaso, pode-se aplicar o mesmo método e obter os mesmos resultados, ou enriquecer os presentes, analisando outros materiais, convém insistir que as qualidades do trabalho, a envergadura dos temas abordados e a riqueza de consequências justificam sua leitura, bem como a recusa de críticas que nele vejam ou exijam aquilo que ele não se propõe a ser. 

Na primeira parte do livro, composta pelos dois primeiros capítulos (“Corneille, Descartes e a moral de relevo” e “Pascal e o indivíduo nivelado”), observamos o declínio do herói clássico e o nascimento da consciência moral trágica. No primeiro capítulo, a partir de excertos de La Bruyère e Bouhours, em que se comparam a poesia de Corneille e Racine, Vinicius de Figueiredo observa como no decorrer do século XVII cresce a desconfiança quanto ao modelo moral heroico do primeiro, considerado ingênuo e abstrato, em proveito da moral expressa pelo segundo, natural e realista. Em seguida, demonstra como tanto o herói de Corneille, no plano literário, quanto o sujeito cognitivo de Descartes, no plano filosófico, compartilham a intenção de instaurar uma ordem moral no mundo em que subsiste a contingência e o arbítrio. Nesse contexto, ser livre não é ser igual aos demais, mas distinguir-se dos outros pelo modo que se faz uso de seu entendimento e de sua vontade. No segundo capítulo, a partir da polêmica de Pascal com Descartes, Vinicius demonstra o surgimento dos indivíduos nivelados. A submissão da nobreza à coroa obteve como resposta a elaboração da doutrina do pecado original. Todos são iguais na Queda, que nos distância do ideal concebido por Deus, na medida em que compartilham a mesma situação decaída. O indivíduo é concebido no contexto de uma consciência moral trágica, a todo momento pendendo entre a grandeza e a miséria, mas sempre na mesma condição que seus semelhantes.

Na segunda parte do livro, composta pelos dois últimos capítulos (“As virtudes de superfície” e “A inversão do dualismo: Rousseau e Diderot”), observa-se a crítica da consciência trágica e a passagem para a antinomia moral moderna. Ganha cidadania nos círculos letrados uma concepção antropológica que preservará a igualdade originária, mas exigirá que a análise do indivíduo transcorra por conceitos não-individuais, originados de ciências como a economia política, a psicologia e a história universal. O interesse perde lugar para a análise das ações segundo uma teleologia das paixões. Agora, o indivíduo é incapaz de responder, por si mesmo, como o herói clássico, à constituição da ordem do mundo, mas é conduzido em suas ações por princípios de finalidade que determinam suas ações. O conceito de humanidade é elevado a categoria analítica principal e ações são resultado da finalidade própria ao desenvolvimento da humanidade. Em sua versão francesa, a subjetividade do indivíduo moral moderno se constitui na medida em que ele é, ao mesmo tempo, igual a todos e livre para agir, mas com sua ação condicionada pelo progresso do desenvolvimento humano. 

Por fim, Vinicius de Figueiredo recorda as consequências dessas mutações bem em seus principais receptores, os filósofos alemães dos séculos XVIII e XIX.  O tema da igualdade radical será elevado às últimas consequências por Kant e Fichte, ao passo que o tema da teleologia das paixões políticas encontrará seus partidários em Hegel e Marx. Para nós, hoje, é quase impossível pensar uma teleologia da história sem abordar conceitos como consciência e luta de classe, é quase inverossímil conceber uma teoria moral que não passe pela autonomia da vontade e pelo imperativo categórico. É como se o percurso proposto requeresse que nós atravessemos as perturbações revolucionárias de Paris, alcancemos as calmarias de Königsberg, só para que víssemos nascer em Trier uma nova tendência revolucionária, uma nova mutação dos conceitos que se desenha a partir daquela.

Essa genealogia filosófica não depende do tema de estudo; sob a forma de uma investigação localizada, Vinicius de Figueiredo exercita um modo de atividade filosófica própria, que pode ser aplicado a diversas formas de mutação semântica. Da sua aplicação, surgem diversos conceitos como a antinomia da consciência trágica, a crítica da consciência trágica, a antinomia do indivíduo moral moderno e a teleologia das paixões políticas; o que demonstra a riqueza desse modelo de investigação. Em tempos de análises argumentativas enfadonhas e interpretações ensaísticas desvairadas, o autor demonstra que é possível conciliar a liberdade do ensaio e o rigor da análise, oferecendo-nos um estudo impressionante, que justifica, em suma, nossa paixão pela igualdade, atualmente tão maltratada. Resta saber, afinal de contas, como é possível superar a antinomia do indivíduo moral moderno sem que percamos, com isso, as condições para o efetivo exercício da liberdade.